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Tem armadilhas no arcabouço

Por Dão Real Pereira dos Santos*

O Novo Arcabouço Fiscal é uma regra criada para substituir a Emenda Constitucional 95/2016 (EC95), conhecida como a PEC do congelamento dos gastos. Esse novo regime fiscal, instituído pela Lei Complementar 200, de 2023, decorre do compromisso firmado pelo governo quando da aprovação da PEC da transição (PEC 32/2022), em dezembro de 2022.

Esse novo regramento foi aprovado por uma maioria muito significativa e surpreendente. Foram mais de 370 votos dos deputados e de 55 votos dos senadores, o que pode ser explicado pelo fato de que essa regra mantém a lógica de limitação de gastos, que foi inaugurada pela EC95, diferenciando-se desta pela ampliação dos limites, já que agora prevê que os gastos podem crescer acima da inflação.

A EC95 interrompeu um ciclo de crescimento dos gastos orientado pela necessidade de ampliação das políticas públicas, como determina a Constituição Federal de 1988, e estabeleceu que os gastos primários só poderiam ser corrigidos pelo índice de inflação do ano anterior. De fato, isso significa uma redução de gastos, pois a população e as necessidades de políticas públicas crescem acima do índice de inflação.

De acordo com o novo regime, os gastos poderão crescer até 70% do crescimento da arrecadação tributária, mas esse crescimento não pode ser superior a 2,5% acima da inflação. Assim, se houver crescimento de receitas de 5%, por exemplo, o crescimento dos gastos ficará limitado a 2,5% e não a 3,5%, que corresponderia aos 70% do aumento da arrecadação.

Por outro lado, o crescimento real dos gastos não pode ser inferior a 0,6%, o que tem o significado de um quase congelamento dos gastos, pois, segundo o IBGE, a taxa anual de crescimento da população é de 0,52%. Ainda que essa nova regra tenha, de fato, destravado a possibilidade de crescimento dos gastos, manteve esse crescimento real confinado entre 0,6% e 2,5%, sendo que esse limite superior fica condicionado ao aumento de arrecadação. É importante lembrar que nos governos Lula1 e Lula2 a média do crescimento real dos gastos foi superior a 5,2% (Deccache, 2023) e, em 2023, os gastos cresceram mais de 6%, em relação a 2022.

No texto desse novo regime fiscal foram restabelecidos, acertadamente, os pisos constitucionais, de 15% da Receita Corrente Líquida, para os investimentos em saúde, e de 18% da receita líquida de impostos, para investimentos em educação, que estavam suspensos desde 2017, por conta da EC95. Ou seja, essas duas rubricas, que representam aproximadamente 16% do total dos gastos, poderão crescer proporcionalmente ao crescimento das receitas, o que poderá deprimir os demais gastos, pois elas não foram excluídas do cálculo dos limites de crescimento das despesas.

Ou seja, para que esses 16% das despesas cresçam na proporção da arrecadação, as demais despesas deverão crescer menos de 70% do crescimento da arrecadação e menos de 2,5%, caso esse índice seja ultrapassado.

Outra despesa pública obrigatória, que dificilmente poderá ser contida pelos limites legais refere-se aos gastos com os benefícios previdenciários, que representam 54% dos gastos totais, especialmente diante da correta decisão política de garantir ganhos reais para o salário mínimo. Mais de 70% dos benefícios são de um salário mínimo, logo os gastos previdenciários certamente terão crescimento próximo ao crescimento da arrecadação, o que também pressionará os demais gastos para crescimentos menores.

Se as receitas aumentarem 5%, as despesas com saúde e educação crescerão no mesmo percentual. Se o ganho real do salário mínimo for semelhante ao crescimento do PIB, teremos crescimento da maior parte dos gastos previdenciários proporcionalmente ao aumento da arrecadação. Ou seja, o aumento dos gastos obrigatórios decorrente do aumento de arrecadação vai impor que os demais gastos tenham de crescer abaixo do teto de 2,5%.

No exemplo acima, com um crescimento de arrecadação de 5% e considerando que metade dos gastos previdenciários (26%) mais os gastos com saúde e educação (16%) cresçam no mesmo patamar, os demais gastos (58%) poderão crescer apenas 1,17%, para que o total não ultrapasse o teto de 2,5%.

O paradoxo é que quanto maior for o crescimento da arrecadação, menor será o índice de crescimento dos demais gastos, podendo, inclusive, ter crescimento negativo. Isso pode ser facilmente compreendido se imaginarmos, por exemplo, que a arrecadação tenha um crescimento de 10%, permitindo que os gastos com saúde, educação e metade dos gastos previdenciários possam crescer também 10%. Os demais 58% dos gastos teriam que ser reduzidos para que o total não ultrapasse os 2,5%.

Outra armadilha que o Arcabouço nos coloca é o compromisso assumido pelo governo de zerar o déficit fiscal, já no ano de 2024, o que implica a necessidade de aumento significativo na arrecadação ou de realização brutal de cortes nos gastos, tendo em vista que a previsão de déficit para 2023 já está na casa dos R$ 170 bilhões.

O não cumprimento dessa meta, implicará a redução do limite de crescimento dos gastos para o ano seguinte. O dilema é que é preciso gastar para fazer a economia crescer, é preciso crescer para aumentar a arrecadação e é preciso aumentar a arrecadação para gastar. Sem gastar não se arrecada e sem arrecadar não se gasta, eis aí a fórmula da estagnação.

Mas essas armadilhas podem ser desativadas com a revogação do subteto de 2,5% para os gastos totais ou com a retirada dos valores referentes aos investimentos em saúde, educação e a parte da Previdência social que acompanha o crescimento do salário mínimo dos limites estabelecidos.

Por outro lado, é perfeitamente possível reduzir parte dos impactos da limitação do crescimento dos gastos tributando os super-ricos e desonerando os mais pobres. Dessa forma, ampliamos a arrecadação e, ao mesmo tempo, aumentamos a disponibilidade de renda para os mais pobres, reduzindo a pressão sobre os gastos e criando condições mais favoráveis para o crescimento econômico.

Neste sentido, se tributarmos os lucros e dividendos da mesma forma que tributamos os rendimentos do trabalho, por exemplo, teremos um acréscimo de arrecadação suficiente para garantir equilíbrio fiscal sem necessidade de corte de gastos. Se compensarmos parte deste aumento de arrecadação com desoneração dos trabalhadores com rendimento mensal de até R$ 5 mil, teríamos uma grande quantidade de recursos sendo injetados diretamente na economia real, gerando crescimento e aumento de arrecadação, o que, consequentemente, abre espaço para o aumento de gastos.

A segunda etapa da reforma tributária, portanto, pode ser uma oportunidade de ouro para implementarmos um sistema tributário efetivamente progressivo, tributando mais os mais ricos e menos os mais pobres, que pode ser determinante, não para acabar com as armadilhas do arcabouço fiscal, mas para que seus efeitos possam ser substancialmente amenizados.

*É auditor fiscal, presidente do Instituto Justiça Fiscal, coordenador da campanha Tributar os Super-Ricos.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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O Jacarezinho e a tributação dos super-ricos

Violência no Jacarezinho é reflexo da desigualdade social (Foto: Web/autor não identificado)

Por Maria Regina Paiva Duarte*

A perda de 28 vidas na favela do Jacarezinho é um desafio latente para pensar a que ponto chegaram as instituições públicas, tanto pela sua equivocada e desastrosa presença, quanto pela sua completa ausência e abandono das comunidades, resultando no horror vivido na Zona Norte do Rio de Janeiro e que impactou o mundo.

A operação marcou não apenas pelo número de mortos, mas pela violência, considerada a mais letal da história do Rio. Moradores denunciam execuções sem chance de defesa, invasão de residências, celulares confiscados, entre outras transgressões e atrocidades em nove horas de terror, que merecem rigorosa e independente apuração.

Não é possível que vivamos num país tão profundamente desigual e desumano, e que o Estado brasileiro esteja falhando em tantos sentidos, que atue nas favelas como agente repressor, autoritário, machista e violador. Que pessoas sejam executadas sem chance de se defender, em que o direito à vida seja um mero escrito em algum livro.

Representantes da Polícia Civil declararam que não houve erros ou excessos, que visavam garantir o direito de ir e vir, alegando que facções sequestram trens e aliciam crianças e jovens para o tráfico. Com isso, justificaram a ação perante o STF, que proibiu operações nas favelas durante a pandemia, exceto em casos excepcionais.

Entre os assassinados, quatro eram alvos de investigação e ao menos dois não possuíam antecedentes. Três dos presos tinham mandados de prisão e alguns apresentavam marcas físicas de violência e afirmaram ter sido obrigados a carregar os corpos da cena do crime. O relatório policial não informa sobre a perícia obrigatória no local para apurar as circunstâncias das mortes.

Não sou especialista em segurança pública, em políticas de combate ao tráfico, nem busco analisar o fato em si, mesmo que o entenda desastroso e que deixe marcas definitivas de terror. Ainda há muito a ser esclarecido e o episódio está sob a análise de entidades como a Defensoria Pública, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Anistia Internacional e Human Rights Watch Brasil.

Imagino o medo e o transtorno que passam milhares de pessoas que diariamente se perguntam: teremos tiroteio? Helicópteros atirando? Execuções? Meus filhos estarão vivos quando eu voltar do trabalho?  Mesmo nunca tendo morado em favela, posso ser solidária com as pessoas que tiveram e têm suas vidas interrompidas, mesmo estando vivas. Sim, porque é difícil viver assim, sem o mínimo de condições materiais, psíquicas e emocionais. Sem saber se terá comida na mesa e, às vezes não há mesa, nem cama para dormir, nem teto para morar.

Algumas pessoas podem entender a operação como a garantia do ir e vir, ou que era para pegar bandidos. Mas o que pensar se já foi afirmado pelos coordenadores da operação que haverá novas operações com esse propósito? A violência policial em Jacarezinho não foi a primeira e não será a última, se nada mudar.  Uma violência dessa magnitude tende a gerar mais violência, a não ser que sejam oferecidas oportunidades e o Estado mostre sua presença de outra forma.

As instituições públicas devem garantir a segurança e os direitos das pessoas. Mas se essas pessoas moram em comunidades mais pobres, o Estado falha miseravelmente, muito mais do que falha em territórios mais abastados e com menos população negra. Não é esse tipo de atuação do Estado que queremos e precisamos.

As condições de vida de grande parte da população já eram difíceis antes da Covid-19, agora estão muito piores. Ao invés do governo pagar um valor para o auxílio emergencial minimamente aceitável, reduziu a ajuda neste ano, aprofundando a miséria. O controle da pandemia é desastroso, o negacionismo é abusivo.

Não há oferta de políticas de moradia digna, falta água para milhares de famílias e não há saneamento em 70 milhões de casas. A vulnerabilidade não está apenas na baixa renda – quando há renda! Soma-se às precárias condições de vida, violência, pouco acesso à educação, insegurança alimentar, entre outros. Sem opções de vida digna, fica difícil crer que o poder público ofereça algo parecido com cidadania para boa parte da sua população insuficiente de tantos itens básicos.

Que mudança esta operação trouxe ou trará? Que oportunidades serão oferecidas aos moradores? O que o Estado oferecerá após a operação? Proteção aos jovens supostamente aliciados? Trabalho e renda para garantir comida?

O combate ao tráfico, às milícias ou facções são temas bastante complexos que uma operação isolada não resolve. Mas a melhoria da vida das pessoas com as ações do Estado poderia alterar muitas das condições geradoras de exclusão, miserabilidade e cooptação pelo crime. E isso é uma escolha que o Estado pode fazer. É preciso acolher estas crianças, adolescentes e suas famílias, ter empatia e solidariedade por todos e todas na comunidade.

As pessoas precisam de um mundo melhor, menos desigual e mais cooperativo. Com um sistema econômico e políticas públicas que contribuam para isso. Não o que temos agora, que leva a uma concentração de renda tamanha que só o Catar nos supera. E uma desigualdade tão brutal que nos torna o sétimo país mais desigual do mundo.

Há muitas alternativas para distribuir a riqueza e fazer políticas de geração de emprego e renda, educacionais, habitacionais, de saúde, entre outras, que elevem o patamar de vida das pessoas mais vulneráveis e diminuam a desigualdade.

É possível taxar grandes fortunas sempre isentas no Brasil, os que enriquecem especulando sem nada investir no país, os que saqueiam a riqueza da nação de forma profundamente injusta, tributar as altas rendas, isentas do imposto acobertadas com nomenclaturas como lucros e dividendos distribuídos entre os donos e gestores de grandes empresas.

Existem projetos para isso, como os da campanha Tributar os Super-Ricos, que preveem taxar apenas 0,3% da população, arrecadando cerca de R$ 300 bilhões ao ano.

Para ter liberdade de ir e vir, é preciso em primeiro lugar estar vivo, que não é apenas respirar, mas não estar com fome e na miséria. A liberdade supõe garantias mínimas de vida, com possibilidade de se alimentar, trabalhar, morar, cuidar da família, ter lazer, cultura e diversão.

As pessoas são diferentes entre si, seus conhecimentos, experiências, modos de vida. Devem ser valorizadas pelas suas características particulares e não discriminadas por cor, raça, gênero, classe social e lugar em que vivem. Podemos ser diferentes, e somos, mas não merecemos essa desigualdade. O povo brasileiro não merece passar por isso. É preciso fortalecer o Estado brasileiro para atuar a favor do povo e não contra ele.

*É presidenta do Instituto Justiça Fiscal, integrante da Coordenação da Campanha Tributar os Super-Ricos.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.