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As chamadas milícias

Por Rogério Tadeu Romano*

Era o ano de 2006 e uma pesquisa realizada pela Prefeitura do Rio de Janeiro mostrava que, em pelo menos noventa favelas daquela cidade, grupos armados cobram dinheiro dos moradores para manter a ordem.

São as chamadas milícias, verdadeiras quadrilhas, que ditam regras na comunidade, substituindo o Estado, na missão de segurança armada, fazendo o papel de ¨policiamento oficial¨, castigando quem comete, segundo eles, infringência às normas por eles elaboradas.

Milícia é a designação que se dá às organizações militares ou paramilitares compostas por cidadãos comuns, armados ou com poder de polícia.

Carlos Gilberto Martins Junior (A atuação das milícias e o impacto à segurança pública no Estado do Rio de Janeiro: uma análise crítica do modelo de segurança à luz da cidadania) nos disse:

“O dispositivo legal referente ao crime de Constituição de Milícia Privada (art. 288-A do Código Penal) ingressou no ordenamento jurídico através da Lei nº 12.720/2012. De acordo com a norma, “constituir, organizar, integrar, manter ou custear” quaisquer dos tipos de associação descritos como “organização paramilitar”, “milícia particular” “grupo” ou “esquadrão”, com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos no Código Penal, se enquadraria nesta conduta delituosa. A Lei nº 12.720/2012, além de tipificar um novo crime, trouxe também duas novas causas de aumento, uma para o crime de homicídio (art. 121, § 6º, do Código Penal), e outra para o crime de lesão corporal (art. 129, § 7º, Código Penal), elevando a reprovação do agente caso ele integre ou faça parte da milícia. A pena para tal delito é de 4 (quatro) a 8 (oito) anos de reclusão, e a ação penal é de iniciativa pública e incondicionada.”.

Como tal a milícia é crime contra a paz pública, que exige o dolo e é um crime de perigo.

Atualmente temos a Lei 12.720, de 2012.

Pelo texto, que foi objeto de sanção, há crime de reclusão de quatro a oito anos, para quem constitui, organiza, mantém ou custeia organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar crimes previstos no Código Penal. Tal punição poderá ser ainda maior se um crime de homicídio for cometido pelas milícias sob o pretexto de prestar serviço de segurança, sendo a pena aumentada de um terço até a metade.

Lembrou ainda Carlos Gilberto Martins Junior (obra citada) que, na lição de Bitencourt (Tratado de Direito Penal 4 – Parte Especial. São Paulo: Editora Saraiva, 2021. E-book.), o bem jurídico tutelado por esta norma incriminadora seria, enfatizando-se o aspecto subjetivo de ordem ou paz pública, o sentimento coletivo de segurança na ordem e proteção pelo direito. Em outras palavras, o sentimento da população quanto ao medo e o risco da segurança social ser abalada, e não propriamente a paz pública (embora este crime esteja previsto no título atinente aos crimes contra a paz pública). Portanto, a própria existência desses grupos e a finalidade de cometer crimes (independentemente dos crimes que venham a cometer), já é capaz de produzir um sentimento de insegurança e medo

Luiz Regis Prado (. Tratado de Direito Penal Brasileiro – Parte Especial – Vol. 3. São Paulo: Grupo GEN, 2021. E-book) ensinou que organização paramilitar pode ser entendida como:(…) uma associação não oficial de pessoas, organizadas segundo uma estrutura paralela à militar, ou seja, que tem as características de uma tropa militar – hierarquizada como o exército, por exemplo –, sem que o seja do ponto de vista formal ou legalmente. Em outras palavras, a organização paramilitar assemelha-se às forças militares em estrutura (hierarquização de cargos, armamento, missões, ataques etc.), sempre à margem da lei. Milícia particular pode ser analisada como “uma corporação ou grupamento sujeitos à disciplina e à organização de matiz castrense.

No estudo da matéria, são encontrados casos de milícias, em organizações da administração pública terceirizada e que possuam estatuto militar, não pertençam às Forças Armadas de um país.

No Rio de Janeiro, foram encontrados exemplos de milícias que controlavam favelas. Eram formadas por policiais, bombeiros, vigilantes, agentes penitenciários e militares, fora do serviço ou na ativa. A princípio, com a intenção de garantir a segurança contra traficantes, os milicianos passaram a intimidar e extorquir moradores e comerciantes, cobrando uma ¨taxa de proteção¨. Através do controle armado, esses grupos também controlavam o fornecimento de muitos serviços aos moradores, como atividades de transporte alternativo (que serve aos bairros da periferia), a distribuição de gás, a instalação clandestina de TV a cabo.

Segundo um levantamento do portal G1, grupos milicianos têm sob sua influência áreas de 11 municípios na região metropolitana do Rio, onde vive um total de 2 milhões de pessoas. Originalmente compostos por policiais civis e militares, bombeiros e agentes penitenciários, esses grupos armados controlam diversos negócios (como distribuição de água e gás), funcionando como um estado paralelo.

A maioria dos agentes da segurança pública envolvidos com esses grupos são policiais militares (RIO DE JANEIRO, 2008), portanto, agentes detentores do monopólio do uso da força, que não é usada para preservar a ordem, mas tão somente para garantir o domínio territorial e a exploração da comunidade.

Tornou-se a milícia uma parte do Estado.

Aliás, Carlos Gilberto Martins Junior (obra citada) realça:

“O poder conferido a essas corporações se tornou uma arma de dominação, um instrumento que favorece a criminalidade, ao invés de combatê-la. Sustenta-se o entendimento de que as milícias não se inserem em um contexto de Estado paralelo, ou de ausência de Estado, mas sim de um verdadeiro “desdobramento” dele próprio, pois o instrumento de poder e, invariavelmente, o legitimador da atuação abusiva e impositiva desses grupos é o próprio poder estatal, usado pelo agente de segurança (BRAMA, 2019, p. 8). Logo, tem-se que a presença do Estado foi fundamental para a formação das milícias cariocas, compondo-as através de seus agentes (BRAMA, 2019, p. 7).

…..

A conduta das milícias analisada a partir do contexto de exploração econômica da população das zonas periféricas, por agentes do Estado, sob o véu da segurança privada clandestina que resulta em domínio territorial, já foi largamente debatida em tópicos anteriores. Entretanto, este assunto é trazido novamente à baila, mas, com um objetivo diferente: será feita uma nova abordagem dos meios pelos quais a milícia consegue inverter o monopólio de poder conferido pelo Estado e como isso afetar (ainda mais) a segurança pública.”

Criada por policiais no início dos anos 2000 com o argumento de impedir a entrada do tráfico nas favelas onde moravam, a milícia incorporou a venda de drogas aos seus negócios em cerca de um terço de seus domínios na cidade do Rio. Já os traficantes importaram práticas de extorsão típicas de grupos paramilitares na maioria das favelas que controlam. É o que revela um estudo inédito feito por pesquisadores da Fundação Getulio Vargas (FGV), da Universidade de Chicago e da Escola de Administração, Finanças e Instituto Tecnológico da Colômbia, como revelou o portal Extra, em 28.6.22.

Sobre a matéria destacou o sociólogo José Cláudio de Souza Alves em entrevista recente a revista Exame, quando falava sobre a conduta dessas milícias e sua área de atuação:

“Estamos falando de uma região onde a atuação de grupos de extermínio vem do final dos anos 1970. Com a ditadura civil-militar, a polícia ganhou o status de força auxiliar repressora ostensiva, da forma que ela é até hoje. A partir desse momento surgem os esquadrões da morte na Baixada, financiados por empresários e comerciantes da região que usavam esses grupos para proteger seus interesses, resolver problemas locais. O apoio político para esses grupos operarem foi dado pela ditadura. Esse é o primórdio desses grupos que vão virar uma máquina de matar e explodir a partir dos anos 1970. Isso ganhou um novo patamar quando, nos anos 1990, vários desses matadores se elegem para cargos públicos, em Belford Roxo e em Duque de Caxias, por exemplo. Esses matadores fizeram uma espécie de lavagem de suas cidadanias ao se elegerem: se tornam políticos, não se envolvem mais com matanças, mas têm gente que mata por eles. Essa é a trajetória de vários homens na Baixada. O que as milícias fizeram foi dar continuidade a isso, mas incorporando uma dimensão de controle de negócios. Ou seja: o estado não foi corrompido, nem deturpado, nem sequestrado. Não é uma ausência de estado. O estado é o organizador. Prefeitos, vereadores, até o judiciário já esteve aqui dando carteirinha para os matadores, e depois as milícias, atuarem. É uma estrutura atuando desde a década de 1970 de maneira intocada. Com as milícias, tudo isso ganha uma sofisticação ainda maior.”.

A milícia é uma estrutura de poder paralelo, que pode, muitas vezes, se inserir na medula estatal, como um verdadeiro e sinistro Estado profundo, cujos tentáculos são profundamente ignóbeis, na medida em que traz o medo, a violência e o escárnio.

O Anteprojeto do Código Penal prevê, no artigo 256, o crime de organização criminosa onde se diz: ¨Organizarem-se três ou mais pessoas, de forma estável e permanente, para o fim específico de cometer crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a quatro anos, mediante estrutura organizada e divisão de tarefas, com hierarquia definida e visando a auferir vantagem ilícita de qualquer natureza¨, com pena de prisão, de três a dez anos A pena aumenta-se até a metade se a organização criminosa é armada, se um ou mais de seus membros integra a Administração Pública, ou se os crimes visados pela organização tiverem caráter transnacional.

A milícia, para efeitos do Anteprojeto do Código Penal, em seu artigo 256, parágrafo segundo, é uma organização criminosa que se destina a exercer, mediante violência ou grave ameaça, domínio ilegítimo sobre o espaço territorial determinado, especialmente sobre os atos da comunidade ou moradores, mediante a exigência de entrega de um bem móvel ou imóvel, a qualquer título, ou de valor monetário periódico pela prestação de serviços de segurança privada, transporte alternativo, fornecimento de água, energia elétrica, venda de gás liquefeito de petróleo, ou qualquer outro serviço ou atividade não instituída ou autorizada pelo Poder Público, ou constrangendo a liberdade de voto. A pena proposta no Anteprojeto é de quatro anos a doze anos de prisão, sem prejuízo das penas relativas aos crimes cometidos pela organização miliciana e se a organização for integrada por agentes ou ex-agentes do sistema de segurança pública ou das forças armadas, ou por agentes políticos (circunstância qualificadora) a pena sobe de prisão de oito a vinte anos. A pena poderá ser aumentada, de um terço até metade, se a organização é armada; atua com violência ou grave ameaça sobre incapazes, pessoas com deficiência, ou idoso ou ainda praticar tortura ou outro meio cruel.

Fácil é ver a gravidade dessa espécie de delito, que está aí como exemplo.

No estudo do tema destacam-se os chamados grupos criminosos.

Segundo estudiosos do tema, quatro grupos criminosos controlam favelas do Rio de Janeiro. O mais antigo deles é o Comando Vermelho (CV). A facção surgiu na década de 70 no presídio da Ilha Grande, em Angra dos Reis, no Sul Fluminense, com o nome de Falange Vermelha, a partir do contato entre presos políticos e criminosos comuns.

Nos anos 80, o CV passou a ocupar morros na cidade, como o Juramento, em Vicente de Carvalho, na zona norte, reduto de José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, e atuar no tráfico de drogas. A base de atuação do grupo era o Complexo do Alemão.

Em 2010, as milícias, grupos criminosos formados por policiais militares e civis, bombeiros, agentes penitenciários, aposentados e da ativa, ocupam hoje mais territórios do que as grandes facções do narcotráfico no Rio de Janeiro. Na lista das 250 principais favelas pesquisadas (a estimativa é de que na capital são mais de mil), 100 são controladas pelas milícias, 84 pelo Comando Vermelho, 35 pelos Amigos dos Amigos e 31 pelo Terceiro Comando Puro.

O levantamento foi feito pelo pesquisador do Instituto de Ciências Policiais da Universidade Cândido Mendes Paulo Storani, ex-capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) e mestre em Antropologia.

Esses criminosos estão se espalhando pelo sistema presidiário e são uma ameaça à sociedade.

As organizações criminosas, com o passar dos anos, adaptaram-se às mudanças da sociedade e, segundo se relata, poderiam ter representantes na política.

Mas o que Maierovitch nos diz?

“Afirma ainda que facções criminosas têm interesse em se infiltrar no poder político para costurar acordos que reduzam a repressão policial em certas áreas. Segundo ele, um acordo desse tipo já vigora na periferia de São Paulo. ‘A polícia não vai à periferia, onde o PCC atua livre, leve e solto. Há uma lei do silêncio na periferia de São Paulo.’” (Fonte: BBC) (Acesso em 27 de fevereiro de 2018).

A isso se soma o fato de que o portal do jornal O Globo, em 24.10.23, falando sobre uma atuação da milícia em apavorar a população do Rio de Janeiro, descreveu que um grupo que foi criado na virada dos anos 2000 por policiais que moravam em Campo Grande e batizada como Liga da Justiça. Na época, os irmãos Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, e Natalino José Guimarães, inspetores da Polícia Civil e lideranças comunitárias locais, juntaram outros policiais que viviam na região — como o então PM Ricardo Teixeira da Cruz, o Batman — e passaram a controlar o transporte alternativo e cobrar taxas da população a pretexto de enfrentar traficantes e ladrões.

E veja-se como essas milícias se infiltraram na política, consoante ainda aquela reportagem:

“Na época em que chefiavam a milícia, Jerominho e Natalino chegaram a ser eleitos: o primeiro foi vereador; o segundo, deputado estadual. Entre 2007 e 2008, com a mudança de rota no enfrentamento aos grupos paramilitares gerada pela CPI das Milícias, da Assembleia Legislativa do Rio, a dupla acabou presa — e o comando do grupo passou para as mãos de uma série de PMs, que se sucederam na chefia.

Entre 2008 e 2014, comandaram o grupo os policiais militares — que acabaram expulsos da corporação — Ricardo da Cruz, Toni Ângelo Souza de Aguiar e Marcos José de Lima Gomes, o Gão, um após o outro, sempre após a prisão do antecessor. O perfil da organização criminosa mudaria a partir da prisão de Gão, em 2014. Com todos os policiais do topo da hierarquia na cadeia, não havia substituto natural. Abriu-se, assim, uma guerra pelo controle do bando — que acabaria transformando a milícia do Rio.”

A milícia responsável pelo caos no Rio de Janeiro foi fundada por policiais.

O Projeto de Lei Complementar 15/2023, enviado pelo governo do estado, altera a lei que trata da nomeação de cargos da cúpula da Polícia Civil, inclusive o cargo de secretário da corporação.

Afasta-se o sistema do mérito no serviço público pela escolha para o cargo por “conveniências políticas”.

São alarmantes essas notícias. É a milícia, pasmem, orientando os rumos da segurança pública naquele Estado, que perdeu povo, território e está perdendo o governo e a autonomia.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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