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Uma afronta ao artigo 42 do código de processo penal

Por Rogério Tadeu Romano*

I – O FATO

Observo o que foi noticiado pelo site do jornal O Globo, em 4.4.2022:

“A Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu nesta terça-feira que o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeite uma denúncia apresentada por ela mesma contra o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).

Na denúncia apresentada em 2012 ao Supremo, a PGR afirmava que o assessor parlamentar Jaymerson José Gomes de Amorim, servidor público da Câmara dos Deputados, foi apreendido com R$ 106 mil em espécie quando tentava embarcar no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, com destino a Brasília utilizando passagens custeadas pelo deputado federal. Ao ser detido, ele afirmou que a quantia pertencia a Lira.

Segundo a acusação feita inicialmente, os valores apreendidos deveriam ser entregues a Lira, na época líder do Partido Progressista (PP), em troca de apoio político para manter Francisco Carlos Cabalero Colombo no cargo de presidente da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU).

Em julgamento em 2019, a Primeira Turma do STF chegou a acolher em parte a acusação da PGR e decidiu transformar o deputado em réu por corrupção passiva. Agora, em parecer apresentado após novo recurso da defesa de Lira, o órgão afirma que não há elementos que justifiquem a acusação contra o parlamentar.

Para a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, a denúncia foi embasada apenas em delação premiada e não há no processo provas que reforcem a acusação.”

II – PRINCÍPIOS DA INDISPONIBILIDADE E OBRIGATORIEDADE DO PARQUET. AS HIPÓTESES DE ARQUIVAMENTO

Ora, diverso da ação civil, na ação penal pública não cabe falar em desistência.

Pertencendo a ação penal ao Estado (salvo exceções), segue-se que aquele a quem se atribui o seu exercício, o Ministério Público, não pode dela dispor. Os órgãos do Ministério Público não agem senão em nome da sociedade que eles presentam. Eles têm o exercício, mas não a disposição da ação penal, esta não lhes pertence.

Ensinou Fernando da Costa Tourinho Filho (Processo Penal, primeiro volume, 1982, 6ª edição, pág. 284) que “e, por não lhes pertencer, não podem os órgãos do Ministério Público dela desistir, transigindo ou acordando, pouco importando seja ela incondicionada ou condicionada.

Observo o artigo 42 do CPP:

Art. 42. O Ministério Público não poderá desistir da ação penal.

Como bem acentuou Guilherme de Souza Nucci ( Código de Processo Penal Comentado, 10ª edição, pág. 168) consagra-se o princípio da indisponibilidade da ação penal corolário do princípio.

Esse dispositivo constante do artigo 42 do CPP é salutar e não supérfluo, porque torna nítido que o oferecimento da denúncia transfere, completamente, ao Poder Judiciário a decisão sobre a causa. Até que haja o início da ação penal poderá o promotor oferecer o arquivamento. Após, não, a teor do artigo 28 do CPP.

Oferecida a denúncia já não cabe mais a desistência.

Consagra-se o princípio da indisponibilidade da ação penal.

Trata-se de um princípio informador da ação penal pública.

Na lição de Paulo Rangel (Direito processual penal, vigésima edição, p. 238):

A ação penal pública, uma vez proposta (obrigatoriedade) em face de todos os autores do fato ilícito (indivisibilidade), não permite ao Ministério Público desistir do processo que apura o caso penal, pois seu mister é perseguir em juízo aquilo que é devido à sociedade pelo infrator da norma, garantindo-lhe todos os direitos previsto na Constituição da República para, se for provada sua culpa, privar-lhe da sua liberdade; porém o direito de punir pertence ao Estado-juiz. Portanto, não pode dispor, o Ministério Público, daquilo que não lhe pertence.

Disse ainda Fernando Tourinho:

“Costuma-se dizer, às vezes, que o Promotor “abandonou a acusação”. Tal afirmativa, no sentido de que o Promotor desistiu da ação penal, sabe a disparate. Significa, como bem lembra Donnedieu de Vabres, que o órgão do Ministério Público se pronunciou favoravelmente ao imputado, o que é diferente”.

Por outro lado, dispondo o Ministério Público dos elementos mínimos para a propositura da ação penal, deve promovê-la (sem se inspirar em critérios políticos ou de utilidade social).

Seria possível, após o encerramento da instrução, uma proposta de absolvição por parte do Parquet ao juízo criminal. Mas isso se diferencia totalmente do caso em exame onde foi pedido o arquivamento após o oferecimento da denúncia formulada pelo órgão da acusação.

Assim caso o membro do Ministério Público esteja convencido, após a instrução probatória, da inocência do réu, deve manifestar-se, como guardião da sociedade e fiscal da justiça aplicação da lei, em sede de alegações finais, pela absolvição do imputado, o que não significa disponibilidade do processo.

No entanto, há decisão no sentido que abaixo apresento:

“No caso em questão, como ainda não havia sido iniciada a ação penal, já que ainda não recebida a denúncia pelo Juiz, nada impedia o órgão acusador de excluir da denúncia, depois de melhor exame, quem era objeto de suspeita inicial, não havendo, assim, que se falar em violação aos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade. Precedente da Suprema Corte.

  1. Ordem denegada.”. ( HC 47.536⁄BA, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 19⁄10⁄2006, DJ 20⁄11⁄2006, p. 345).

-“O órgão acusador pode excluir da denúncia, depois de melhor exame, quem era objeto de suspeita inicial; pode aditá-la para ampliar os limites da imputação e o rol de acusados, ocasião em que poderá ocorrer alteração da competência, sem que restem feridos os princípios da legalidade, obrigatoriedade, indisponibilidade (…)”(STF, HC 71899-0/RJ, Rel. Min. Maurício Corrêa – DJU 25.05.1995).

Ora, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento após a Constituição de 1988, pronunciou-se quanto ao tema em discussão, demonstrando que o julgador não está vinculado ao pedido do Parquet de absolvição. É o que se lê do que foi decidido no HC 69.957 – 0, Relator Ministro Néri da Silveira, publicado no Diário de Justiça de 25 de março de 1994.

Não se pode confundir a faculdade do Parquet de ter o juízo exclusivo de acusar diante das peças da investigação criminal, podendo ou não denunciar, com aquela cognição em que se dá a ele o papel de se requerer a absolvição. O Parquet não é o único juízo diante das provas apontadas no processo. Não se está afrontando nosso sistema acusatório, que não é puro. O que se está é salvaguardando o princípio da obrigatoriedade, se as provas conduzem à condenação. Respeita-se o princípio da verdade real.

Em síntese, pode o Parquet ao receber o procedimento investigatório: a) requerer novas diligências, denunciar ou pedir o arquivamento, se entende que não há subsídios para a acusação criminal. Ajuizada a ação penal não poderá desistir.

Dir-se-á que na medida em que o órgão da acusação desistindo da ação penal, afronta o artigo 42 do CPP, uma vez que a ação penal se esgotou na provocação da jurisdição. Agora, o que haverá é processo.

De forma conclusiva, ensinou Guilherme de Souza Nucci ( Código de Processo Penal Comentado, 10ª edição, pág. 168):

“Rege a ação penal pública a obrigatoriedade de sua propositura, não ficando ao critério discricionário do Ministério Público a elaboração da denúncia. Justamente por isso, oferecida a denúncia já não cabe mais a desistência. Consagra-se o princípio da indisponibilidade da ação penal, corolário do primeiro. O dispositivo em comento deixando clara a impossibilidade de desistência, é salutar e não supérfluo, porque torna nítido que o oferecimento da denúncia torna nítido que o oferecimento da denúncia transfere completamente, ao Poder Judiciário a decisão sobre a causa. Até que haja o início da ação penal, pode o promotor pedir o arquivamento, restando ao juiz utilizar o dispositivo no art. 28 do Código de Processo Penal. E se a instância superior do Ministério Público insistir no pedido de arquivamento, outra alternativa não resta ao Judiciário senão acatar. Entretanto, oferecida a denúncia, iniciada a ação penal, não mais se pode subtrair da apreciação do juiz o caso. Haverá necessariamente um julgamento e a instrução será conduzida pelo impulso oficial.”

III – CONCLUSÕES

A manifestação de arquivamento pela procuradora geral da República aqui noticiada de pedir o arquivamento de ação ajuizada pelo próprio Parquet é um absurdo jurídico.

Denota, antes de tudo, a possibilidade de perda de credibilidade da própria instituição, nessa quadra.

O Ministério Público Federal não age em razão de conveniências, mas da necessária obrigatoriedade ditada pela lei.

Aguardemos, pois, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal na matéria.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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