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O desfile de 7 de setembro foi coisa de ditador

Por Rogério Tadeu Romano*

I – O EXEMPLO NORTE-AMERICANO

Em excelente artigo para o Estadão, em 5 de setembro do corrente ano, Marcelo Godoy trouxe a colação o interesse de Donald Trump por um desfile militar nos Estados Unidos, em exaltação a sua pessoa:

“Em outra reunião, com a presença do general Paul Selva, vice-chefe do Estado-Maior Conjunto, Trump perguntou o que Selva achava do desfile. Oficial da Aeronáutica, Selva disse: “Não cresci nos Estados Unidos. Cresci em Portugal. Portugal era uma ditadura, e os desfiles serviam para mostrar às pessoas quem detinha as armas. E, neste País, nós não fazemos isso”. Trump insistiu e perguntou se ele não gostava da ideia. “Não. Isso é coisa de ditadores.”

Pois bem.

Fala-se que o atual presidente da República, em plena campanha militar, quer usar as armas militares das Forças Armadas, para mostrar que elas estão ao lado da população em seu projeto de poder.

Há o entendimento de que o atual presidente da República tenta intimidar quem crê que ele pode tentar alguma aventura autoritária ao sugerir que os militares o apoiam no golpismo.

II – OS MILITARES E O PODER

Na história do Brasil, os militares, até a Guerra do Paraguai, serviram ao Imperador. Após ela, serviram à Nação.

Estabeleceram os militares a ideia de que seriam curadores da República, desde a chamada proclamação, em 15 de novembro de 1889, em nome da Nação.

Assim agiram em 1930 com um movimento que levou ao fim da República Velha; em 1937, os militares foram fundamentais no projeto de instituição e, após, consolidação no Estado Novo, que instituiu uma ditadura no Brasil; em 1945 com o golpe branco que derrubou Getúlio Vargas, após o fim da Segunda Guerra Mundial, vencida pelos aliados, com os Estados Unidos da América a frente. Nesse tom, agiram nos acontecimentos que levaram ao suicídio de Vargas, em agosto de 1954 e a tentativa de golpe, em 11 de novembro de 1955, quando se tentou impedir a deposição de um presidente eleito pelo voto popular. Em 1964, como “braço armado” das forças liberais e conservadoras, com o apoio americano, a frente de um “golpe militar”, assumiram a Nação e dela somente sairiam em 1985 com a eleição de Tancredo Neves, em eleição indireta e a posse de Sarney, político que apoiou os militares naquele triste momento da história do país, em que a classe política foi expelida da vida pública. A emenda Constitucional n. 1 à Constituição de 1967, foi um verdadeiro modelo constitucional outorgado pelos militares.

Aceitaram a democratização com a Constituição de 1988 e voltaram ao poder com a eleição do atual presidente em 2018.

Como acentuou Bernardo Mello Franco, em artigo para o jornal O Globo, em 7 de setembro de 2022:

“A cúpula militar ajudou a eleger Bolsonaro. Em troca do apoio em 2018, garantiu privilégios, abocanhou salários acima do teto e ocupou áreas centrais do governo. Essa sociedade foi renovada com a indicação do general Braga Netto como candidato a vice na chapa à reeleição.”

III – AS FORÇAS ARMADAS NÃO SÃO PODER MODERADOR

Em razão disso ventilam o papel das Forças Armadas como Poder Moderador.

Dizer-se que as Forças Armadas consignam instituições nacionais é reconhecer-lhes a autonomia jurídica que deriva do seu próprio caráter institucional.

Por outro lado, declará-las como instituições permanentes e regulares significa dizer que elas estão ligadas à própria manutenção do Estado. Enquanto ele existir e durar, as Forças Armadas também perduram.

Hierarquia é o ato de subordinação sancionada e graduada de acordo com os níveis de autoridade. O presidente da República é o grau maior desse escalonamento (artigo 84, XIII, da CF).

Disciplina é o poder legal conferido aos superiores hierárquicos para impor comportamentos e ordens aos seus inferiores, um vínculo de acatamento e respeito.

A disciplina é um corolário de toda organização hierárquica, como disse Miguel Seabra Fagundes (As forças armadas na Constituição, 1955, pág. 23).

De acordo com a Constituição Federal de 1988, as Forças Armadas são integral e plenamente subordinadas ao poder civil, e que seu emprego depende sempre de decisão do presidente da República, que a adota por iniciativa própria ou em atendimento a pedido dos presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados.

Toda a carreira do militar da ativa é formalizada, previsível e institucionalizada por critérios objetivados, diria o ministro Ayres Britto. Etapas adequadas ao mérito e treinamento que tiveram. O soldo é predeterminado. A hierarquia profissional prevalece. São obrigados ao silêncio obsequioso. São proibidos de se manifestar politicamente.

A Constituição imperial dizia no artigo 98: “O Poder Moderador […] é delegado privativamente ao Imperador […] para que vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”.

Temos uma República julgada incapaz de se autogovernar, sujeita à tutela de um novo Poder Moderador.

Assim a garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas Forças Armadas para definir seu papel.

Esse entendimento levaria ao retorno das ideias de 1937 e dos Atos Institucionais que rasgaram a Constituição de 1946, com o golpe militar de 1964, no sentido de que as Forças Armadas seriam a garantia dos poderes institucionais não se amolda à Constituição-cidadã de 1988, que renega a ideia de que o poder civil é uma concessão do poder militar. Ficaria a sociedade entregue aos ditames militares, o que é uma afronta à democracia.

Os episódios de triste memória ocorridos entre 1964 e 1985 são um alerta.

Os militares são carreira de Estado. Em razão disso não são curadores da República, pois se subordinam ao Poder Civil.

IV – UMA TENTATIVA DE SEQUESTRO POLÍTICO DA DATA ELEITORAL POR UM MOVIMENTO POLÍTICO

Fala-se que o atual presidente da República, em plena campanha militar, quer usar as armas militares das Forças Armadas, para mostrar que elas estão ao lado da população em seu projeto de poder.

Há o entendimento de que o atual presidente da República tenta intimidar quem crê que ele pode tentar alguma aventura autoritária ao sugerir que os militares o apoiam no golpismo.

Marcelo Godoy (Bolsonaro transforma evento militar em comício: tudo junto e misturado, Estadão, 7 de setembro) nos disse ainda:

“Com um casaco preto, o presidente Jair Bolsonaro conseguiu o que queria: levou seu povo às ruas e o misturou às Forças Armadas. O palanque militar ao lado do Forte de Copacabana foi tomado por apoiadores de Bolsonaro com camisetas verde e amarelo enquanto o locutor acentuava o nome do candidato e o público respondia: “Mito!” O presidente desceu do palanque e foi cumprimentar seus apoiadores enquanto os canhões Exército disparavam suas salvas.

Tudo debaixo dos olhares de dois integrantes do Alto Comando do Exército, o comandante militar do Leste, general André Luiz Novaes, e o chefe do Departamento de Ensino da Força Terrestre, general Flávio Marques Barbosa, além de oficiais generais da Marinha e da Força Aérea. O palanque do evento militar se transformou em palco de evento partidário, com a presença de políticos e apoiadores, como o empresário Luciano Hang. A distância entre o carro de som onde Bolsonaro discursaria e o palanque militar que reuniu as autoridades militares passou despercebida de quem esteve na orla.”

……

No Rio, desde o posto 3 até o Forte, as pessoas com camisetas da seleção brasileira caminhavam e se aglomeravam em torno de carros de som entre os cariocas indiferentes ao comício que foram à praia no dia de sol. Eles aplaudiam as apresentações militares das Forças Armadas, como a da esquadrilha da fumaça. Diluía-se a fronteira entre o evento militar do bicentenário e a reunião de Bolsonaro, a exemplo do que ocorrera antes em Brasília. Entretanto, o chamado do presidente para que o povo em geral fosse às ruas apoiá-lo foi escutado apenas por seu povo.”

Em triste espetáculo, o 7 de setembro de 2022, ano do bicentenário de nossa Independência se transformou, com apoio dos militares, em afirmação do fascismo no Brasil, como um movimento de massa em defesa do autoritarismo. Foram verdadeiras manifestações político-partidárias.

Ora, as Forças Armadas não podem estar a serviço desse ou daquele movimento político-partidário em um estado democrático de direito.

O discurso do atual presidente da República, no 7 de setembro de 2022, não foi um discurso de chefe do Poder Executivo. Foi um discurso de candidato à reeleição:

“Com a reeleição, traremos para as 4 linhas todos os que ousam ficar fora delas”, disse o presidente da República, que no entanto evitou atacar frontalmente a Corte e os ministros. Durante o breve discurso, Bolsonaro também repetiu bordões de sua campanha eleitoral, como a suposta luta do bem contra o mal. Também fez críticas ao PT. “Sabemos que temos pela frente uma luta do bem contra o mal. Um mal que perdurou por 14 anos no nosso País, que quase quebrou a nossa Pátria e que agora deseja voltar À cena do crime. Não voltarão! O povo está do nosso lado. O povo está do lado do bem. O povo sabe o que quer”, disse.

E ainda falou:

“Quero dizer que o brasileiro passou por momentos difíceis, a história nos mostra. 22 (1822, Independência), 64 (golpe militar de 1964), 16 (2016, impeachment de Dilma Rousseff), 18 (2018, sua eleição) e, agora, 22. A história pode se repetir. O bem sempre venceu o mal”, discursou.

Disse ainda Vera Magalhães (Atos de Bolsonaro ferem lei eleitoral e estão longe da moderação, in O Globo):

“Pela manhã, no café no Alvorada, antes de sair para a micareta de campanha da Independência, fez alusão expressa a momentos de ruptura da História do Brasil.

Tudo isso está a dizer que o bicentenário da pátria foi sequestrado pelo bolsonarismo.

O esperado comício do presidente – candidato à reeleição pelo PL – na orla carioca ocorreria ao mesmo tempo em que a Marinha faria sua parada naval, a Força Aérea exibiria a esquadrilha da fumaça e os canhões do Forte de Copacabana saudaram o bicentenário da Independência. Os bolsonaristas se misturariam a bandas militares e a uma exibição de paraquedistas do Exército e da Aeronáutica.

Bem lembrou Cristina Serra (Tratoraço militar golpista, in Folha de São Paulo, 6 de setembro de 2022):

“As Forças Armadas fazem o movimento mais perigoso ao se imiscuírem em um ato de campanha eleitoral do presidente, como o que está previsto para o Rio de Janeiro, até mesmo com a exibição de equipamentos militares (pertencentes ao Estado e ao povo brasileiro). A mistura de motociata com aviões da Aeronáutica, navios da Marinha e canhões do Forte de Copacabana é promiscuidade institucional explícita.”

Foram atos de campanha que “atropelaram” a festiva data de 7 de setembro que é uma comemoração da Nação.

“Houve um evento oficial, que atraiu muita gente, com despejo de recurso público para criar superestrutura para esse evento naquele contexto, ato contínuo, quase no mesmo espaço, você teve um evento particular, de campanha, que teve aquela repercussão e alcance em grande parte graças a tudo que tinha acontecido antes”, destaca Volgane Carvalho, secretário-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

V – UMA HIPÓTESE CONCRETA DE ABUSO DE PODER POLÍTICO E ECONÔMICO

Isso é inconcebível.

“Houve um evento oficial, que atraiu muita gente, com despejo de recurso público para criar superestrutura para esse evento naquele contexto, ato contínuo, quase no mesmo espaço, você teve um evento particular, de campanha, que teve aquela repercussão e alcance em grande parte graças a tudo que tinha acontecido antes”, destaca Volgane Carvalho, secretário-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

Por si só, é vedado o uso do serviço público, de servidores do Estado, durante a campanha eleitoral.

O princípio básico que deve nortear as condutas dos agentes públicos no período de eleição está disposto no caput do art. 73 da Lei nº 9.504, de 1997, ou seja, são vedadas

“… condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais”.

Conforme o Tribunal Superior Eleitoral, “As condutas vedadas (Lei das Eleições, art. 73) constituem-se em espécie do gênero abuso de autoridade”. Assim sendo essas condutas, além de abusivas, afrontam o processo eleitoral, confrontam a Constituição, pois revelam ato atentatório à probidade de modo que o chefe do Executivo age de forma afrontosa à dignidade da função.

De acordo com o art. 74 da Lei 9.504/1997, configura abuso de autoridade, para os fins do disposto no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, a

infringência do disposto no § 1º do art. 37 da Constituição Federal, ficando o responsável, se candidato, sujeito ao cancelamento do registro ou do diploma.

Assim, a prática de condutas vedadas pela Lei nº 9.504, de 1997 pode vir a ser apurada em investigação judicial e ensejar a aplicação do disposto no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 1990, que trata do uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, da utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou partido político. (TSE, AG nº 4.511,

Acórdão de 23/03/2004, relator Ministro Fernando Neves da Silva).

Registre-se que para o TSE, o “abuso do poder político qualifica-se quando a estrutura da administração pública é utilizada em benefício de determinada candidatura ou como forma de prejudicar a campanha de eventuais adversários, incluindo neste conceito quando a própria relação de hierarquia na estrutura da administração pública é colocada como forma de coagir servidores a aderir a esta ou aquela candidatura (…). ” (Recurso Ordinário nº 265041, Relator (a) Min. Gilmar Mendes, DJE 08/05/2017).

Evidente a potencialidade lesiva do evento acima registrado com relação às eleições de 2022.

As Forças Armadas não podem, em qualquer hipótese, estar a serviço de um governante e muito menos alguém que pretende ser ditador. Elas servem à Nação.

Para o caso é indispensável, pelos legitimados, o ajuizamento de Ação de Investigação Judicial Eleitoral, objetivando investigar abuso de poder político e econômicos nos atos de 7 de setembro de 2022, com participação das Forças Armadas, em flagrante desvirtuamento do processo eleitoral.

A ação de investigação judicial eleitoral tem seus efeitos previstos no artigo 22, inciso XIV, da Lei Complementar 64/90 e são eles: decretar a inelegibilidade, para essa eleição, do representado e tantos quantos tenham contribuído para a prática do ato; cominação de sanção de inelegibilidade; cassação de registro de candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico e de desvio ou abuso de poder de autoridade.

Abuso de poder político é o uso indevido de cargo ou função pública, com a finalidade de obter votos para determinado candidato.

Por outro lado, abuso de poder político pode ser visto como atuação ímproba do administrador, com a finalidade de influenciar no pleito eleitoral de modo ilícito, desequilibrando a disputa. Adriano Soares da Costa (Instituições de direito eleitoral, 5ª edição, pág. 530) já entendeu que “ a AIJE apenas pode ser proposta após o pedido de registro de candidatura e antes da diplomação dos eleitos”.

VI – A FALTA DE DECORO NO CARGO

Os atos lamentáveis acima descritos se subsumem em evidente improbidade administrativa e ainda em falta de decoro para o exercício do cargo, situações que levam ao impedimento do chefe do Executivo.

Ademais, poder-se-ia entender que se trataria de crime de responsabilidade envolvendo a probidade da administração, do que se lê da Lei nº 1.079/50:

Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:

7 – proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.

Aliás, Paulo Brossard (O impeachment, 1992, pág. 54) ensinou que a própria Constituição estatui, no artigo 89 caput, da Constituição de 1946, que “são crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal”. E só depois de haver traçado essa regra básica é que acrescenta: “e, especialmente, contra….”, seguindo-se os oito itens exemplificativamente postos em relevo pelo constituinte, pelo que incumbiu o legislador da tarefa de decompô-los e enumerá-los.

Mas ela mesma prescreveu que todo atentado, toda ofensa a uma prescrição sua, independente de especificação legal, constituii crime de responsabilidade.

Constitui crime de responsabilidade contra a probidade da administração “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. De forma semelhante dispunha o Decreto nº 30, de 1892, ao preceituar, no artigo 48, que formava seu capitulo VI, ser crime de responsabilidade contra a probidade da administração “comprometer a honra e a dignidade do cargo por incontinência política e escandalosa, ……, ou portando-se com inaptidão notória ou desídia habitual no desempenho de suas funções”.

É uma conduta afrontosa à Constituição, à sociedade, ao Estado Democrático de Direito.

VII – A ADVERTÊNCIA DO MINISTRO LEWANDOWISKI

As Forças Armadas não podem, em qualquer hipótese, estar a serviço de um governante e muito menos alguém que pretende ser ditador. Elas servem à Nação.

A firmeza de atitude dos militares pode evitar que a egolatria do mandatário que quer se transformar em ditador destruía o país.

Isso é o que se espera da Forças Armadas que devem servir ao modelo do Estado Democrático de Direito e não a aventuras autoritárias.

Disse bem o ministro Ricardo Lewandowiski (Independência ou Morte, in Folha de São Paulo, 7 de setembro de 2022):

“Dessa saga memorável decorre que a ninguém é lícito apropriar-se da data de nossa Independência com fins político-partidários, muito menos com o propósito de dividir os brasileiros, definitivamente vocacionados para a fraternidade, porquanto ela pertence ao povo, não aos governantes eleitos para representá-lo temporariamente, aos quais cabe, tão somente, rememorá-la a cada ano, de forma condigna e respeitosa, para celebrar o triunfo da liberdade sobre a servidão e o despotismo.”

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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O RN no contexto da independência do Brasil

O Rio Grande do Norte já era uma província antes do Brasil se tornar independente. O hoje Estado deixou de ser uma capitania por decisão das cortes portuguesas em 1821 dentro do contexto da Revolução Liberal do Porto, que obrigou Dom João VI a voltar a Lisboa.

Foi esse retorno que resultou na elevação do príncipe Pedro de Alcântara a condição de regente do Brasil e com o clima esquentando entre ele e as cortes, que exigiam seu retorno a Portugal e abertura das condições para recolonizar o país, àquela altura com status de reino unido.

E o Rio Grande do Norte no meio disso? Na época o Rio Grande do Norte tinha oito municípios (Natal, Extremoz, Arez, Portalegre, São José, Vila Flor, Vila do Príncipe -Caicó- e Vila da Princesa – Assú). Eram 71 mil habitantes, sendo 800 deles moradores da capital.

Os potiguares ainda viviam a ressaca da participação da Revolução Pernambucana de 1817, que envolveu também o Ceará e a Paraíba.

Uma das consequências foi a imposição do poder central retirando a influência de Pernambuco no Rio Grande do Norte, que passaria ter mais autonomia. Uma das consequências práticas disso foi a implantação de uma alfandega em Natal. A província passaria a ter autonomia fiscal e judicial.

Em meio aos atritos entre D. Pedro e as Cortes Portuguesas, começou a surgir apoio a independência também no Rio Grande do Norte. O principal líder era o governador José Inácio Borges, que havia sido destituído na Revolução Pernambucana e recolocado no cargo. Inácio passaria a se alinhar com o futuro imperador.

A ele fazia contraponto Mariano José de Brito Lima, ouvidor da comarca de Natal. Era uma disputa sobretudo por poder e não um movimento a base de ideais.

José Inácio foi destituído em uma onda de derrubada de governadores. No lugar dele foi estabelecida uma Junta Constitucional Provisória, composta por sete membros. Parte deles apoiavam a independência e eram aliados de Inácio. Entre eles o coronel Luís de Albuquerque Maranhão, um dos líderes de 1817.

“Segue-se um período de instabilidade política na província, reflexo do conturbado quadro nacional, com o regente D. Pedro recusando-se a acatar as determinações das cortes de Lisboa e tomando posições favoráveis à independência do Brasil. Militares portugueses que serviam no Rio Grande do Norte, juntamente com os defensores da manutenção dos vínculos Brasil-Portugal, ameaçaram a Junta, destituindo-a, e exigiram da Câmara de Natal a eleição de um governo temporário, até que uma nova junta fosse eleita, sob o argumento de que a Junta Constitucional Provisória havia sido eleita fora dos trâmites legais”, escreveu Sérgio Trindade no livro História do Rio Grande do Norte.

“Esse governo não, porém, não foi reconhecido por várias Câmaras de Vereadores de vilas do interior, principalmente Portalegre, Príncipe (Caicó) e Princesa (Assú), que protestaram, julgando-o ilegítimo”, afirmou Denise Matos Monteiro no livro Introdução a História do Rio Grande do Norte.

A instabilidade provocou conflitos em todo o Rio Grande do Norte que resultaram em motins de rua e prisões.

Somente em 13 de julho de 1822 uma Assembleia formada por membros da Câmara de Vereadores de Natal, membros da junta e comando da guarnição militar decidiu endossar a permanência de D. Pedro no Brasil com poderes para governá-lo.

Finalmente estava formado o consenso entre as elites da província em apoio ao processo de independência.

A notícia da separação do Brasil de Portugal e da consequente aclamação de D. Pedro como imperador só chegaria ao Rio Grande do Norte em 2 de dezembro de 1822. A Câmara de Natal faria somente em 22 de janeiro de 1823 a solenidade de aclamação do novo monarca. Foi realizada uma missa e um Te-Deum na igreja matriz da capital.

Naquele mesmo ano o médico Francisco de Arruda Câmara (titular) e o advogado Tomás Xavier de Almeida (suplente) seriam eleitos como representantes do Rio Grande do Norte na Assembleia Constituinte, formada por D. Pedro I e que logo seria dissolvida por ele, que preferiu outorgar a Constituição de 1824, a mais longeva do país.

Apesar de algumas agitações, o processo de independência do Brasil foi recebido no Rio Grande do Norte de cima para baixo como na maior parte do país. A reações ocorreram na Bahia, Piauí, Maranhão e no Pará.

Nada mudaria por enquanto no Rio Grande do Norte com a Junta Governativa a frente da província, mas logo novas agitações surgiriam e as terras potiguares se juntariam a Pernambuco em nova sublevação contra o poder central na Confederação do Equador em 1824.

Mas aí é uma outra história.

Bibliografia consultada.

MONTEIRO, Denise Matos. Introdução à História do Rio Grande do Norte. – 4 ed.- Natal, RN: Flor do Sal, 2015.

TRINDADE, Sérgio Luiz Bezerra. História do Rio Grande do Norte. – 2 Ed.: Sebo Vermelho, 2015.

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Bicentenário: ainda há tempo!

Por Ney Lopes*

Hoje, 7, chegamos aos 200 anos da nossa independência, faltando 25 dias para as eleições gerais de 2 de outubro.

Começava em 1822, a história de uma nação que não existia no começo do século XIX.

A difícil tarefa foi a fabricação do povo deste novo país.

Até hoje prevalece o que disse o nosso conterrâneo Câmara Cascudo: “O melhor produto do Brasil ainda é o brasileiro”.

Somos o quinto país em extensão territorial e o sexto em número de habitantes.

Separação

Na verdade, o Brasil separou-se de Portugal, em 2 de setembro de 1822.

  1. Pedro havia viajado à São Paulo e passara a Chefia de estado interinamente para a esposa Leopoldina da Áustria.

Decreto

Na ocasião, chegou ultimato português, ordenando o retorno do príncipe regente à Lisboa.

Leopoldina reuniu o Conselho do Estado e assinou decreto, separando o Brasil oficialmente.

Somente no dia 7, a notícia chega a Dom Pedro, que dá o famoso “grito da independência”. Políticos – Coube a classe política, em Assembleia Constituinte, definir quem seriam os cidadãos brasileiros.

Foram definidos critérios de igualdade entre os membros da comunidade.

Como tratar os negros?

Como considerar o direito de propriedade?

As primeiras respostas foram dadas pela Constituição outorgada por Dom Pedro I, em 25 de março de 1824.

Bonifácio

O grande construtor do perfil da Constituição de 1824 foi José Bonifácio de Andrada, o Patriarca da Independência.

Um cientista, filósofo, poliglota e principalmente um líder político, tornou-se junto a Dom Pedro, o principal obreiro da Independência.

Europa

José Bonifácio era um estudioso, que passou 36 anos na Europa.

Ao retornar ao Brasil, onde 90% da população era analfabeta, ele almejava avanços para o país.

Na elaboração da primeira carta constitucional do país, outorgada em 1824, ele tentou defender a necessidade de abolir a escravatura, de proteger as florestas e os indígenas e de implantar escolas, faculdades e a imprensa nas cidades e nas capitais das províncias.

Defendeu a reforma agrária, a preservação de rios e florestas, a abertura de universidades e a transferência da capital para o centro do país.

Eram ideias muito à frente daquele tempo, que foram sufocadas e não prosperaram. Algumas delas ainda são atuais.

Ingratidão

O inexperiente príncipe de 23 anos foi ingrato com José Bonifácio. Esperava concentrar mais poderes na Constituição e como isso não ocorreu responsabilizou o Patriarca e o expulsou do país.

Bonifácio se exilou na França e em 1829, anistiado, voltou à política.

Reflexão

A Sociedade Brasileira Pelo Progresso da Ciência divulgou mensagem sobre o bicentenário, na qual recomenda “mais do que comemorar, devemos refletir”.

Sem dúvida, estamos diante de uma verdadeira encruzilhada histórica, cujo desafio será a formação de uma sociedade com menos desequilíbrios, desigualdades e injustiças.

Responsabilidade

A principal reflexão é que dependerá das ações e omissões coletivas, a construção dos rumos do futuro, após as eleições de 2022.

A hora é de dar um balanço, no que se fez ou deixou de fazer e olhar o futuro, para o que falta fazer, ou corrigir.

O bicentenário da Independência transformou-se em palanque eleitoral.

Há inquietações, até da preservação de nossa democracia.

Não se conhece um projeto consistente de futuro nacional.

Infelizmente, o Brasil nos últimos 200 anos se caracterizou pelo excessivo protecionismo e patrimonialismo, o que manteve o maior índice de concentração de renda do planeta.

A responsabilidade de mudança será de cada cidadão, na urna de 2 de outubro.

O futuro dependerá unicamente do voto consciente.

Ainda há tempo!

*É jornalista, advogado e ex-deputado federal – nl@neylopes.com.br.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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A saga do BRASIL após a independência

Por Tiago Cordeiro

Aventuras na História

Perto das 16h30 de 7 de setembro de 1822, um rapaz de 23 anos alcançava o alto de uma colina ao lado do riacho Ipiranga, nos arredores da vila de São Paulo, seguido de alguns acompanhantes. Era o príncipe regente dom Pedro, montado numa mula, coberto de poeira e com as botas sujas de lama. A viagem fora mais uma vez interrompida pela diarreia incômoda que o perseguia desde a partida de Santos, antes do amanhecer.

O alferes Francisco de Castro Canto e Melo, que vinha de São Paulo com notícias dramáticas, alcançou a comitiva, prestes a retomar o curso. Antes que ele desse seu recado, porém, chegaram a galope dois mensageiros do Rio de Janeiro. Traziam cartas de José Bonifácio de Andrada e Silva, da princesa Leopoldina e do cônsul britânico na capital, Henry de Chamberlain.

O sucessor do trono português não podia esperar novidade pior. Lisboa havia cassado sua regência sobre a colônia e anulava suas decisões anteriores. Um membro da comitiva, o padre Belchior Pinheiro de Oliveira, relataria quatro anos depois o que viu naquela tarde: “Dom Pedro, tremendo de raiva, arrancou das minhas mãos os papéis e, amarrotando-os, pisou-os e os deixou na relva. Caminhou alguns passos, silenciosamente. De repente, estancou já no meio da estrada, dizendo-me: ‘As cortes me perseguem, chamam-me de rapazinho, de brasileiro. Pois verão agora quanto vale o rapazinho. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações. Nada mais quero com o governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal’”. Minutos depois, diante da guarda de honra que o esperava mais à frente, desembainhou a espada para determinar: “Será nossa divisa de ora em diante: Independência ou Morte!”, descreveu o chefe da guarda, o coronel Manuel Marcondes de Oliveira Melo.

Moda tupiniquim

Poucos meses depois, nas principais cidades do novo país, muitos homens começaram a mudar alguns de seus hábitos. O deputado baiano Cipriano Barata, por exemplo, passou a se vestir exclusivamente de algodão brasileiro e a usar chapéus feitos de palha de carnaúba – no que foi rapidamente imitado. Os nacionalistas mais empolgados penteavam o cabelo de forma a deixar uma risca definida no meio da cabeça.

Era a chamada estrada da liberdade, uma forma de simbolizar os caminhos abertos pela Independência. O uso do cavanhaque, incomum entre os portugueses, também foi adotado para marcar diferença. De uma hora para outra, pegava mal fumar os adorados charutos cubanos – era obrigatório valorizar o produto nacional. Cachimbo, nem pensar, pois tornou-se símbolo dos exploradores europeus. Exagero? Muitas famílias trocaram seus sobrenomes de batismo por expressões indígenas.

Um ramo da família Galvão, de Pernambuco, passaria a se chamar Carapeba. O jornalista, advogado e político negro Francisco Gomes Brandão, um dos fundadores da Ordem dos Advogados do Brasil, adotou o nome Francisco Gê Acaiaba de Montezuma (homenagem também aos astecas).

Os modismos foram só a vitrine mais singela das transformações na vida nacional – iniciadas, é verdade, em 1808, após o desembarque da família real. A terra pela qual dom Pedro se apaixonou a ponto de romper com Portugal, reagiu com empolgação à sensação de autonomia. Quando deixou o Rio de Janeiro, em 1831, o soberano havia legado uma nação ainda turbulenta politicamente, mas já estabelecida como Império do Brasil.

O cenário que encontrou às vésperas do Grito do Ipiranga, escreve Laurentino Gomes em 1822, indicava que o país “tinha tudo para dar errado: de cada três brasileiros, dois eram escravos, negros forros, mulatos, índios ou mestiços. Era uma população pobre e carente de tudo. O medo de uma rebelião escrava pairava como um pesadelo sobre a minoria branca. Os analfabetos somavam mais de 90% dos habitantes”.

Confronto

Em importantes cidades, a novidade significou a realização literal do lema Independência ou Morte. Nas ruas, defensores do Brasil e de Portugal se estranhavam e, não raro, discutiam e se agrediam. Em alguns lugares, era preciso ter coragem para aderir à onda do cavanhaque. Em Salvador, em 1824, um padre se recusou a prosseguir com o cortejo fúnebre enquanto o defunto não fosse barbeado. Bahia, Piauí e outras províncias pegaram em armas para garantir a autonomia brasileira e a unidade do território nacional – desfecho diferente do que ocorreu nas colônias vizinhas, que acabaram fragmentadas.

A adesão ao comando do imperador, porém, não foi automática em todas as regiões. Rachas provincianos somavam-se à luta com os portugueses. Somente Rio, São Paulo e Minas Gerais aceitaram de pronto as ordens de dom Pedro. Esse processo foi mais lento sobretudo no Norte, no Nordeste e no Sul. A Guerra da Independência, iniciada em fevereiro de 1822, durou 21 meses e matou de 2 a 3 mil pessoas. “Em 1825, o governo brasileiro sequestrou os bens de portugueses que ainda contestavam a independência no Rio, na Bahia, em Pernambuco, no Maranhão e no Grão-Pará. E os intimou a deixar o país”, diz Isabel Lustosa, historiadora ligada à Fundação Casa de Rui Barbosa.

O confronto acabou de afundar as finanças quase falidas do novo governo, limitando investimentos urgentes e gerando inflação. Entre 1825 e 28, ela dobrou. Só a dívida externa superava 1 bilhão de reais em valores atualizados.

A infraestrutura das províncias mais afastadas da capital não tinha mudado muito desde a chegada de dom João. Ainda se dormia em redes e esteiras, se comia com a mão e se andava em ruas escuras e estreitas – mesmo no Rio de Janeiro, a iluminação a gás só estrearia em 1860. Mas as diferentes regiões já tinham mais contato com os acontecimentos no centro de poder. Dom Pedro I continuou a abrir estradas, que passaram a ligar a Bahia a Pernambuco, Minas Gerais a Goiás, o Grão-Pará ao Maranhão.

Nas maiores cidades, uma nova classe de trabalhadores se desdobrava com mais de uma ocupação, algo inédito depois de três séculos de controle estrito das atividades profissionais e das fontes de renda dos súditos de Lisboa. Barbeiros eram músicos nas horas vagas, pedreiros cortavam cana, advogados mantinham lojas, médicos davam aulas.

As mulheres também se viravam bem. Cozinhavam e costuravam para a família e ainda vendiam nas ruas quitutes, toalhas e roupas com a ajuda de um ou dois escravos. “A Independência dá um novo dinamismo às províncias. As pessoas tem uma grande mobilidade social, econômica e cultural. Escravos e livres se movimentam muito e exercem atividades econômicas variadas.

Surgiu uma primeira geração de ex-escravos livres. E eles, em especial as mulheres, ganharam um grande poder com a possibilidade de se casar com brancos e com a liberdade para exercer diversas atividades econômicas simultâneas”, diz Eduardo Franco Paiva, historiador e professor da UFMG. “Por outro lado, a chegada de escravos, que continuavam sendo vendidos em grandes quantidades no Brasil, manteve um grande intercâmbio cultural com a África. Também havia contato com estrangeiros de outros lugares.”

Apesar da grande desigualdade social, a miséria e a fome não eram tão comuns – diferentemente do que acontecia sobretudo no interior em tempos de seca, como a que assolou o sertão nordestino em 1825 e levou à primeira grande onda migratória interna. No Sudeste, as indústrias incipientes ganharam fôlego – especialmente fábricas de barcos, pólvora e tecidos. A produção de algodão, café e gado ocupava cada vez mais espaço, em detrimento do açúcar e da mineração. Mas as transformações mais radicais aconteceram mesmo na sede do Império: o Rio de Janeiro.

A capital

Sob o impacto dos 13 anos de estadia da corte, tudo mudou na cidade. A população saltou de 43 mil habitantes, em 1799, para 79 mil, em 1821 (ou 110 mil com a área rural). A capital já tinha uma primeira geração de médicos formados no Brasil, nas faculdades de medicina do Rio e de Salvador. Em uma época de condições sanitárias precárias, cujo sistema de esgoto consistia em grandes latões de dejetos carregados por escravos, esses doutores começavam a substituir os barbeiros com suas sanguessugas.

Era uma forma de reduzir a mortalidade em geral, o impacto das mortes no parto e, principalmente, das febres de março, que faziam diversas vítimas todos os anos. “Sistematicamente, as mortes eram bem superiores aos nascimentos. A cidade crescia graças apenas às migrações de pessoas que para lá eram atraídas. Mas, no geral, a população foi sendo beneficiada por todas as mudanças”, diz Maria Luiza Marcilio, professora da USP.

Havia um afluxo grande de estrangeiros. Em 1818, os suíços formaram a primeira colônia de imigrantes não portugueses em Nova Friburgo. Apesar da falência em 1821, o Banco do Brasil já havia ajudado a alterar a economia da cidade, que, até a década de 1810, vivia basicamente do escambo.

O porto do Rio concentrava a metade do comércio exterior nacional, sobretudo embarcando café (que, em 1840 somava quase 50% de toda a pauta de exportações) e importando produtos ingleses inéditos por aqui, de tecidos a lampiões. As pessoas rapidamente se acostumaram a se vestir mais de acordo com a moda europeia (mesmo escravos adotaram ternos, mas não podiam calçar sapatos. Os pés descalços denunciavam sua condição). A língua francesa se tornava mais comum. No começo dos anos 1830, a rua do Ouvidor já estava tomada por lojas francófonas.

Faltaram soldados nativos para as lutas de independência nas províncias, mas as escolas da Guerra e da Marinha constituíam uma crescente classe de militares. A população se acostumou com facilidade a resolver suas pendengas na Casa de Suplicação do Rio, criada por dom João VI, origem do Supremo Tribunal Federal.

O Teatro São João, a Biblioteca Real e os jornais locais faziam a vida cultural ficar muito mais diversificada e acessível, a ponto de até mesmo alfaiates manterem seu próprio veículo de comunicação. Em 1826, o surgimento da Academia Imperial de Belas-Artes tirava os desenhistas dos quartéis, onde eles se limitavam a rabiscar plantas de terrenos.

Os pianos eram uma peça obrigatória nas casas mais ricas e o imperador dedicava tempo às composições musicais. Em carta ao pai, o rei Francisco I da Áustria, a imperatriz Leopoldina escreveu: “Envio-vos nesta ocasião uma Missa de Neukomm, que merecerá sem dúvida o vosso bom acolhimento. O meu Marido também é compositor e faz-vos presente da Sinfonia e Te Deum de sua autoria; falando a verdade é um tanto teatral, que é defeito de meu Marido”.

Aluno de Joseph Haydn e colega de estudos de Ludwig van Beethoven, o maestro Sigimund von Neukomm vivia no Rio desde 1816. A influência dessa vida pujante era tal que ganhava importância o sotaque carioca, mais aportuguesado e menos marcado por expressões indígenas do que no resto do país. “Muito antes ainda (do advento) da televisão, os habitantes do Rio já influenciavam a fala dos habitantes das outras províncias”, escreve o historiador Luiz Felipe de Alencastro em História da Vida Privada no Brasil.

A Constituição

O Primeiro Reinado, claro, foi um período de intensa atividade política. A elite se dividia em várias correntes, a começar por monarquistas e republicanos (que em 1822 se aglutinaram em torno de dom Pedro para confrontar as cortes portuguesas – grandes responsáveis pelo processo que levou à Independência). A Assembleia Constituinte, instalada em maio de 1823, seria dissolvida em novembro, mas, em 1824, o imperador promulgou a primeira Constituição do país (considerada até liberal para a época).

O Poder Moderador dava a ele autoridade sobre os demais poderes, mas a Carta garantiu liberdade de culto, de imprensa (em termos, pois havia determinadas perseguições) e deu outro status à figura do eleitor. Homens maiores de 25 anos, livres, alfabetizados e com renda de 100 mil-réis escolhiam os cidadãos que podiam votar e ser votados desde que atendessem a certos requisitos.

Os religiosos seriam valorizados – até porque eles representavam parte considerável da ínfima parcela alfabetizada da população. Na década de 1820, eles eram 23% de todos os deputados. Os padres raramente usavam batinas, mantinham negócios e, com muita frequência, mulher e filhos.

As discussões a respeito dos rumos do novo país não ficavam restritas às elites (embora pelo menos parte dela tenha feito valer sua vontade, evitando o fim da escravidão, por exemplo). “A população estava longe de estar a reboque das camadas dirigentes”, escrevem os historiadores Gladys Sabina Ribeiro e Vantuil Pereira em O Brasil Imperial: “O povo foi ator político fundamental na trama do Primeiro Reinado, tanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando mecanismos formais, como petições, queixas e representações”. Os debates da constituinte foram acompanhados por populares, que gritavam palavras de ordem pedindo direitos civis e apresentavam por escrito centenas de sugestões aos deputados.

Com o desmonte da assembleia, o intendente de polícia Estevão Ribeiro de Resende mandou seus homens às ruas para apreender os panfletos com chamados à revolução. Negros e mulatos eram a maior preocupação das autoridades – se reuniam em tabernas nos arredores da cidade, área cheia de quilombos. Um grupo chegou a fundar um “Club dos Malvados” com motivações políticas e raciais. Já liberais radicais organizaram um atentado contra o imperador. Na noite em que assinou a Constituição, ele e a família foram ao teatro. Um grupo tocou fogo em poltronas, mas ele saiu ileso.

O rei voltou a enfrentar resistência política intensa dos deputados. Seus vínculos com Portugal, que vivia um período turbulento, incomodavam os brasileiros. A derrota na Guerra da Cisplatina, em 1828, havia afetado seu prestígio, já abalado pelos escândalos de alcova. Em 1831, dom Pedro voltou a dissolver seu ministério. Foi o estopim para uma série de manifestações populares, que culminaram com a família real abandonando o Rio na surdina. Em seus últimos três anos de vida, porém, ele mudaria também os rumos de Portugal.

O sucessor

Dom Pedro I indicou imperador o filho de 5 anos e deixou como tutor um dos patronos da nação, José Bonifácio. O Brasil mergulharia numa década de revoluções e turbulências, até que dom Pedro II assumisse o cargo e garantisse a estabilidade política (ao menos temporariamente) não alcançada pelo pai.

A História reconheceria, porém: Pedro de Alcântara Francisco foi um dos nomes mais importantes da trajetória do país. Não se limitou a garantir a independência do Brasil e a unidade do território.

Com ele, despontava uma nação com identidade própria. Dali em diante, a verdadeira transformação ocorreria com o fim da escravidão, em 1888. No ano seguinte, seria proclamada a República.