Por Jessé Rebouças*
Na quarta-feira (3), a primeira Assembleia Nacional Constituinte genuinamente brasileira completou 200 anos. Pode-se argumentar que a referida Assembleia rugiu, rugiu e “nacetur ridiculus mus” (“nascera um ridículo rato”). Porém, nada seria mais equivocado do ponto de vista da política, da história e do direito.
O último e primeiro quarto dos séculos XVIII e XIX, respectivamente, caracterizam-se pela grande ebulição política. No último quarto do século XVIII, os americanos promulgaram a primeira constituição em sentido moderno – há controvérsias –, em que adotaram como sistema e forma de governo o presidencialismo e a república, respectivamente; já a França dos Bourbon, cuja dinastia remetia há mil anos, sofrera, talvez, a mais violenta e profunda ruptura política de todos os povos do ocidente, daí resultando conceitos empregados pela ciência política até hoje, como poder constituinte originário , nação e soberania popular.
Os países iberos não se mantiveram imunes às mudanças políticas.
Na Espanha, a sevandija monarquia quedou-se ao poderio francês ao velho estilo “o covarde só ataca quando está a salvo” (Goethe), pois, para ser devorada por último, negociou a invasão e divisão do território português com Napoleão no sigiloso Tratado de Fontainebleau (1807), o que resultou na fuga da família real portuguesa para o Brasil em 1808. Obviamente “não adianta negociar com o tigre quando a sua cabeça já está na boca dele” (Churchill), razão por que Napoleão destronou Fernando VII e seu pai Carlos IV (que estavam em conflito pelo poder) e coroou seu irmão, José Bonaparte. Em maio de 1808, os madrilenhos iniciaram a resistência aos invasores sem qualquer participação do monarca espanhol e, em 1812, os franceses iniciaram a retirada das tropas do território espanhol. Nesse período fora promulgada a Constituição de Cádis ou La Pepa, um dos primeiros documentos constitucionais modernos. Uma curiosidade: em 1821, por pressões populares, aplicou-se no Brasil, por um dia, a Constituição Espanhola, o que logo foi rechaçado por D. Pedro I num episódio que ficou conhecido como “motim da Praça do Comércio”.
Em Portugal, muito sob a influência dos levantes do povo espanhol que acima mencionamos, eclodiu a Revolução Liberal do Porto (1820). Apesar do adjetivo “liberal” atravessado entre revolução e porto, de liberal a invectiva popular nada possuía, porquanto, a despeito de exigir uma Constituição, queria reconduzir o Brasil ao antigo status de colônia, condição essa superada desde 1815 quando o País fora alçado à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves. Pois bem, isso apressou o retorno de D. João VI à Península Pirenaica (26/04/1821). Nada obstante, antes de embarcar, nomeou D. Pedro príncipe regente do Brasil, decisão essa recebida com insatisfação pelos absolutistas lusos.
Se, por um lado, os portugueses estavam insatisfeitos com o retorno de D. João VI sem o príncipe, bem como a manutenção do status do Brasil; do outro, os brasileiros identificaram uma oportunidade para expandir zonas de autonomia. É com isso em perspectiva que fora possível a supracitada vigência da Constituição de Cádiz – mesmo que efêmera – e a convocação, no ano seguinte (06/1822), da primeira constituinte brasileira, tendo na figura do lumiar José Bonifácio de Andrada e Silva, sua grande referência. Nas palavras de Pedro Calmon: “não bastava ser terra de cidadãos, nos moldes do liberalismo eloquentemente legislado pelas Cortes de Lisboa. Urgia ser nação emancipada”.
Com o retorno do Rei, o príncipe regente avançou na autonomização do Brasil em relação a Portugal. Em janeiro de 1822, decretou que as leis votadas e aprovadas nas Cortes de Lisboa só vigeriam no Brasil após a sua sanção. Como acima exposto, em junho de 1822 houve a convocação da Assembleia Constituinte, que fora efetivamente instalada aos 03 dias de maio de 1823. As regras de funcionamento foram editadas por José Bonifácio. Das 19 províncias, apenas 14 apresentaram representação, Piauí, Grão-Pará, Maranhão, Cisplatina e Sergipe não estiveram presentes. 90 deputados foram eleitos, porém, muitos não tomaram posse – o RN foi um deles, como ficará demonstrado abaixo. Na abertura dos trabalhos, na Fala do Trono, as assertivas imperiais consternaram os atentos: “espero que a constituição que façais mereça a minha imperial aceitação”. Era o mote do porvir!
Em 11 de novembro de ano anterior (1822), convocou-se eleições para a Assembleia Constituinte de 1823. A província norte-rio-grandense possuía, nos anos vinte do século XIX, oito Municípios – Natal, Estremoz, Arez, Portalegre, São José, Vila Flor, Vila do Príncipe (Caicó) e Vila Nova da Princesa (Açu). O evento não entusiasmou a população. Apenas 18 eleitores compareceram. De ressaltar que, à época, o sistema de votação era substancialmente diferente do atual, os deputados eram eleitos indiretamente e a eleição funcionava da seguinte maneira: primeiro elegia-se na freguesia os eleitores da paróquia, estes, por sua vez, elegiam os deputados. Os eleitos foram: Francisco de Arruda Câmara e, como suplente, Tomás Xavier Garcia de Almeida e Castro. O titular da vaga desapareceu. No dia 22 de outubro de 1823, a Comissão dos Poderes autorizou a tomada de assento na Assembleia do deputado suplente Tomás Xavier Garcia de Almeida e Castro. Esse potiguar, que é bastante negligenciado na historiografia, fora muito influente no império, chegou a ser deputado por três estados diferentes e presidente de quatro províncias distintas. Também foi o primeiro potiguar a ser desembargador e ministro do Supremo Tribunal de Justiça, que era a antiga designação do Supremo Tribunal Federal no Brasil-império. O assunto merece detalhamento em texto específico.
Nesse século, os ideais republicanos e de independência percorriam os grotões do Brasil. No Nordeste, a inclinação pela via republicana mostrou-se presente logo nos anos iniciais daquele século (XIX), com a Revolução Pernambucana (1817), também conhecida como Revolução dos Padres, que chegara ao RN através do Pe. João Damasceno e teve como protagonistas os natalenses Miguel Joaquim de Almeida e Castro, ou simplesmente Pe. Miguelinho – enforcado em Salvador em 1817 –, Pe. Antônio Pereira de Albuquerque Azevedo – natural da Serra de Martins-RN –, dentre outros de estados diferentes; e a Confederação do Equador (1824), que contou com a adesão de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. No RN, esses revolucionários conseguiram prender o presidente da Província, José Inácio Borges. A família Albuquerque Maranhão participou ativamente da insurreição, inclusive, André de Albuquerque Maranhão, Coronel de Ordenanças do Distrito Sul e senhor de Cunhaú, foi quem cercou e prendeu o governador no engenho Belém, pertencente a um primo de André, Luís de Albuquerque Maranhão, próximo à região onde atualmente se encontra a cidade de Nísia Floresta. Fato curioso: a família Albuquerque Maranhão foi quem consolidou a república no RN cerca de 70 anos depois.
Nos diários da constituinte de 1823, a insurgência revolucionária do RN e dos nossos irmãos limítrofes não passou desapercebida (sessão de 9 de maio): “O Sr. Cruz Gouvea: – Sr. Presidente: As Provincia do Norte estão em desordem como a todos he notorio; e que fará a Provincia do Ceará dividida em partidos, uns a favor do Por Bem Barboza, outros da causa do Brasil? quando souber que está preso seo Deputado? O Rio Grande acha-se governado pelo Presidente Manoel Pinto, um Secretario e o Deputado Comandante Antonio Germano, como se vê das Representações do Povo de Porto-Alegre. A Paraiba, que unanimemente adherio á Causa do Brasil, já enviando tropas para a Bahia, já guarnecendo suas praias” (ortografia da época); (sessão de 15 de setembro): “Ill. e Ex. Sr. – Representando a Camara da Villa de Porto Alegre, na Província do Rio Grande do Norte, á instancias do Povo, e com a aprovação do Governo Provisoria a necessidade de se crear ali um Batalhão de Milicias” (ortografia da época).
De 3 de dezembro de 1821 a janeiro de 1824 – perceba que esse período contempla os eventos históricos correlatos da saída de D. João VI do Brasil, o pleito da aplicação da Constituição de Cádiz, a maior autonomização do Brasil em relação às deliberações legislativas de Portugal, proclamação da independência do Brasil e convocação da Assembleia Nacional Constituinte e posterior dissolução em 12 de novembro de 1823 –, o RN esteve sob gestão de uma Junta Provisória, assumindo como presidentes, respectivamente: Joaquim José do Rego Barros (coronel), posse a 3 de dezembro de 1821; Manoel Pinto de Castro (padre), posse a abril de 1822; reconduzido em abril de 1823; em 1824, assumiu Manoel Teixeira Barbosa, presidente da Câmara de Natal (como disposto no Art. 19, Lei de 20 de outubro de 1823), encerrando o ciclo provisório da junta governativa potiguar.
Em 12 de novembro de 1823, o Imperador cercou o prédio da Assembleia Nacional Constituinte do imberbe Brasil, golpeou-a de morte e mandou prender os três irmãos Andrada, Martim Francisco Ribeiro de Andrada, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva e José Bonifácio de Andrada e Silva, símbolos da independência. Antônio Carlos de Andrada teve papel essencial no Projeto de Elaboração da Constituição que não foi; José Bonifácio, então conselheiro do rei, ativo defensor da independência do Brasil, foi preso em casa.
Apesar de contemplar o critério de elegibilidade censitário de maneira gradativa – para que alguém pudesse ser eleito Senador ou Deputado, seria necessário que possuísse renda líquida anual correspondente ao valor de 100, 250, 550 ou 1000 alqueires de farinha de mandioca, razão por que ficara conhecida pejorativamente como “A Constituição Mandioca” –, as sementes do republicanismo foram plantadas no árido solo da Monarquia. O evento também projetou Tomás Xavier Garcia de Almeida e Castro, parente do revolucionário Pe. Miguelinho que foi executado em Salvador por crime de lesa majestade, ao cenário nacional por fiel aliado à monarquia. Portanto, de muitos modos, o RN foi partícipe dos sobressaltos do primeiro quarto do século XIX, registrando-se, numa ponta, ícones da luta republicana (Pe. Miguelinho) e, n’outra, figurões do império.
*É advogado militante. Comentarista político nas rádios Difusora de Mossoró e FM Costa Branca.
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