Por Leonardo Sakamoto
Mais de 12 milhões de desempregados e 64 mil mortes violentas por ano, junto à incapacidade da política em encontrar soluções efetivas (inclusive para depurar a si mesma), alçaram o discurso da mudança ao papel de estrela das eleições. ”Discurso”, ressalte-se, não a mudança em si, porque a análise das propostas por trás dele, não raro, mostram saudades da estrutura social do Brasil Colônia.
Os brasileiros, com isso, decidiram renovar seu parlamento – 243 dos 513 deputados federais nunca ocuparam esse cargo, ou seja, 47,4% do total. Mais da metade dos deputados não se reelegeu. Grandes nomes envolvidos pela operação Lava Jato em casos de corrupção não se reelegeram, outros grandes nomes sim. Os partidos que mais perderam cadeiras foram o PSDB (-25) e MDB (-31), protagonistas do processo de impeachment de Dilma Rousseff e de escândalos. Há bons nomes eleitos pela primeira vez, da esquerda à direita, que prometem melhorar o debate político.
Aumentou de 10% para 15% o números de mulheres eleitas na Câmara dos Deputados, mas seguimos com uma porcentagem inferior à do Níger (17%), país com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo. Ou seja, tudo deve ser visto em seu contexto.
Portanto, vale ressaltar que renovação não significa melhoria. Afinal, ao contrário do que ensina o filósofo Tiririca, pior do que está, ah, sim, fica. Em português claro: no fundo do poço pode ter um alçapão.
É uma ginastica mental tentar imaginar o que será do Congresso Nacional sem parte de seus principais articuladores do centro, centro-direita, que foi defenestrada pela população. A tendência natural do cidadão comum é entender a palavra ”articulador” como ”corrupto”, quando isso não é necessariamente verdade. Bem, é que no caso de muitos dos nobres parlamentares era sim.
Qualquer parlamento do mundo precisa de pessoas que conheçam bem as regras e leis e saibam fazer política, ou seja, dialogar muito, costurar saídas, levar um grupo a ceder aqui, o outro ceder ali e dialoguem com posições polarizadas A democracia é o cumprimento das decisões da maioria, desde que respeitada a dignidade da minoria. Ignorar isso no parlamento não apenas esgarça instituições, como pavimenta o caminho para um Estado autoritário. Este blog conversou com três deputados eleitos de diferentes partidos e colorações ideológicas para discutir esse cenário.
No Brasil de Michel Temer, tivemos um ensaio da quebra. Pautas do empresariado que deu suporte ao impeachment (Reforma Trabalhista e Lei da Terceirização Ampla) e do mercado (Emenda do Teto dos Gastos) foram enfiadas goela abaixo na Câmara e no Senado, sem o devido debate e sem possibilidade de tornar as mudanças mais palatáveis à população mais vulnerável. Mas, ainda assim, havia um mínimo de diálogo em muito articulado por nomes fortes do Congresso.
Sem articuladores que topem fazer pontes e não tenham preguiça de fazer política, abre-se a possibilidade da minoria viver em obstrução ou, a depender do presidente da Câmara que vier a ser eleito, dos regimentos da Câmara e do Senado serem rasgados todos os dias. O Supremo Tribunal Federal seria chamado, a todo o momento, para mediar a relação entre base governo e oposição – o que seria péssimo.
E o que acontecerá se o diálogo for substituído por coação digital contínua? A pressão popular é e sempre foi legítima para influenciar no processo parlamentar, apesar da truculência com movimentos populares, como no dia 24 de maio de 2017, quando o governo despejou porrada, bomba e bala de borracha na Esplanada dos Ministérios. Abaixo-assinados e mensagens a parlamentares em nome de pautas importantes fazem parte das ferramentas do cidadão.
Mas qual será a reação se alguns deputados federais, senadores ou mesmo o chefe do Poder Executivo acharem que podem jogar seus seguidores para ameaçar parlamentares a cada nova proposta de seu interesse em trâmite no Congresso, usando WhatsApp e redes sociais? Aliás, não apenas seguidores, como também consultorias contratadas para entregar esse serviço, disparando dezena de milhares de mensagens por dia, que fazem parte desse ecossistema. O que acontece se alguém decidir exercer seu mandato usando o medo digital como arma?
A propaganda teve um papel fundamental para manter o controle do partido nazista sobre a Alemanha após sua ascensão ao poder por via eleitoral. Oitenta anos depois, a máquina de manipulação do debate público montada por Donald Trump em sua administração ajuda no suporte ao governo por parte de seus eleitores, anulando a influência de investigações e denúncias por parte da imprensa. Não somos nem a Alemanha da década de 1930, nem os Estados Unidos de hoje, com suas instituições em que freios e contrapesos funcionam melhor. O resultado, por aqui, é imprevisível.
Fala-se muito de um suposto aumento do poder das bancadas ruralista, do fundamentalismo religioso e corporativa de agentes da segurança pública – o chamado BBB, boi, bíblia e bala. É cedo, porém para afirmar que Jair Bolsonaro, se vier a ser eleito, conseguirá ignorar a negociação com os partidos tradicionais (e suas demandas) e tratar diretamente com as bancadas. Primeiro, por que não se sabe ainda o tamanho dessas bancadas – exceção à de segurança pública, as outras devem cair. Segundo, essas bancadas perderam nomes fortes, que sabiam operar no Congresso, especialmente a ruralista.
Claro que nomes são substituíveis. O deputado federal Rogério Marinho (PSDB-RN) e o senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), relatores da Reforma Trabalhista, não se reelegeram. Marinho teve grandes doações eleitorais de donos de megaempresas, mesmo assim, naufragou. Enquanto isso, Ronaldo Nogueira (PTB-RS), ex-ministro do Trabalho, que apoiou a reforma e ficou marcado por aprovar uma portaria que enfraquecia o combate ao trabalho escravo, dificultando a libertação de trabalhadores, também não se reelegeu à Câmara. Fizeram o serviço ao empresariado, mas outros ocuparão seus lugares. O mesmo não se pode dizer de parlamentares que estava há muito tempo e faziam essas pontes.
Não eram grandes articuladores. Apenas as pessoas úteis na hora certa.
Contudo, falar para seguidores nas redes sociais é bem diferente de liderar articulações no Congresso Nacional.
Em entrevista a Carla Jiménez, do El País, o professor Fernando Limongi, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e do Núcleo de Instituições Políticas e Eleições, lembrou que muita gente não exerce força porque não sabe ou não gosta de conversar e fazer política. ”O que fez do Eduardo Cunha aquela pessoa imensamente poderosa? A capacidade de conhecer aquilo, como aquilo funciona. O cara era uma máquina. Sabe tudo, tinha controle sobre absolutamente tudo, com três celulares. Não é coisa para amador. Tem um voluntarismo bobo que tomou conta da juventude e empresários. De que tudo com boa vontade se resolve… as pessoas entram em conflito.”
O Congresso Nacional é o local para que conflitos sejam resolvidos dentro de regras, onde saídas são costuradas, evitando assim que diferentes grupos sociais entrem em embate direto no resto do país. Nosso parlamento é uma tragédia que não funciona bem, mas nem por isso é justificativa para ser subvertido – ruim com ele, pior sem. Se o diálogo for interditado pela falta de articulação ou por conta do medo e da perseguição, haverá descontentamento dos grupos cujos representantes forem ignorados no parlamento. E, dependendo de quem estiver nos governos federal e estaduais, diante dos protestos consequentes, virá pesada repressão do poder público. Isso é óbvio para quem sabe fazer política, mas obscuro para quem prefere o atalho do assédio, do bullying, da ameaça.
Para muitos analistas, seria difícil aparecer uma legislatura tão complicada quanto esta que termina no começo do ano. A experiência, essa sábia senhora, pede, contudo, que se espere até o 2019 antes de avaliações tão cheias de certeza.