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A democracia militante

Por Rogério Tadeu Romano* 

I – O NEOFACISMO

O fato que foi noticiado pelo site do Estadão, em 12 de setembro do corrente ano, nos traz preocupação:

‘Cem anos depois da chegada do líder fascista ao poder, o culto a Benito Mussolini se mantém intacto entre o povo de Predappio, onde nasceu e foi enterrado. Seu túmulo, localizado na cripta da capela da sua família, atrai dezenas de milhares de visitantes todos os anos.

Nostalgia ou curiosidade, muitas pessoas transitam diante dos restos mortais de “il Duce”, cujo legado segue forte no partido pós-fascista Irmãos da Itália. Comandada por Giorgia Meloni, a legenda lidera as pesquisas para as eleições parlamentares, marcadas para 25 de setembro.

Na cripta, decorada com um busto branco de Mussolini, um livro dourado colocado diante do sarcófago de pedra, coberto com a bandeira italiana, está repleto de mensagens amorosas: “Nunca vou te esquecer”, “vamos renascer”, “volta!”.”

Hoje o movimento neofacista no Brasil  se apresenta sob a forma do bolsonarismo.

Esse neofascismo no mundo ganha cada vez mais adeptos. Veja-se o que ocorre na Hungria, na Polônia.

Na Suécia, com raízes neonazistas,  o partido Democratas da Suécia (SD) conquistou mais de 20% dos votos nas eleições do dia 10 de setembro do corrente ano, e pode fazer parte do governo pela primeira vez na História.

No Brasil, o desfile “cívico-militar”, no 7 de setembro de 2022, deve ser visto como um alerta para os que amam a democracia. Aliás, Bolsonaro é um personagem tipicamente de extrema-direita que não convive com os ideais democráticos.

Disse bem Mathias Alencastro, em artigo para a Folha, publicado em 12 de setembro de 2022, que Jair Bolsonaro é de extrema-direita.

Guilherme Caetano(O Globo) salientou:

“Uma das mais notáveis mudanças foi a aceleração da internacionalização da extrema-direita brasileira, agora ator global de peso, diz Odilon Caldeira Neto, coordenador do Observatório da Extrema Direita. E, após as derrotas de Donald Trump nos EUA e José Antonio Kast no Chile, as eleições brasileiras, afirma, ganharam mais relevância:

— O Brasil passou de receptor a produtor de premissas de extrema direita. Não à toa, Steve Bannon tem muito interesse na eleição daqui — diz.

O ex-conselheiro político do ex-presidente Trump foi considerado um dos responsáveis pela vitória do republicano em 2016. E antes mesmo de assumir a Presidência, Bolsonaro já mantinha contato com Bannon, relação cujo elo sempre foi o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).”

II – O FASCISMO

O fascismo nos evoca episódios de triste memória.

O fascismo é diferenciado das ditaduras militares porque o seu poder está fundamentado em organizações de massas e tem uma autoridade única. Os seus membros são na sua grande maioria provenientes da classe operária e da pequena burguesia rural e urbana, ou seja, dos ameaçados pelos fortes intervenientes do grande capital e do sindicalismo comunista.

Quando o fascismo se estabelece no poder, aceita a presença do grande capital e se impõe de forma disciplinadora, impedindo que as organizações operárias defendam a luta de classes (sindicatos, partidos políticos).

O fascismo é caracterizado por uma reação contra o movimento democrático que surgiu graças à Revolução Francesa, assim como pela furiosa oposição às concepções liberais e socialistas.

O termo fascismo passou a ser usado para englobar tanto os regimes diretamente ligados ao eixo Roma-Berlim e seus aliados, como os sistemas de autoridade que atribuíam ao estado funções acima daquelas que as democracias lhe entregavam. É o caso das referências ao “fascismo” espanhol, brasileiro, turco, português, entre outros.

Em 1945, com a queda dos principais estados fascistas e com a divulgação das atrocidades cometidas, o movimento fascista perdeu possibilidades de grandes mobilizações. Apesar disso, alguns grupos minoritários se mantiveram nos antigos estados fascistas (neofascismo).

O Estado fascista criado por Benito Mussolini, na Itália, em 1922, foi o ponto de partida para o totalitarismo da direita que teve notável incremento na Europa depois do 1º conflito mundial, entre 1914 e 1918, e atingiu a América Latina a par dos movimentos de exaltação nacionalista.

A liberal democracia, em franca decomposição, não podia fazer face à terrível crise social que assolava o mundo, nem podia oferecer a resistência eficaz à ameaça do imperialismo russo, de esquerda. Nessa conjuntura perigosa para a liberdade dos povos e para a sobrevivência da civilização ocidental, foi que se deu o aparecimento dos homens providenciais, ousados condutores das massas que sabiam explorar não só o descontentamento do proletariado como ainda aos sentimentos nacionalistas, arvorando-se em salvadores das nações. Na lição de Pedro Calmon, em todas as épocas de ruptura do equilíbrio entre um método clássico de governo e a inquietação social que impõe outras formas políticas, proporcionou o advento do que a sociedade chamou como “homens providenciais”.

Assim as novas organizações políticas que surgem inspiradas pela vontade onipotente desses líderes ou detentores eventuais do poder, constituem esse conjunto heterogêneo de Estados Novos, no panorama confuso do pós-guerra, todos eles adaptados arbitrariamente, em cada país, às contingências transitórias de um dado momento histórico.

Nessa situação certas características são comuns encontradas em estados de extrema-direita no poder: a) concentração de toda a autoridade nas mãos de um chefe supremo; b) restrições às liberdades públicas e regime de censura; c) prevalecimento do interesse coletivo sobre o individual; d) partido único; e) dirigismo econômico; f) estatismo, nacionalismo ou racismo, como objetivo moral do Estado.

Valeram-se os ditadores de ideias forças (unificação e grandeza da pátria) para galvanizar os espíritos e polarizar os sentimentos cívicos da comunidade nacional. No setor econômico, postergavam a livre concorrência, o laissez faire, do capitalismo, estabelecendo o primado da coletividade sobre o indivíduo.

Na Itália, com o fascismo, embora surgisse do oportunismo, sem doutrina, depois de consolidado no poder, passou a teorizar um sistema peculiar: o Estado é criador exclusivo do direito e da moral; os homens não têm mais do que o Direito que o Estado lhes concede: o Estado é personificado no partido fascista e este não encontra limites morais ou materiais à sua autoridade; todos os cidadãos e seus bens lhe pertencem; os opositores são considerados como traidores e sujeitos à justiça que é controlada pelo órgão executivo.

No fascismo, cabe ao Estado dar ao povo uma vontade consequentemente uma existência efetiva. O Estado, dentro da concepção trazida por Hegel, é absoluto, diante do qual os indivíduos e os grupos são o relativo. Daí porque se dizia: “Tudo dentro do Estado, nada fora do Estado”.

É evidente a afinidade entre o fascismo e a doutrina do famoso secretário florentino exposta no livro, O Príncipe, tanto que o próprio Mussolini, na Itália, como chefe de governo, escrevendo Prelúdios a Maquiavel, em 1924, mencionou que na atualidade italiana o maquiavelismo estava mais vivo do que na época de seu aparecimento. Para o príncipe, para que haja respeito é preciso que se tema.

O partido que assume o poder não é um órgão de representação política, mas depositário único da confiança nacional e o intérprete exclusivo da vontade do povo.

É a própria nação italiana, sob o fascismo, que integra no partido e se deixa dirigir pela vontade incontrastável do homem providencial. O partido era ao mesmo tempo, Estado, nação, governo e organização produtiva.

No final de 1921, nasceu o Partido Nacional Fascista (PNF), cujo símbolo era exatamente o “fascio littorio”. Menos de um ano depois, Mussolini assume o poder. Ele fortaleceu sua influência na Itália angariando o apoio de industriais, empresários e do Vaticano, e tornou-se referência para regimes autoritários mundo afora – Francisco Franco na Espanha, António Salazar em Portugal e, sobretudo, Adolf Hitler na Alemanha (que por muito tempo manteve um busto do Duce italiano em seu escritório) tiveram em Mussolini e no seu regime uma grande fonte de inspiração.

Regime totalitário baseado num partido único, a característica fundamental do fascismo foi a militarização da política, que era tratada como uma experiência de guerra: além do projeto de expansão imperial, com a supremacia fascista imposta no Estado e na sociedade, o regime tratava os adversários como inimigos que deveriam ser eliminados. No mês passado, a Itália lembrou os 80 anos da chamada lei racial, aprovada contra os judeus e que estava em consonância ao regime nazista de Hitler.

“O fascismo sempre negou a soberania popular, enquanto o nacionalismo populista de hoje reivindica o sucesso eleitoral. Esses políticos de agora se dizem representantes do povo, pois foram eleitos pela maioria. Isso o fascismo nunca fez”, comenta Emilio Gentile.

No Brasil ele se apresentou nos anos trinta do século XX através do integralismo, que se infiltrou de forma voraz na vida nacional, produzindo obra através de vários pensadores a partir de Plínio Salgado.

III – A DEMOCRACIA MILITANTE

A democracia precisa reagir.

O princípio da democracia destina-se, pois, a amarrar um procedimento de normatização legítima do direito. Ele significa, portanto, que somente podem pretender ter validade legítima leis juridicamente capazes de ter o assentimento de todos os parceiros de direito em um processo de normatização discursiva. O princípio da democracia contém, desta forma, o sentido performativo intersubjetivo necessário da prática da autodeterminação legítima dos membros do direito que se reconhecem como membros iguais e livres de uma associação intersubjetiva estabelecida livremente.

Na lição de Habermas, o princípio da democracia pressupõe preliminarmente e necessariamente a possibilidade da decisão racional de questões práticas a serem realizadas no discurso, da qual depende a legitimidade das leis.

Para Habermas, é equitativa a ação quando a sua máxima permite uma convivência entre a liberdade do arbítrio de cada um e a liberdade de todos conforme uma lei geral.

Na democracia há a permanente realidade dialógica. No totalitarismo rompe-se o diálogo, aniquilam-se as liberdades. Desconhecem-se direitos.

Pensemos em barreiras legais à ação daqueles que advogam contra os princípios e as instituições democráticas. Nesse sentido, Karl Loewenstein propôs, em 1937, a controvertida doutrina da “democracia militante”, incorporada pela Lei Fundamental em 1949 e aplicada pela Corte Constitucional alemã nas décadas seguintes. Foi o caso do combate a organizações terroristas de esquerdas que atuaram na década de 1970 na Alemanha e no combate à extrema-direita, que tem por objetivo acabar, solapar, a democracia.

Por essa doutrina, é possível investigar e mesmo restringir direitos de grupos que ameaçam a democracia, como agora ocorre com os radicais no Brasil.

O grande exponente da teoria da democracia de militância foi o constitucionalista alemão Loewenstein (1937), o qual defendia que não deveriam sequer participar da competição política os partidos políticos que não se coadunassem com o regime democrático.

Sobre essa doutrina da democracia de militância, nos ensina Tarsila Ribeiro Marques Fernandes (Democracia Defensiva, in RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 133-147 abr./jun. 2021):

“As premissas da democracia militante, portanto, eram a de que o regime democrático deveria contar com mecanismos (ainda que antidemocráticos) para evitar que agentes políticos com ideais totalitários de poder, tais como Hitler, utilizassem instrumentos democráticos para chegar ao poder. Assim, deveriam ser criados meios para que a democracia se defendesse dos partidos que buscassem alçar-se ao poder para destruí-la. Isso porque o fascismo, classificado por Loewenstein (1937) como uma técnica política, só conseguiria ser vitorioso em razão das condições favoráveis oferecidas pelas instituições democráticas, em especial em virtude da tolerância democrática.

De acordo com Loewenstein (1937, p. 424):

A democracia foi incapaz de proibir aos inimigos de sua própria existência o uso de instrumentalidades democráticas. Até muito recentemente, o fundamentalismo democrático e a cegueira legalista não estavam dispostos a perceber que o mecanismo da democracia é o cavalo de Tróia pelo qual o inimigo entra na cidade. Ao fascismo, disfarçado de um partido político legalmente reconhecido, foram concedidas todas as oportunidades das instituições democráticas.

Com base na teoria da democracia militante, partidos políticos com objetivos antidemocráticos deveriam ter o seu registro negado ou cassado, em nome da defesa do próprio regime democrático. A necessidade de uma democracia militante, portanto, surge do imperativo de autoproteção e autopreservação da democracia (LOEWENSTEIN, 1937, p. 429).”

Isso pode-se chamar de democracia militante.

Dir-se-ia que as democracias constitucionais já estabeleceram mecanismos voltados a conter ataques aos seus pilares fundamentais. Mas, a democracia, como forma de convivência, tem sempre a sua volta o espectro de pensamentos contra ela voltados. Para tanto, há, como no Brasil, com sua Constituição-cidadã de 1988, a fixação de cláusulas pétreas que defendem a sua integridade contra qualquer possibilidade de alteração. Isso é um indicativo a Corte Constitucional, suprema guardiã da Carta Democrática, para a sua atuação. Um desses pontos que não podem ser objeto de alteração é o respeito a independência dos poderes.

Tal serve de alerta para o Brasil onde temos um Executivo em flerte com a ditadura e o autogolpe.

Disse ainda Tarsila Ribeiro Marques Fernandes (obra citada):

“Por essas razões, para que a democracia possa sobreviver, é imprescindível que mecanismos sejam criados no ambiente democrático a fim de restringir a liberdade de grupos ou atores políticos que, por meio de ideias totalitárias ou intolerantes, ameacem a própria democracia. Nesse ponto, percebe-se que as ideias de Loewenstein e de Popper se aproximam no sentido de defender a necessidade de exclusão de certos grupos políticos como forma de sobrevivência da democracia. De uma maneira objetiva, pode-se concluir que a lógica tanto da democracia militante quanto do paradoxo da tolerância é no sentido de que a democracia não pode transformar-se num pacto suicida, razão pela qual devem ser garantidos mecanismos para a legítima defesa da ordem democrática.”

Não há convivência entre a extrema-direita fascista e a democracia, homenageada pela Constituição de 1988 que elegeu o Estado Democrático de Direito como meio de convivência de nossa sociedade.

No Brasil, o chamado inquérito em que o Supremo Tribunal Federal apura a existência e materialização de atos antidemocráticos é um exemplo claro da aplicação dessas teses da democracia defensiva.

Aliás, os julgamentos preferidos pelo STF nas ADIs nos 6.347, 6.351 e 6.353 e na ADPF no 572 demonstram que a teoria da democracia defensiva, ainda que sem referência ao seu nome, já tem sido objeto de aplicação prática. Ademais, esses julgamentos evidenciam que a Suprema Corte brasileira está consciente do momento de crise aguda que o País enfrenta e do seu papel como um dos garantidores da democracia.

Em caso de erosão da democracia e de hipertrofia de algum dos Poderes, as demais instituições devem agir de forma firme e proporcional ao ataque sofrido.

Temos para tanto, como defesa, nossa Constituição-cidadã, que é o único caminho viável e democrático para a superação da crise.

Na democracia brasileira, sob o bojo da Constituição-cidadã de 1988, não há lugar para Jair Messias Bolsonaro, candidato da extrema-direta.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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