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Um diálogo sobre pessimismo e otimismo na pós-pandemia: Será a humanidade essencialmente desumana?

Por Robério Paulino*

Depois da minha última Reflexões sobre a Pandemia, publicada aqui, na qual discuti as possibilidades de avanço e os perigos de retrocesso que vive a civilização nessa grave crise, diversos amigos de várias partes do país e mesmo do exterior me fizeram chegar seus comentários. E a maioria deles com uma crítica de que, apesar de eu ter apontado no texto tanto as possibilidades de avanço quanto de retrocesso social na saída dessa pandemia, de fato meu texto seria exageradamente otimista e subestimaria os retrocessos que vêm ocorrendo no Brasil e no mundo.

Muitos criticaram também o texto que citei de Zizek (2020), onde ele prevê uma humanidade melhor e mais solidária depois dessa crise, visão que para esses amigos seria demasiadamente pragmática, ingênua e otimista. Por isso resolvi dar seguimento a esse debate, usando nesse novo texto mesmo a primeira pessoa, o que não costumo fazer.

Não só pela reação a meu último artigo, mas pelo que observamos nas redes sociais, nos comentários de muitos analistas, constata-se que existe no mundo nas últimas décadas uma onda geral de ceticismo, de desesperança em uma alternativa societária melhor, e isso também é visível durante a comoção pela qual passa no momento a humanidade. Esse sentimento é perceptível mesmo nos círculos de esquerda, que em tese acreditam e lutam pela construção de uma sociedade superior. Evidentemente, esse pensamento é potencializado pela pandemia, que isola milhões em suas casas e leva a um clima de impotência. Têm aumentado muito os casos de depressão e doenças neurológicas nessa quarentena.

No Brasil, a pandemia se combina com uma crise política, com a decepção de grande parte da população com o governo Bolsonaro e a constatação que o país está sob um governo de direita irracional, messiânico, negacionista, que agrava a emergência sanitária com suas atitudes. Muitos estão decepcionados também com a falta de reação da maioria da população às reformas, aos ataques aos direitos sociais no último período. Nesse momento, questionam por que, apesar dos arroubos do presidente, que solapa os esforços coletivos de combate ao vírus, na contramão de todas as recomendações da ciência médica e da OMS, 1/3 ou mais da população segue apoiando o governo e porque demora tanto um impeachment.

Nas redes sociais, muitos afirmam que as pessoas que apoiam Bolsonaro não o fazem enganadas, na verdade seriam más, iguais ao seu líder, o que implicaria colocar nessa categoria dezenas de milhões de pessoas. Alguns só veem retrocesso no país e no mundo e um futuro imediato pior. Descreem de qualquer lado bom da alma humana. Outros destacam a paralisia dos trabalhadores, mesmo os organizados em sindicatos. Estariam certos esses amigos? Alguns começam mesmo a desacreditar do ser humano, dos povos, dos trabalhadores, do futuro da civilização. Esse texto pretende dialogar com esse sentimento geral e discutir se devemos estar pessimistas ou otimistas com as possíveis saídas dessa crise.

De fato, se observarmos apenas o fim do século passado e as duas primeiras décadas do século que corre, não temos muitos motivos para otimismo. As tentativas de construção de uma sociedade socialista no Século XX se burocratizaram e depois colapsaram, com os países que a tentaram retornando ao capitalismo, como na Rússia e na China. No último período, temos visto a volta de governos de direita ao comando de países altamente escolarizados, como Trump. Partidos de extrema direita, alguns diretamente fascistas, vêm tendo votações maiores, mesmo na Europa. A xenofobia e a intolerância voltam com força mesmo nesse continente altamente escolarizado.

No terreno econômico e social, o neoliberalismo, apesar da grave crise financeira que gerou em 2008, segue à frente de muitos governos, suprimindo milhões de empregos e cortando salários e direitos sociais. A desigualdade social e a concentração de renda voltaram a patamares de antes de 1929. A pobreza revelada nesses poucos meses de pandemia vem chocando a muitos. Apesar do empobrecimento das populações, os sistemas de proteção social e de saúde pública vinham sendo corroídos, mesmo em países centrais. No caso dos EUA, na verdade quase já não existem.

No aspecto ambiental, a ação humana é destrutiva para a natureza e para as demais espécies. O clima do planeta vem sendo alterado de forma talvez irreversível. Muitas espécies estão em extinção pela ação humana. Rios e mares estão cada vez mais poluídos com todo tipo de detritos. Florestas imensas são queimadas. A atmosfera se aquece e pode ter sua temperatura média elevada em até 1 grau Celsius até o final do presente século, conforme previsões do IPCC. Secas, inundações, desertificação de muitas áreas, fomes severas, poderão ser algumas das consequências.

O risco de novas guerras arrasadoras segue latente. Vários países continuam com arsenais nucleares que podem destruir instantaneamente todas as grandes cidades do mundo. Nestes dias de pandemia, passou despercebido de muitos a ameaça da Rússia de retaliar diretamente com mísseis nucleares um possível lançamento de foguetes norte-americanos próximo ao seu território, lembrando os tempos da Guerra Fria. O Oriente Médio e a Palestina são barris de pólvora. Como consequência das guerras recentes no mundo, milhões vivem em campos de refugiados, em condições sub-humanas.

Na verdade, a história do sapiens não é só de avanços, progresso e coisas belas. Infelizmente, a saga humana também foi construída sobre um rastro de guerras, massacres, mortes, sangue, opressão, desigualdade, sofrimento, dor. Foi isso que procurei mostrar em meu último texto, apontando que mesmo depois dessa pandemia, os riscos de retrocesso civilizatório, de retorno ao caos, à barbárie, seguem presentes, não podem ser descartados, especialmente se o setor mais consciente de nossa espécie não agir enquanto é tempo.

Seria o sapiens essencialmente mau?

Frente às atrocidades e perversidades que observamos, muitas pessoas tendem a buscar a explicação da violência, da desigualdade, das barbáries que observamos, na natureza humana, que seria essencialmente má. Para elas, o ser humano seria egoísta, possesivo, violento contra os semelhantes, o que explicaria a história de guerras, massacres, opressões. Essa visão encontra respaldo no campo da Filosofia. Para o filósofo Thomas Hobbes, que viveu na virada entre os séculos XVI e XVII, o ser humano é essencialmente mau. Essa concepção pode ser encontrada na sua obra O Leviatã (1979). Como o homem não é um ser do bem e não saberia viver em sociedade, é preciso então que uma autoridade superior imponha a ele as regras de convivência, justificando-se assim um Estado absolutista. No sentido oposto, o filósofo Jean-Jacques Rousseau, em Do contrato social (1973) considerava que o homem tem uma natureza essencialmente boa, mas que seria corrompida pelo processo civilizador, ou seja, pela sociedade. O homem nasce bom e livre e ao crescer e viver, por todo lado é violentado, se corrompendo então.

Talvez uma das melhores discussões sobre a natureza humana tenha sido feita pela filósofa política alemã de origem judaica Hannah Arendt, em seu livro Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal (1999). Depois de sequestrado por um comando israelense, o carrasco nazista Eichmann é levado a julgamento em Jerusalém. No entanto, durante o julgamento, em vez de um monstro assassino que todos esperavam, o que surge é um funcionário nazista medíocre, um arrivista completamente incapaz de refletir sobre as atrocidades que havia praticado ao mandar milhões de seres humanos para a morte nos campos de concentração, repetindo clichês típicos de um funcionário obediente apenas.

Não é na natureza humana, no entanto, que devemos buscar as explicações para os acontecimentos humanos, os processos sociais, ainda que não sejam secundárias as diferenças de caráter adquiridas pelos indivíduos em sua vida. A formação das mentalidades e as personalidades dos indivíduos devem ser explicadas antes de tudo pelo seu meio social, a sociedade, com seus valores culturais, e pela família, no quais nasceram e vivem. É difícil acreditar que uma criança nasça má, com um “pecado original”. Uma criança nasce uma página em branco, pura. É a educação que recebem na família, na escola e na sociedade que vão moldar o seu comportamento posterior. Uma sociedade desigual, brutalizada, inculta, egoísta, gerará indivíduos igualmente brutos, com valores negativos, com óbvias exceções. Já uma família e uma sociedade com valores humanos mais elevados, formará indivíduos melhores.

É a condição social a que são submetidos, que divide os seres humanos em classes e perpetua a exploração e a desigualdade, que vai levar os indivíduos a tomarem consciência de sua situação e começarem a lutar por uma sociedade melhor, mais justa, igualitária e pacífica. Ao contrário do que prega a ideologia capitalista atual, de que a é saída para uma vida melhor é individual e isso pode levar ao engrandecimento social, o que se vê no mundo neste momento é um empobrecimento geral das populações, uma precarização das relações de trabalho, com grande elevação da desigualdade e da pobreza, mesmo nos países centrais. Para ser vitoriosa, a luta só pode ser coletiva.

Também temos motivos para otimismo

O que procurei mostrar em meu último texto, no entanto, é que nem tudo é motivo para pessimismo, nem tudo está perdido, que existem muitos traços da realidade que nos levam a crer em um futuro melhor para a civilização, apesar dos imensos perigos que moram ao lado. Dei vários exemplos e aqui retomo alguns.

Há apenas 80 anos não existiam sistemas de proteção social universais, mesmo na Europa; hoje eles existem, mesmo precarizados. O neoliberalismo, apesar de sua fúria depois de 1979/80, não conseguiu destruí-los em todos os lugares; alguns seguiram mesmo sendo ampliados de lá para cá. Nessa pandemia, eles demonstram toda sua essencialidade e muito provavelmente terão que ser reforçados, queiram os governos capitalistas ou não. Muito em breve os trabalhadores da saúde, por exemplo, sairão dos hospitais para a ruas, com uma imensa autoridade. Já veremos.

Hospitais públicos, como temos no Brasil atualmente, ainda que precários, sequer existiam há 100 anos. Médicos eram raros. Hoje, em todo mundo, poucas pessoas não estão vacinadas contra as doenças mais sérias. Até os séculos XVIII e mesmo XIX, mesmo a nobreza sequer escovava os dentes, nem sabia o que era um sabonete; hoje poucos seres humanos não têm acesso a um creme dental barato. Em 1800, um nobre ou um capitalista rico não tinham os remédios que hoje mesmo as populações mais pobres têm acesso, como os antibióticos. Por isso, apontei no meu último texto como se elevou muito a expectativa de vida em todo mundo nas últimas décadas.

Basta olhar a nossa volta, em nossas casas, nas ruas, e observar a quantidade de bens e serviços de que dispomos, mesmo nas residências mais pobres: geladeiras, fogões, televisores, móveis, energia elétrica, lâmpadas, água encanada, talheres de aço, copos, móveis, roupas industrializadas, tênis etc. A transformação pela qual passou a China em apenas 70 anos, saindo de um país eminentemente rural para um país industrial, escolarizado e moderno, dá a dimensão das transformações vividas nessas últimas décadas. Bastaria também comparar o Brasil rural e analfabeto de 1950 com o país de hoje, para entendermos do que falo.

Há apenas 70 anos, mais de 90% dos seres humanos eram praticamente analfabetos; hoje, felizmente, a imensa maioria das crianças, mesmo nos continentes mais pobres, como na África, estão na escola. Há 100 anos, as mulheres não votavam; hoje votam. Os analfabetos idem. No Brasil, até 1988 não existia aposentadoria rural; hoje milhões a recebem. Eu poderia seguir dando exemplos para mostrar que, apesar de tudo, de todas as guerras, atrocidades, desigualdade, a humanidade hoje está muito maior e melhor material e culturalmente do que em épocas anteriores. O prejuízo ficou com animais e plantas, que viram seu número e suas áreas vitais drasticamente suprimidas pelo sapiens.

Esses avanços não se deram por obra do capitalismo, com seu ímpeto avassalador, mas apesar dele. Ocorreram porque, apesar de tudo de ruim que vemos, as populações, os povos, as massas trabalhadoras exigem, lutam, conquistam. E porque a ciência e o conhecimento humano progridem cada vez mais rapidamente e permitem rápidos avanços na tecnologia, na produtividade, na medicina, na educação etc. Mas é inegável que, pelo medo das revoluções sociais, para não desaparecer do mundo enquanto sistema social, o capitalismo demonstrou-se de uma adaptabilidade imensa, de grande plasticidade.

No terreno da política, o mundo de até 400 anos atrás era um mundo de poderes absolutistas, um mundo de opressão, sem qualquer participação das massas populares. Foram necessárias muitas revoluções, mortes, muito sangue, para trazer ao mundo a limitada democracia burguesa representativa que temos hoje. Ela é uma conquista que hoje temos que defender contra os fascistas, que pregam regresso a ditaduras.

Os retrocessos que hoje observamos, seja no campo dos direitos sociais e civis ou da democracia, nos devem deixar alertas. Mas para avaliar se a humanidade tem avançado ou regredido, devemos ampliar nossos horizontes, olhar em perspectiva sobre vários séculos. E se assim o fizermos, a conclusão evidente é que a humanidade – apesar de tudo de negativo que citamos, guerras, massacres, violência, desigualdades, pobreza – está melhor, muito maior, mais longeva, mais rica, senhora do planeta sobre os demais animais e plantas.

O que tentei apontar no meu último artigo é que temos tanto motivo para temer um retrocesso sim, como para esperar e lutar por uma saída positiva após essa pandemia. Apesar de tudo de ruim que constatamos, a humanidade não tem vocação para suicida, soube achar o caminho até aqui, através de milhares de anos. Cientistas trabalham febrilmente para conseguir uma vacina ou um coquetel de remédios contra o vírus e em breve o conseguirão. Ademais, a maioria dos infectados desenvolve anticorpos contra a doença, pelo aprendizado de milhares de anos de nosso sistema imunológico.

Nesse momento, grande parte da humanidade está paralisada em casa, acuada por um inimigo perigoso e invisível. Mas, se não todos, pelo menos milhões de pessoas estão refletindo sobre as causas e lições desse cataclismo. Os jovens, as novas gerações, que terão o futuro em suas mãos, estão aprendendo, refletindo, sobre o atual curso equivocado das sociedades, e poderão dar um futuro diferente à civilização. Um mundo melhor, mais solidário, mais igualitário e de paz é possível.

Além disso, é só uma questão de tempo a volta de novas lutas sociais. A paralisia temporária que observamos no Brasil não será para sempre. O retrocesso que vivemos no país no último período e nas últimas eleições, que levou um fascista ao governo, poderá ser revertido. O desgaste, as divisões e o afastamento de Bolsonaro de vários de seus aliados de ontem, com menos de 1 ano e meio de governo, indica a dura dialética dos processos, de que nada dura muito em nossa época, tudo é passageiro, até as derrotas.

Miremo-nos no belíssimo exemplo recente do Chile, de uma explosão social que levou milhões às ruas no país onde o capital mais precocemente aplicou um duro plano neoliberal. Em 2019, a juventude e a população daquele país nos deram uma emocionante lição, de que avançar através da luta social, coletiva, nas ruas, é plenamente possível. Depende de cada um de nós. Depende de você que leu esse texto até aqui de fazer a coisa certa.

REFERÊNCIAS

 

ARENDT, Hannah, Eichmann em Jerusalém, Um relato sobre a banalidade do mal. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural (Coleção Os Pensadores), 1979.

ROUSSEAU, J. J. Do contrato social. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores)

ZIZEK, Slavoj. Zizek: O nascimento de um novo comunismo. Entrevista ao jornal La Repubblica. Traduzido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Publicado no portal outraspalavras.net.  Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/zizek-o-nascimento-de-um-novo-comunismo/. Acesso em: 08 de maio de 2020.   

*É professor da UFRN, no Departamento de Políticas Públicas, Natal.

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Crônica

Sairá a humanidade melhor dessa pandemia? As possibilidades de avanço e os perigos de retrocesso que nos cercam

Por Robério Paulino*

As grandes crises ou comoções humanas, como a que vivemos nessa pandemia, sempre geram esperanças em muitos corações e mentes de que as sociedades e os indivíduos reflitam e modifiquem para melhor seus padrões de comportamento anterior. O sofrimento, às vezes, ensina. É perceptível nesse momento a esperança por parte de amplos setores das populações de que a humanidade saia melhor dessa pandemia mais solidária, mais reflexiva, com mais compaixão, menos violenta e mais pacífica, menos individualista, consumista e destrutiva para o planeta.

É visível também a grande expectativa de parte dos setores mais conscientes de que essa crise contribua para superar ou arrefecer o ímpeto destrutivo do sistema capitalista e sua forma mais agressiva e irracional, o neoliberalismo, levando à reversão de um quadro de tanta desigualdade e pobreza das populações, mais uma vez tristemente revelado nesses dias. Os governos de países capitalistas têm sido obrigados nessa pandemia a elevar sensivelmente os gastos públicos, seja para socorrer empresas, para o controle da doença ou para não deixar cair o consumo demasiadamente, evitando recessões ainda mais severas do que as previstas.

Não está claro ainda como a conta dos gastos dessa pandemia será paga, mas, a depender de alguns governos, a orientação neoliberal não será afastada e a fatura será passada em breve aos trabalhadores e às populações, como já se aprovou no Brasil. Contudo, essa crise também pode levar a um arrefecimento do ímpeto neoliberal, a depender das reações das populações e dos trabalhadores, que se neguem a pagar essa fatura.

GRAVES CRISES TAMBÉM GERARAM GRANDES RETROCESSOS

Vemos alguns analistas dizerem que a humanidade não será a mesma depois dessa pandemia, sugerindo que ela poderá sair melhor, mais reflexiva e solidária dessa comoção. A história humana mostra, no entanto, que crises econômicas e políticas e pestes arrasadoras nem sempre são sinal de aprendizado, de mudança para melhor. Muitas catástrofes deram espaço a grandes retrocessos, a involução, a barbárie. Como no passado, nessa grande comoção em curso há uma luta de ideias e interesses em choque, que pode levar a civilização para um lado ou para outro, para frente ou para trás, a depender da capacidade dos campos em luta de chegar aos corações e mentes de bilhões.

São muitos os exemplos de retrocessos depois das grandes crises sociais.  A decomposição do Império Romano é um exemplo que levou a uma grande involução, abrindo caminho para uma longa noite de obscurantismo e terror na Idade Média, a um processo esvaziamento das cidades, de ruralização, isolamento da vida social em pequenas comunidades, queda das trocas comerciais de longa distância, quase desaparecimento da moeda e rebaixamento geral da cultura e das condições de existência em toda a Europa Ocidental. Estima-se que Roma, em seu auge, tenha chegado a ter uma população entre 800 mil a 1,5 milhão de habitantes. Depois das invasões e da decomposição do Império, sua população caiu para menos de 50 mil habitantes.

Outro exemplo de saída negativa depois de uma crise foram os acontecimentos que se seguiram à Grande Depressão iniciada em 1929, nos EUA, mas que se propagou para todo o mundo. Aquele crash mergulhou a economia mundial e de muitos países numa profunda recessão, com o fechamento de milhares de empresas e milhões de desempregados. A quebra da economia na Alemanha, o alto desemprego, a inflação descontrolada, que jogava nas alturas os preços e transformava a moeda em fumaça, gerando desespero na população, facilitaram a ascensão do nazismo, que capturava e transformava em ódio o sentimento nacionalista, fruto da humilhação da Alemanha depois da derrota na I Guerra Mundial. O resultado foi a II Guerra Mundial, conflito que matou até 80 milhões de seres humanos e ensejou os horrores do Holocausto e a explosão de duas bombas atômicas sobre o Japão.

A crise da economia capitalista aberta em 2008, gerada pelo liberalismo econômico radical e pela acelerada financeirização da economia, apesar de não ter a dimensão de tragédia das duas guerras mundiais, gerou quebradeira de empresas e bancos e desemprego maior. Não levou a uma saída positiva e não afastou o neoliberalismo da condução da economia dos países. Mesmo depois daquela perturbação, os ataques aos sistemas de proteção social continuaram. A aceleração da desindustrialização em curso no Ocidente e os novos cortes de milhões de empregos levaram a uma precarização cada vez maior das condições de trabalho, à queda dos salários e à uma reconcentração de renda de patamares não vistos há décadas, similares ao período pré-1929.

Outro exemplo de desenlace negativo, de que nem sempre situações de convulsão ou crises levam a saídas melhores e sim a retrocessos, são as desilusões com governos de esquerda ou considerados progressistas, quando estes chegam ao comando dos países e frustram as esperanças das populações. Ao contrário do que às vezes esperam organizações socialistas mais radicais, de que essas decepções aumentem a audiência para elas, na maior parte das vezes essas frustrações têm conduzido à volta de partidos de direita e mesmo fascistas ao comando dos países.

A SAÍDA TAMBÉM PODE SER PARA MELHOR

Mas, felizmente, nem sempre as saídas das grandes crises ocorrem pelo lado negativo. Se algumas grandes comoções humanas conduziram a retrocessos, outras levaram a humanidade a repensar o curso e seguir em frente melhor, se superar. Situações adversas podem sim abrir espaço para o novo, para avanços, como torcemos para que aconteça agora. Ao longo de milhares de anos, nossa espécie se destacou das demais e se impôs como senhora do planeta exatamente por sua imensa capacidade de adaptação aos mais distintos e inóspitos ambientes, por sua flexibilidade, seu grande poder de refletir e aprender rapidamente com as maiores dificuldades, com as tragédias, saindo em frente das grandes comoções.

Como explicar que apesar de todas as pestes, secas, grandes fomes, catástrofes ambientais, guerras locais ou mundiais com milhões de mortos, a humanidade tenha chegado a quase 8 bilhões de seres e esteja vivendo mais, com uma expectativa de vida de quase o dobro de meados do século XIX, senão por este instinto de preservação e superação? Os exemplos na história são inúmeros.

A unidade de muitos países na Segunda Guerra contra o nazismo é um deles. Mesmo com a antiga URSS sendo um país que se declarava socialista, portanto uma ameaça ao seu sistema social, países capitalistas como EUA e Inglaterra foram forçados a se unirem a ela contra as tropas de Hitler, por saberem que uma vitória desse último poderia significar uma longa noite de obscurantismo e terror no mundo.

A Segunda Guerra Mundial também levou à formação da ONU e seus organismos, um embrião de Estado mundial, que, por mais que defenda os interesses do grande capital, tem princípios nobres e elevados em sua carta de fundação. Ali se estabeleceu um palco de negociações que, se não impediu muitas novas guerras localizadas e ações imperialistas dos EUA, por exemplo, talvez tenha até agora evitado um novo conflito mundial generalizado e terminal para a civilização. Apesar das intervenções patrocinadas por essa organização em muitos países, um aspecto negativo, a existência de muitos organismos internacionais que cumprem papel positivo essencial, como a OMS e o PNUD, por exemplo, foi possível também pela existência da ONU.

A Guerra Civil nos EUA, entre 1861 e 1865, uma das mais mortíferas até o século XIX, teve como saldos positivos acelerar o fim da escravidão, estabelecer em todo seu território um Estado liberal capitalista, acelerar a distribuição de terras a milhões de novos colonos, negando a extensão dos latifúndios escravistas do Sul, e ampliar vários direitos civis. De negativo, acelerou o genocídio indígena e deixou muitos negros libertos de fora daqueles novos direitos.

No Brasil, a grave crise econômica do início da década de 1980 trouxe muito desemprego, mas também teve como saldo positivo acelerar o fim da ditadura militar, inaugurando o período de democracia parlamentar capitalista que vivemos, mesmo que muita limitada, possibilitando uma Constituição melhor, com novos direitos sociais, conquistas que hoje o capital busca ceifar. Tivemos mesmo a oportunidade de um partido com origem na esquerda chegar ao governo, experiência que infelizmente não atendeu às expectativas geradas e abriu espaço para a chegada da ultradireita ao comando do país no momento.

Na pandemia atual, nada garante que o mundo vai mudar para melhor. Mas observamos alguns exemplos positivos e muito alentadores de solidariedade internacionalista. Talvez nunca se tenha visto uma colaboração tão próxima entre países durante uma crise como a que se observa no momento entre alguns dos principais governos europeus. A China enviou um avião com médicos especialistas e toneladas de remédios para a Itália, que também recebeu a solidariedade de Cuba, através de médicos, coisa antes impensável. A Rússia também mandou um comboio de ajuda humanitária. Cientistas de todo o mundo cooperam intensamente nesse momento, trocam informações, correm contra o tempo para obter uma vacina ou descobrir um coquetel de remédios que possa derrotar a COVID-19, o que será rapidamente compartilhado.

No Brasil desses dias, a pandemia tem levado a que muitos governadores e outros líderes que apoiaram Bolsonaro tenham que dele se afastar, por seu comportamento irracional. Há uma clara crise no campo capitalista sobre a condução da crise. Além de defenderem o isolamento social, mesmo paralisando em grande medida a economia capitalista, muitos deles e o próprio Congresso Nacional têm sido obrigados a elevar os gastos públicos, a exemplos de outros países, na contramão do neoliberalismo que sempre praticaram. Temem se desgastarem e sentem medo de uma explosão social das dezenas de milhões de trabalhadores pobres que de repente ficaram sem qualquer fonte de sobrevivência nessa pandemia.

Exemplos como esses acima nos fazem esperar e torcer para que essa comoção pela qual passamos possa também contribuir para uma saída em frente, para uma humanidade melhor. O pessimismo da razão nunca pode anular o otimismo da vontade. Talvez nunca na história da civilização a humanidade tenha se sentido tanto como uma comunidade única quanto nessa pandemia, enfrentando uma ameaça global simultaneamente, de forma integrada e relativamente coordenada, com a OMS à frente dos esforços. As cenas das maiores cidades mundiais desertas, de hospitais colapsados e o sofrimento de tantos têm comovido a muitos e os levado a refletir sobre o acionar e a condição humana.

Em entrevista ao jornal La Repubblica, o filósofo Slavoj Zizek disse acreditar que, em vez de um retrocesso, com essa crise, os laços de comunidade na humanidade saem fortalecidos. Para ele “Um novo senso de comunidade: é isso que está emergindo dessa crise. Uma espécie de novo pensamento comunista, distante do comunismo histórico. A banal descoberta de que coordenação e cooperação globais são necessárias para combater o vírus tem um viés revolucionário. Estamos redescobrindo o quanto precisamos uns dos outros”.  Ele afirma que, contra suas próprias políticas liberais, alguns governos estão sendo obrigados a adotar políticas de fato socialistas (2019). Torçamos para que Zizek esteja correto.

Uma marcha à ré após essa grande comoção não está descartada, com o capital tentando passar toda a conta dos gastos de combate ao vírus para as populações e os trabalhadores e estabelecer outras medidas autoritárias, como já se observa no Brasil. Por outro lado, um passo para frente vai depender da mobilização dos povos e dos trabalhadores na saída da pandemia, que, tirando as lições de toda essa crise pela qual passamos, não aceitem qualquer corte em conquistas sociais e salários, exijam a ampliação dos serviços públicos que vinham sendo destruídos e que se demonstraram tão essenciais numa emergência como essa. Essa é uma das lições fundamentais dessa crise. Sem sistemas de proteção social públicos como na China, na Europa, no Brasil e outros países, essa pandemia iria matar muito mais pessoas.

Existe também a hipótese de que não haja um desfecho global único nessa crise, que as saídas sejam diferentes nos distintos países, ou seja, uma saída desigual, na qual alguns países avancem, melhorem ou recomponham minimamente seus sistemas de proteção sociais e os instrumentos de enfrentamento de calamidades, enquanto outros retrocedam. A China pode sair mais forte dessa crise, como também a Alemanha, pelos exemplos de rigor com o qual enfrentaram a pandemia, enquanto os EUA se enfraqueçam um pouco mais, revelando ao mundo toda a precariedade de seu sistema de proteção social, em contradição com seu poderio econômico, se enfraquecendo no jogo da geopolítica mundial. No Brasil, o desfecho não está dado, mas até aqui podemos afirmar que haverá certamente um fortalecimento dos estados na sua relação com a União e um clamor pela melhoria do sistema de saúde pública logo que passe a pandemia.

Uma saída global para melhor nesse momento dependerá, também, da compreensão coletiva das origens dessa pandemia, que leve a humanidade a rever toda sua ação destrutiva sobre o planeta e mudar seu sistema social e produtivo, voltado apenas ao lucro de uma minoria, baseado no individualismo e no consumismo. Como mostramos acima e levantou como hipótese Zizek, talvez frente à uma ameaça global, esteja ocorrendo um impulso de solidariedade global, ainda que incipiente. Frente à grave comoção pela qual passa a humanidade no momento, quem sabe nossa espécie possa refletir que nossas diferenças são menores frente às ameaças de extinção da civilização e estejamos tendo que trabalhar juntos para encontrar a saída.

Não estamos entre os que pensam que o sofrimento enobrece ou coisas do tipo. Mas muitas vezes grandes traumas na vida dos indivíduos ou das sociedades podem levar à reflexão, ao amadurecimento. Em tempos difíceis, em grandes crises, a humanidade muitas vezes se elevou, se superou, avançou, demonstrou grandeza, como mostramos acima. Como já assinalado, um retrocesso não está descartado. Mas lutemos para esse cataclismo que assola a civilização e a quarentena que isola bilhões de nós em nossas casas ao mesmo tempo nos torne mais reflexivos e, quem sabe, mais humanos, nos ensine que a cura talvez esteja antes de tudo na solidariedade entre todos.

Assim como não podemos descartar um retrocesso depois dessa crise, se ela se agravar, lutemos para construir a partir dessa grande comoção social uma nova civilização, baseada em outros valores mais elevados, como igualdade de direitos e oportunidades para todos, fim da exploração de uns seres por outros, solidariedade entre todos os povos, compaixão, sustentabilidade e preservação de toda a vida no planeta. A humanidade de fato jamais será a mesma depois dessa crise. Quem sabe depois dessa sacudida pela qual passamos comece a surgir um mundo novo, diferente, melhor, mais solidário, que aproxime a todos os povos, derrube barreiras, fronteiras, supere o atual sistema econômico, e nos ensine que estamos todos em um único barco.

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*É professor da UFRN, no Departamento de Políticas Públicas, Natal.

Referências

ZIZEK, Slavoj. Zizek: O nascimento de um novo comunismo. Entrevista ao jornal La Repubblica. Traduzido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Publicado no portal outraspalavras.net.  Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/zizek-o-nascimento-de-um-novo-comunismo/. Acesso em: 08 de maio de 2020.