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É urgente uma popularização da ciência econômica no Brasil

José de Paiva Rebouças*

Fábio Lúcio Rodrigues**

 

Imagine o seguinte cenário: o Brasil cresce 4% em um ano, o desemprego atinge níveis historicamente baixos e a inflação, embora presente, está dentro da meta. Parece um cenário ideal para uma nação emergente. Mas ao abrir os jornais, encontramos manchetes como: “Alta do dólar preocupa mercado”; “Banco Central sobe juros para conter riscos”; “Economia ainda inspira cautela”. As boas notícias, ao invés de celebrações, são eclipsadas por um discurso que prioriza os “humores do mercado”.

O problema começa pela forma como o mercado é tratado: uma entidade abstrata, quase divina, que precisa ser apaziguada a qualquer custo. Mas o que chamamos de “mercado” não é um bloco homogêneo, mas um espaço multifacetado onde diferentes interesses coexistem e, muitas vezes, entram em conflito.

De um lado, o “mercado produtivo”, no qual bens, serviços e capitais são negociados para gerar riqueza, empregos e inovação. Esse é o mercado descrito por Adam Smith, que, em “A Riqueza das Nações”, destacou a importância de uma economia de trocas livres onde o trabalho humano gera valor. De outro lado, o “mercado especulativo”, dominado por rentistas e grandes investidores que acumulam riqueza sem produzir. Quer dizer, estamos falando de bilionários, não do trabalhador proletariado que, embora seja investidor, depende do emprego para manter sua qualidade de vida. Esse segundo tipo de mercado se aproxima mais da crítica de Karl Marx, que denunciou como o capital financeiro desvia recursos da produção para o acúmulo de riqueza nas mãos de poucos.

É essa estrutura especulativa que transforma o crescimento econômico em um jogo perigoso, onde lucros rápidos são priorizados em detrimento do bem-estar social. Como John Maynard Keynes alertou, quando o capital financeiro assume o controle, o mercado produtivo é subjugado e decisões racionais de longo prazo dão lugar a movimentos irracionais de curto prazo, ou seja, é o que Keynes chama de “dança dos espíritos animais”.

A ilusão do mercado “neutro

A grande imprensa brasileira, em grande parte, trata o mercado como um árbitro neutro, incapaz de errar. Esse discurso deriva, em parte, da influência da Escola de Chicago, que consolidou a ideia de que os mercados são intrinsecamente eficientes. Milton Friedman, seu maior expoente, argumentava que o mercado, se deixado livre de interferências, corrigiria automaticamente seus desvios.

Na prática, essa visão ignora o impacto do poder concentrado. Rentistas, bancos e especuladores dominam o mercado financeiro e utilizam sua influência para moldar políticas públicas, muitas vezes em benefício próprio. Esse fenômeno não é apenas econômico, mas também político e filosófico. Como Friedrich Hayek, outro defensor da Escola de Chicago, sugeria, a liberdade econômica está diretamente vinculada à liberdade política. O problema é que, em mercados capturados por especuladores, a liberdade econômica para muitos se traduz em opressão para outros.

Essa contradição é evidente no Brasil. Quando o Banco Central eleva a taxa Selic para “conter a inflação”, há pouca ou nenhuma discussão sobre o impacto desse movimento na vida cotidiana. O crédito encarece, o consumo cai e pequenas empresas – que dependem de financiamento – enfrentam dificuldades para sobreviver. A inflação pode até ser controlada, mas o custo recai sobre a classe trabalhadora e os pequenos empresários. Enquanto isso, os grandes investidores, que lucram com os juros altos, permanecem intocados.

O mercado especulativo é o ápice do que Marx chamou de “fetichismo da mercadoria”: uma estrutura onde o capital se torna um fim em si mesmo, alienado de sua função social. Os juros, nessa lógica, são tratados como um “direito natural” do capital, desconsiderando que cada ponto percentual da Selic significa mais dinheiro para os rentistas e menos para investimentos produtivos. Keynes, em contraponto, propunha que o objetivo da economia não deveria ser maximizar lucros, mas alcançar o pleno emprego e o bem-estar coletivo.

Já Adam Smith, apesar de ser frequentemente apropriado por defensores do livre mercado, jamais defendeu um mercado desregulado. Ele acreditava em limites éticos e na necessidade de intervenção para evitar que a busca pelo lucro prejudicasse a sociedade. Em suas palavras: “Não é da benevolência do padeiro, do cervejeiro ou do açougueiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração deles pelo próprio interesse.” Esse interesse, no entanto, deveria ser equilibrado por um Estado que regulasse excessos e desigualdades.

A lógica do medo e da austeridade

No Brasil, a narrativa dominante é a da austeridade. Termos como “responsabilidade fiscal” e “controle dos gastos públicos” são utilizados para justificar cortes em áreas fundamentais, como saúde e educação. Essa narrativa opera em duas frentes: o medo e a meritocracia. Por um lado, somos alertados de que gastos excessivos levam ao “caos econômico”. Por outro, somos incentivados a acreditar que o sucesso depende apenas do esforço individual, ignorando as barreiras estruturais que perpetuam desigualdades.

Essa lógica também encontra raízes em Friedrich Nietzsche que, em “Genealogia da Moral”, descreveu como as elites transformam interesses próprios em valores universais. No contexto econômico, isso significa que os privilégios do mercado especulativo são apresentados como “boas práticas”, enquanto investimentos sociais são tratados como irresponsáveis. Essa inversão de valores, no entanto, não é natural – é uma construção ideológica que beneficia poucos às custas de muitos.

Outra simplificação perigosa é a oposição entre mercado e Estado. Como Keynes demonstrou, o Estado não é inimigo do mercado, mas um agente essencial para corrigir suas falhas. Políticas como o New Deal, implementadas nos Estados Unidos após a Grande Depressão, mostram que intervenções governamentais podem revitalizar economias ao criar empregos e estimular o consumo.

No Brasil, no entanto, o Estado é frequentemente reduzido à ideia de “gastador irresponsável”. Pouco se discute sobre o impacto positivo de investimentos públicos em infraestrutura, saúde e educação. Essas áreas, além de essenciais para o bem-estar, também fortalecem o mercado produtivo, gerando empregos e ampliando o consumo. Mas, para a narrativa dominante, o orçamento público parece existir apenas para garantir os pagamentos da dívida, que beneficia sobretudo os rentistas.

Educação econômica e crítica social

Após essas ponderações, estamos certos de que o Brasil precisa urgentemente de uma alfabetização econômica que vá além do jargão técnico e das simplificações binárias. É necessário educar a população sobre as diferenças entre mercado produtivo e especulativo, sobre como políticas econômicas afetam sua vida e sobre como decisões governamentais não são neutras, mas fruto de escolhas políticas.

É fundamental popularizar a microeconomia, demonstrando como as decisões individuais impactam a economia agregada e, inversamente, como as políticas macroeconômicas moldam o comportamento microeconômico. É necessário esclarecer de forma acessível como fenômenos como a inflação e as políticas fiscais afetam desproporcionalmente as camadas de menor renda, corroendo o poder de compra e ampliando as desigualdades sociais. Além disso, é imprescindível destacar que políticas inclusivas, focadas na redistribuição de renda e na proteção dos mais vulneráveis, são ferramentas essenciais para mitigar esses efeitos e promover uma economia mais justa e equilibrada.

É essencial capacitar cientistas econômicos para comunicar suas descobertas de forma acessível, aproximando o conhecimento técnico do cotidiano da população. Ao mesmo tempo, é urgente formar jornalistas com uma visão crítica da economia, que vá além do rentismo e das narrativas impostas por agências econômicas e indicadores financeiros.

Esses profissionais precisam entender a complexidade das políticas econômicas e seus impactos sociais, questionando dogmas como a austeridade fiscal e traduzindo os debates econômicos para um público mais amplo. Essa dupla capacitação – de cientistas e jornalistas – é fundamental para criar uma ponte entre o saber especializado e a sociedade, permitindo que decisões econômicas sejam discutidas de maneira mais democrática e inclusiva.

Como dizia Keynes, “a dificuldade não está em desenvolver novas ideias, mas em escapar das antigas”. É preciso, portanto, resgatar uma visão de economia que esteja verdadeiramente a serviço da sociedade. Keynes, Smith e Marx, cada um a seu modo, nos ensinaram que a economia não deve ser tratada como um fim em si mesma, mas como um instrumento para promover o bem-estar coletivo. Enquanto o mercado especulativo permanecer como a voz predominante no debate econômico, as conquistas sociais serão distorcidas e apresentadas como ameaças e não como avanços. Nesse contexto, o Brasil seguirá prisioneiro de um modelo que concentra riqueza em poucos, enquanto perpetua desigualdades e marginaliza a maioria.

*Jornalista científico, doutorando em Demografia pelo Programa de Pós-graduação em Demografia da UFRN (PPGDEM).

**Doutor em Economia; professor de Economia da UERN; vice-coordenador do Programa Pós-graduação em Economia (PPE/UERN).

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