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Crônica

Aproximando e aprendendo

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Na semana passada, afirmei aqui que, apesar das origens diversas e do desenvolvimento até certo ponto paralelo, países filiados à tradição do civil law (ou romano-germânica) e países filiados à tradição do common law tiveram uns com os outros, no passar dos séculos, inúmeros contatos. E se, no passado, instituições do common law foram absorvidas pelo civil law (e vice-versa), esses contatos, recentemente, vêm, cada vez mais, se estreitando. Hoje, por exemplo, com a facilidade das comunicações e do intercâmbio cultural, um jurista ou operador do direito inglês pode estar conectado com um congênere brasileiro em tempo real. Isso faz com que os sistemas e os seus atores se aproximem e reciprocamente se aprimorem cada vez mais.

O fato é que hoje estou ainda mais certo dessa afirmação.

Por uma dessas coincidências da vida, praticamente no mesmo dia em que o texto acima era publicado, eu assistia a uma maravilhosa palestra do professor Fredie Didier Júnior sobre a importantíssima temática dos precedentes judiciais.

O pano de fundo da palestra do professor Didier foi incrivelmente coincidente com isso que tenho defendido, aliás já de algum tempo: que as diferenças existentes entre os sistemas jurídicos dos países filiados a um dos modelos, quando comparados com os sistemas dos países filiados ao outro modelo, têm sido supervalorizadas pelos operadores do direito. E no que toca ao Brasil, o nosso país, apesar de filiado à tradição do civil law, historicamente não permaneceu estranho à influência do precedente vinculante. Motivado por diversos fatores (entre eles, o de alcançar a uniformidade de entendimento sobre as questões jurídicas e o de garantir maior celeridade na prestação jurisdicional), sempre existiram tipos de decisões ou conjunto de decisões, fruto de variados institutos processuais, de seguimento obrigatório para os demais órgãos do Judiciário (às vezes para todos, outras só para alguns) e para a Administração como um todo. E a coisa vem só evoluindo: partimos dos antigos assentos portugueses, criamos um bocado de decisões de caráter vinculante (tipo a badalada súmula do STF) e chegamos ao CPC de 2015.

Essa aproximação, aliás, deve ser estendida a todo o processo civil e mais além. Como advertia, há mais de dois decênios, o professor Cândido Rangel Dinamarco (em “Fundamentos do processo civil moderno”, Malheiros, 2002), uma das tendências mais visíveis na América Latina é “a absorção de maiores conhecimentos e mais institutos inerentes ao sistema da common law. Plasmados na cultura europeia-continental segundo os institutos e dogmas hauridos primeiramente pelas lições dos processualistas ibéricos mais antigos e, depois, dos italianos e alemães, os processualistas latino-americanos vão se conscientizando da necessidade de buscar novas luzes e novas soluções em sistemas processuais que desconhecem ou minimizam esses dogmas e se pautam pelo pragmatismo de outros conceitos e outras estruturas. O interesse pela cultura processualista dos países da common law foi inclusive estimulado por estudiosos italianos que, como Mauro Cappelletti e Michele Taruffo, desenvolveram intensa cooperação com universidades norte-americanas. Os congressistas internacionais patrocinados pela Associação Internacional de Direito Processual contam com a participação de processualistas de toda origem e isso vem quebrando as barreiras existentes entre duas ou mais famílias jurídicas, antes havidas como intransponíveis. Ainda há o que aprender da experiência norte-americana das class actions, das aplicações da cláusula due process of law, do contempt of court e de muitas das soluções do common law ainda praticamente desconhecidas aos nossos estudiosos – mas é previsível que os estudos agora endereçados às obras jurídicas da América do Norte conduzam à absorção de outros institutos”.

Estou de acordo também com o professor Dinamarco. Ainda temos muito o que reciprocamente aprender com as outras culturas. Aprender é muito bom! Em especial se “audaciosamente indo aonde ninguém jamais esteve”.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Crônica

Descoberta tardia, absorção acelerada

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Mais uma vez, volto a tratar da tradição jurídica anglo-americana – o dito common law –, agora para registrar a nossa descoberta tardia da filosofia do direito produzida pela imaginação dos grandes juristas estadunidenses.

De fato, paralelamente à formação do nosso arcabouço jurídico/legal, o desenvolver da nossa filosofia do direito baseou-se em ideias originadas em países da Europa Continental. Grosso modo, duas concepções filosóficas dominaram a filosofia do direito brasileira durante os séculos XIX e XX: as concepções naturalista e positivista do direito. Na primeira, reconhece-se um direito que se baseia na razão, na qualidade do ser humano individual ou coletivo, ou mesmo na relação entre os seres humanos e Deus, que preexiste ao direito positivo, este feito pelos homens ou pelo Estado. Na segunda, que se opõe à ideia de um direito natural, o direito é apenas positivo, no sentido de que é feito pelo homem/Estado, sendo a função do operador do direito, sobretudo, manter a integridade lógica do ordenamento jurídico assim criado.

Todavia, recentemente (nos últimos 30 anos, é certo), os juristas brasileiros têm conhecido e dado vazão, mesmo que inconscientemente, a ideias de escolas tipicamente estadunidenses, como a American Sociological School of Jurisprudence e o American Legal Realism.

A visão de que o direito é, ou deve ser, a maximização das necessidades sociais e a minimização de suas tensões e custos, tal como afirmada pela escola sociológica americana, por exemplo, vem sendo cada vez mais aplicada na justiça criminal brasileira. E mesmo antes de haver um respaldo legal para tanto. Engajados nesse equilíbrio de interesses – e negando a visão tradicional de mera declaração de uma lei penal fixa – muitos promotores e juízes já vinham ponderando em suas manifestações sobre os prós e contras de um longo processo penal. E, ao considerar a pouca relevância do crime cometido, não denunciavam ou absolviam o réu do processo. Em vários tons, esse tipo de concepção foi sendo absorvida pela lei brasileira, como, por exemplo, no Acordo de Não Persecução Penal – ANPP.

Nos últimos anos, a comunidade jurídica brasileira também tem se debruçado sobre as ideias do realismo jurídico americano, que consiste, em linhas gerais, na adoção de um método empírico de investigação científica em que (i) se destaca a realidade concreta e subjetiva de cada caso, (ii) se reconhece a possibilidade de criação do direito por decisões judiciais, (iii) e mesmo se atribui um papel não decisivo à lei em sentido estrito. E isso vem abalando a doutrina segundo a qual os juízes devem apenas aplicar regras pré-existentes. Argumentam os “realistas brasileiros” que isso sempre foi uma “ilusão”, porque os juízes tomam suas decisões de acordo com suas próprias preferências políticas ou morais e escolhem uma norma adequada como racionalização. Esses realistas exigem, assim, uma abordagem científica que se concentre tanto no que os juízes dizem como no que eles fazem, e no real impacto que suas decisões têm nas mais amplas camadas da sociedade brasileira. É fundamental entender isso para que o direito possa ser aprimorado.

Bom, mas será que a adoção dessas ideias estadunidenses é uma boa para o Brasil?

Não enxergo diferença ontológica entre o direito brasileiro e o dos países da tradição do common law. Em ambos os casos, o direito sofreu forte influência da moral cristã. As doutrinas filosóficas em voga puseram em primeiro plano o individualismo, o liberalismo e a noção de direitos subjetivos. A própria substância do direito – a concepção de justiça que, em ambos os casos, é a mesma – impõe semelhantes soluções para as questões jurídicas em ambos os casos.

Ademais, do ponto de vista do pós-positivismo no Brasil (ou de um neoconstitucionalismo) – que traz para o direito questões que se situavam fora das fronteiras do discurso jurídico: política, direitos sociais fundamentais e, sobretudo, uma potencial transformação da sociedade pelo direito –, a fusão do direito brasileiro em uma perspectiva de direito global é ainda mais necessária. O ordenamento jurídico brasileiro deve dar efetividade às normas constitucionais substantivas, que, por sua vez, protegem valores como igualdade, segurança e celeridade nas decisões judiciais. Diante dessa necessidade, o Estado brasileiro é sempre obrigado a levar em consideração ideias ou mecanismos que melhorem a prestação jurisdicional como um todo.

Mas será que essa absorção, embora tardia, não está por demais acelerada? E, sobretudo, será que esse “transplante” não está carecendo de adaptações a esse organismo vivo que é o Brasil?

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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Diferenças no common law

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

A pedido de amigos, vou voltar a uma temática tratada dia desses, o common law, a conhecida tradição jurídica anglo-americana, desta feita para abordar algumas diferenças entre os direitos dos dois principais países a ela filiados, o Reino Unido e os Estados Unidos da América.

Como sabemos, a formação dos EUA remonta à fundação, pelos ingleses, nos albores do século XVII, de colônias independentes no chamado novo mundo (a primeira, em 1607, foi a Virginia). E, hoje, com a exceção do estado da Luisiana, o direito dos EUA está identificado com os princípios do common law inglês: conceitos semelhantes do direito e de suas funções, divisões similares quanto aos seus ramos, desenvolvimento de institutos jurídicos idênticos (torts, trust etc.) e um papel fundamental para o precedente judicial, entre outros.

Entretanto, no decorrer da história, o direito americano adquiriu características que o fazem diferir do direito inglês. A existência de uma Constituição escrita e rígida, o princípio da supremacia da constituição, o fato de ser uma federação, a descentralização do Poder Judiciário, a existência de alguns códigos, para citar as mais importantes, são singularidades que de fato fazem o direito americano algo diferente do seu modelo inspirador.

Compreende-se isso bem quando se faz uma comparação direta entre alguns aspectos dos dois sistemas jurídicos. Victoria Sesma, com o seu “El precedente en el common law” (Civitas, 1995), nos poupa parte desse trabalho: “Em primeiro lugar, a fundamentação do direito do common law (isto é, que o direito está baseado na autoridade não escrita do costume) é rejeitada nos EUA, onde está claro que a Constituição é a fonte fundamental e superior do sistema jurídico dos EUA. (…). Além disso, a Constituição americana prevalece sobre qualquer lei, enquanto que na Inglaterra o poder do Parlamento é ilimitado. Isto tem levado a que (devido à frequente necessidade de interpretação de preceitos constitucionais) os juízes dos EUA tenham enfrentado muito mais que os ingleses problemas de política pública (public policy), em particular no conflito entre direitos inalienáveis (vested rights) e política do estado social (social state policy). (…). Em segundo lugar, os EUA (diferentemente da Inglaterra) têm uma estrutura federal em que há dois sistemas de tribunais: estaduais e federais. Aqui não somente existem jurisdições próprias em cada estado, como também há uma multiplicidade de jurisdições federais ao longo de todo o território dos EUA e não somente na capital federal. A dispersão da organização judicial nos EUA acarreta problemas que não se apresentam na Inglaterra, e se tende a adotar atitudes mais flexíveis a respeito da autoridade das decisões judiciais. Em terceiro lugar, a necessidade de uma sistematização do direito se sentiu antes e mais urgente nos EUA que na Inglaterra, devido à quantidade de material jurídico, que é tanta, que se tornou praticamente inviável administrá-lo”.

Por fim, no que tange aos precedentes judiciais, área de minha expertise, o direito americano possui uma visão bem peculiar. Se bem que a função do precedente seja basicamente a mesma, os conceitos dos institutos sejam os mesmos, ele é mais flexível, mais pragmático e menos conservador que o direito inglês. Como regra, os precedentes devem ser seguidos porque, no interesse da sociedade, o direito deve ser estável e uniforme. Mas, como consta da decisão da Supreme Court em Hertz v. Woodman 218 US 205 [1910], a regra do stare decisis não é inflexível. Mesmo em se tratando de um precedente a priori obrigatório, os tribunais americanos não se consideram obrigados a segui-lo se ele não prima pela correção e razoabilidade; ademais, a validade de um precedente está condicionada à situação política, econômica e social presente.

As diferenças são justificáveis. Primeiramente, o número de precedentes nos EUA é colossal. Um sistema de Justiça Federal, ao lado de dezenas de sistemas estaduais, faz com que se tenham comumente precedentes contraditórios. E isso dá aos juízes a possibilidade de escolha do precedente mais adequado. Em segundo lugar, a rápida expansão americana implica mudanças políticas e sociais e isso sugere, comparando-se com a conservadora Inglaterra, que a estrita adoção da doutrina do stare decisis seja mais problemática. Por derradeiro, as questões constitucionais têm um papel crucial nos EUA. A interpretação do direito constitucional – eminentemente político – é caracterizada pela flexibilidade. E essa flexibilidade, na aplicação dos precedentes judiciais constitucionais, contamina, em maior ou menor grau, as outras áreas do direito. Fato!

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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A formação no foro

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Common law (a tradição anglo-americana) e civil law (a tradição romano-germânica ou continental) são as duas grandes famílias jurídicas do Ocidente, cada qual com origem e desenvolvimento próprios. Apesar da progressiva interação entre elas, não se pode ainda negar a realidade de tal dicotomia.

Isso implica um modo diferente de enxergar o direito pelos juristas – e, sobretudo, pelos seus “operadores” – de uma e outra família. Como diz José Luis Vasquez Sotelo (em “A jurisprudência vinculante na common law e na civil law”, que consta do livro “Temas atuais de direito processual ibero-americano”, Forense, 1998), “o direito do common law tem tido sempre para os juristas do continente europeu um aspecto misterioso, por sua falta de Códigos e de grandes leis e por estar baseado na experiência”. Por sua vez, “é conhecida a expressão que alude a que, se um jurista inglês se aventurasse na região da filosofia jurídica do Continente, se acharia como um estrangeiro em um país estranho, com homens que lhe falam um idioma desconhecido (…)”. Há um certo exagero aí, reconheçamos, sobretudo nos dias de hoje, com a globalização e interação digital que vivemos. Mas algumas diferenças eram e ainda o são, em boa medida, curiosas.

Darei dois exemplos quanto ao modo de pensar e à formação dos juristas do common law.

Quanto ao modo de pensar, sobretudo no passado, era bem nítida a distinção entre o operador do direito do common law e o do civil law. Naquele, os operadores do direito (juízes, advogados etc.) consultavam quase que exclusivamente os precedentes judiciais; neste, a legislação. E não há dúvida de que, ainda hoje, o modo de pensar do juiz do common law é diferente do modo de pensar do juiz do civil law. A Inglaterra continua sendo o principal exemplo disso, como expõe Sotelo: “Quando um jurista inglês estuda a solução aplicável consultando metódica e conscientemente as coleções de precedentes, após encontrar a solução, ele se pergunta se aquele ponto de vista terá sido modificado por alguma lei, consultando para isto o conjunto da Legislação. Um jurista de civil law busca, no Código ou na lei, a solução para o caso em questão. Um jurista do common law somente vê, na lei, as possíveis exceções à solução dada pelos precedentes vinculativos. Disso, ademais, resulta uma consequência importante: os statutes ou leis em sentido estrito, já que são regulamentações de exceção, devem ser interpretadas restritivamente”.

E quanto aos EUA, registra Eduard D. Re (em “Stare Decisis”, artigo publicado na Revista Jurídica, n. 198, abr. 1994) que Benjamin N. Cardozo (1870-1938), célebre Justice da Suprema Corte, disse: “a verdade é que muitos de nós, criados nas tradições do common law, encaramos a legislação com uma desconfiança que podemos deplorar, mas não negar”. E que Harlan F. Stone (1872-1946), outrora Chief Justice (Presidente) afirmou, sobre essa desconfiança, que “os tribunais do common law têm dado relativamente pouco reconhecimento à legislação, enquanto ponto de partida para formação de suas decisões, se a compararmos à força que emprestam aos precedentes”.

Outrossim, e até mais curiosamente, os grandes juristas do common law, em regra, tiveram sua formação no foro e não nas universidades. A maior prova disso é que, dentre os “antigos”, os maiores tratadistas do direito inglês foram exatamente os grandes juízes. Basta lembrar Bracton (1210-1268), Edward Coke (1552-1634) e William Blackstone (1723-1780), este sempre reverenciado, quando se fala do common law, por sua obra “Commentaries on the law of England” (1765-1770). Quanto ao direito americano é impossível falar dele sem mencionar juízes como John Marshall (1755-1835), Oliver Wendell Holmes Jr. (1841-1935) e Benjamin Cardozo, entre outros.

Aliás, lembra Sotelo que Roscoe Pound (1870-1965) quis expressar “a contraposição entre os dois sistemas afirmando que, enquanto o Direito anglo-americano é um Direito dos Tribunais, cujos oráculos são os Juízes, o do Continente é um Direito de Universidades, cujos oráculos são os Professores. A diferença metodológica pode ser representada claramente contrapondo-se um ‘Direito de Juízes’ a um ‘Direito de Catedráticos’”.

Bom, vocês poderiam me contrapor citando o próprio Roscoe Pound, que foi um professor. E um gigante. Ou mesmo Lon Fuller (1902-1978), Herbert Hart (1907-1992), Jonh Ralws (1921-2002) ou Ronald Dworkin (1931-2013). Mas esses últimos foram sobretudo filósofos e não “operadores” do direito. E são mais modernos. Quase de hoje. E as coisas mudam, sabiam?

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.