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Crônica

A ética do jurado

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

O tribunal do júri é um dos institutos mais encantadores do direito, sobretudo para o leigo nas lides jurídicas. É a forma de julgamento, cuja ancestralidade remonta aos primórdios da civilização, que, com toda a sua teatralidade, os debates entre acusação e defesa, a presença do réu, a majestade do juiz presidente e a reunião dos jurados em sala secreta, mais apelo tem no imaginário popular. No mundo anglofônico – onde está a origem moderna do instituto –, ele tem seu fundamento na cláusula 39 da Magna Carta, que fala em “processo legal por seus pares”.

É um prato cheio para a ficção jurídica, sobretudo para o cinema e as séries de TV (tipo “Law & Order”). E o mais típico dos filmes de júri é “Doze Homens e uma Sentença” (“12 Angry Men”, 1957), direção de Sidney Lumet (1924-2011) e estrelado por Henry Fonda (1905-1982).

À primeira vista, o enredo de “Doze Homens e uma Sentença” é simples.  Um jovem porto-riquenho, pobre morador de um “slum” (algo próximo de um “pardieiro”), é acusado de haver assassinado o pai. “As provas circunstanciais” estão contra ele. Doze jurados se reúnem para chegar a uma decisão unânime. Não alcançada a unanimidade, o júri será dissolvido. Onze jurados, já na primeira votação, optam pela condenação do réu. Henry Fonda é o jurado número 8 que, menos por acreditar na inocência do réu e mais por não crer na consistência das provas, obsta essa unanimidade. E o jurado número 8, após muita discussão, consegue finalmente convencer os demais jurados para fins de absolvição do jovem réu.

Todavia, um olhar mais atento ao filme nos revela como as decisões judiciais (ou quaisquer decisões) são tomadas. No ambiente sufocante da sala secreta, com calorosos debates, as personalidades dos jurados (todos homens e identificados, salvo na cena final, apenas por números e pela profissão) se evidenciam, assim como são revelados os motivos de cada um deles – baseados em preconceitos e experiências bem pessoais – para a decisão açodada de condenação do réu.

O jurado nº 7 é um descompromissado que quer uma decisão rápida para poder ir ao jogo de baseball da noite. O jurado nº 2 é um pacato bancário que, num primeiro momento, por não ter uma personalidade forte, apenas segue a maioria. O jurado nº 5 tem uma origem humilde e, a partir de certo ponto da narrativa, tende – ou é acusado de – a simpatizar com o réu. As acusações partem, principalmente, do jurado nº 3, um raivoso homem de negócios com um histórico de sérios conflitos com o filho (que ele enxerga no réu). O jurado nº 4 é um consultor na bolsa de valores, frio e analítico. O jurado nº 10 é um preconceituoso. Seu preconceito se dirige, para além do réu, contra o bom jurado nº 11, um europeu do Leste naturalizado norte-americano. O filme mostra, assim, o pior da Justiça e do tribunal do júri, quando decisões sobre a vida, a liberdade ou o patrimônio de pessoas são tomadas com base em preconceitos ou por homens descompromissados. E não pensem que decisões assim fundadas são privilégio do tribunal do júri. Elas se dão também com juízes de carreira, embora em menor grau, já que esses juízes são ou deveriam ser treinados para minimizar tais influências. Os que tenham estudado como se dão os processos de decisão confirmarão o que eu digo.

Mas nem só de “bigots” (pessoas radicais ou intolerantes) é feito o heterogêneo júri de “Doze Homens e uma Sentença”. Além do já mencionado jurado nº 11, há o de nº 9, um velhinho que, pela idade, não é levado a sério por alguns dos jurados, mas que, ao final, se mostra observador e sábio. O próprio jurado nº 1, que preside os trabalhos na sala secreta, se mostra agregador e eficiente. Isso sem falar no onipresente jurado nº 8 (Henry Fonda). Ele é o cidadão que trabalha, dentro do sistema, para que a Justiça dos homens coincida com a “justiça ideal” e, ao final, consegue convencer os demais jurados, defendendo a presença da chamada “dúvida razoável” (“reasonable doubt”), para fins de absolvição do jovem réu. Na atuação do jurado nº 8, o filme apresenta o que o júri ou a Justiça tem de melhor. E mesmo a diversidade estereotipada dos doze jurados não deixa de ser uma homenagem ao pluralismo, à tolerância e ao consenso, pilares de um estado democrático de direito para a realização final da Justiça.

Por fim, vai uma observação sobre o Brasil. Segundo a nossa CF (art. 5º, inciso XXXVIII, alínea “d”), compete ao tribunal do júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Na fase final, na sessão de julgamento propriamente dita, sete cidadãos comuns (sem necessária formação jurídica), que compõem o conselho de sentença, decidem, de acordo com as suas consciências e (supostamente) as provas dos autos, o destino do réu. Tenho dúvidas quanto à positividade do júri. Não conheço profissionalmente os modelos inglês ou norte-americano. Mas, quanto ao nosso, conheço coisas de patéticas a escabrosas. Na verdade, tenho um caminhão carregado de críticas.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Crônica

A ética do governante

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Apelidamos jurídica a ficção cujos enredos têm forte ligação com o direito, porque, entre outras coisas: (i) abordam temas da filosofia jurídica – incluída a ética das profissões do direito –, que são, como na filosofia em geral, quase infinitos em sua variedade; (ii) são inspirados em casos reais ou em grandes eventos da história do direito; (iii) boa parte das estórias se passa perante um aparelho judicial em funcionamento. Permeando tudo isso, temos as “personagens” do direito, sobre quem os enredos também costumam focar: o réu, a vítima, o advogado brilhante, o promotor que busca a “justiça”, o juiz “justo”, o controverso júri e por aí vai.

Dito isso, doravante relacionaremos clássicos da literatura universal e do cinema com as profissões/personagens do direito, focando, tanto quanto possível, nas suas respectivas éticas.

Comecemos por aquele personagem que exerce o papel de soberano, governante ou legislador. Já em “Antígona” (441 a.C.), talvez a mais famosa peça de Sófocles (497-406 a.C.), encontramos uma lição para todo aquele que governa um Estado (ou faz parte desse governo): o poder tem limites. Nessa peça, em meio à guerra entre Tebas e Argos, a personagem-título, filha do incesto entre Édipo e Jocasta, opõe-se à proibição do rei de Tebas, Creonte, de enterrar o seu irmão Polinices, considerado um traidor da pólis tebana. Alegando um direito natural, ela dá exéquias ao irmão. E é condenada à morte, “enterrada” viva em uma caverna/túmulo. A partir daí, mil tragédias se sucedem, até que se cumpram os “destinos” de todos.

Vejamos trechos da peça, na tradução de Millôr Fernandes (Paz e Terra, 1996), que servem como lição para qualquer governante: “Dizem que a justiça é lenta, mas não existe nada mais veloz do que a injustiça”; “A tua lei não é a lei dos deuses; apenas o capricho ocasional de um homem. Não acredito que tua proclamação tenha tal força que possa substituir as leis não escritas dos costumes e os estatutos infalíveis dos deuses. Porque essas não são leis de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos: ninguém sabe quando apareceram”; “Sábio é quem não se envergonha de aceitar uma verdade nova e mais sábio é o que a aceita sem hesitação. (…). Domina a tua cólera e cede no que é justo”; “Nenhum Estado pertence a um homem só. A cidade então não é de quem governa? Pensando assim serias um bom governante, mas de um deserto”; “Não deixem que meu coração fraqueje vendo a destruição que causei por não reconhecer que havia leis antes de mim”. Os versos de Antígona assumiram um status único, na civilização ocidental, na busca pela justiça em uma sociedade de homens e mulheres. Como aduz Otto Maria Carpeaux (citado por Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinto, em “O teatro e a história do direito: a experiência da tragédia grega”, no livro “Direito & literatura: reflexões teóricas”, Livraria do Advogado, 2008), Antígona “anda pelos séculos, sombra comovente, e em tempos de tirania volta ao palco para consolar-nos, fortalecer-nos pelo exemplo”. Nenhum poder deve ser absoluto! Aqui grito!

Lição complementar nos é dada em “Medida por Medida” (1604), de Shakespeare (1564-1616), que tem o seguinte enredo: o Duque de Viena, preocupado com a frouxidão das leis e a corrupção generalizada, anuncia que irá deixar a cidade temporariamente (embora continue ali disfarçado de frade) e põe no poder seu homem de confiança, Ângelo, conhecido pela rigidez de conduta. Ângelo ordena o fechamento de todas as casas de prostituição e também condena à morte Cláudio apenas por ele ter engravidado sua noiva Julieta. A irmã de Cláudio, a casta freira Isabela, vai interceder junto a Ângelo em favor do irmão que espera o dia da execução. Ângelo apaixona-se e propõe perdoar Cláudio se tiver Isabela em sua cama. Sabedor de tudo, o Duque/frade participa de uma trama para enganar Ângelo, fazendo-o dormir com Mariana, pensando ser ela Isabela. Ao final, o Duque reaparece, desmascara a hipocrisia de Ângelo e obriga-o a casar com Mariana. O Duque, perdoando a todos, ainda casa Cláudio e Julieta, enquanto espera ter Isabela para si mesmo.

Na peça, em que nenhuma personagem é inteiramente boa ou má, enxergamos a “ética” do Bardo (na tradução de Carlos Alberto Nunes, Edições Melhoramentos): “Que lhe perdoe o céu, como a nós todos! Uns sobem pelos crimes; outros caem pela virtude. Alguns vivem impunemente, nos vícios atolados, outros por uma falta são julgados”; “Não podemos medir nossos vizinhos pela nossa bitola; os poderosos riem das coisas santas; o que neles é espírito, não passa de disforme profanação nos outros”; “antes de a alguém castigar, deve seus erros pesar. Vergonha para quem pune pecados sem ser imune”; “Leis para todas as faltas (…): são motivo de zombaria mais que de advertência”; “Dizem que os melhores homens hão de conter sempre defeitos e que chegam a ser melhores quando alguma coisa de ruim contêm”.

Numa terra onde o vício floresce, a justiça implacável parece ser a solução. A “justificada” tirania de um só “incorruptível”, que se acha o próprio direito, há de reparar o dano que a frouxidão tem causado. Mas aí é que surge a hipocrisia dessa justiça absoluta aplicada pelos homens. Essa justiça, no mundo real, de paixões e fraquezas, simplesmente porque não funciona, não é a medida certa. Pelo menos não na visão do grande conhecedor da alma humana que foi Shakespeare.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Artigo

Independência de si mesmo

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Na semana passada, tratei aqui da contaminação do discurso jurídico, no seu próprio ambiente – grosso modo, nos autos –, por um tipo disfarçado de ficção, um “direito contado”. Falei dos discursos dos profissionais do direito em seus métiers, sobretudo aqueles produzidos por personagens membros do Ministério Público e juízes. Sugeri que eles entronizaram a famosa assertiva de Ost, de que “do relato é que advém o direito”, para fazer um uso deveras errado dela.

A partir desse texto, nos grupos de WhatsApp da Academia de Letras e da Academia de Letras Jurídicas norte-rio-grandenses, recebi uma provocação do meu professor de introdução ao estudo do direito, Ivan Maciel de Andrade, com o seguinte teor: “e o fenômeno chamado ‘bias’ – em que medida interfere no ‘livre convencimento’ ou na ‘persuasão racional’ do julgador?”.

A resposta é: numa grande medida. Sabemos disso desde os tempos do realismo jurídico americano, sobretudo na sua segunda fase, quando seus líderes, entre eles Jerome Frank (1889-1957) e Karl Llewelyn (1893-1962), desmascararam a doutrina tradicional, segundo a qual os juízes decidiam apenas aplicando as normas/regras mencionadas nos seus pronunciamentos, para também colocar na ribalta, como razão determinante da tomada de decisões, as preferências políticas ou morais do julgador. A norma jurídica formalmente escolhida/apresentada seria apenas a racionalização de uma decisão já “preconceituosamente” tomada.

Nem tanto ao céu, nem tanto à terra, reconheço que tomamos decisões baseados numa miríade de razões/fundamentos, somente alguns dos quais são racionais ou mesmo conscientes. Os passos na elaboração de uma decisão são complexos e não óbvios. Acho que é impossível nos vermos totalmente livres dos nossos preconceitos, bias ou mesmo ideologias ao tomarmos qualquer decisão. Na vida cotidiana, certamente. E na atividade ministerial/judicante também.

Phillip J. Cooper (em “Public Law and Public Administration”, F. E. Peacock Publishers, 2000), com base nas ideias do legal realism, dá um resumo: “O Direito consiste em um conjunto de decisões tomadas por pessoas no poder. Essas decisões não são necessariamente racionais. Os juízes têm preferências e valores, e suas decisões, bem ou mal, são afetadas por características herdadas ou adquiridas que eles trazem para a magistratura. O comportamento dos juízes também é afetado, especialmente em tribunais, pelo fato de que tais cortes são órgãos colegiados que operam com toda a força e todas as fraquezas impostas pela dinâmica de pequenos grupos”.

De toda sorte, acredito que podemos – e, mais do que isso, devemos –, como profissionais do direito, minorar a influência dos nossos preconceitos, bias ou ideologias nas nossas decisões. Devemos tentar ser independentes de nós mesmos, quero dizer. Aliás, diferentemente do homem comum, o juiz/promotor deve ser treinado para isso. Julgar é o métier deles. E há instrumentos para minorar essa “influência de si mesmo”. A lei serve para isso. Os precedentes também.

Nesse ponto, nunca deixo de mencionar a lição de Andrés Ollero Tassara (em “Igualdad en la aplicación de la ley y precedente judicial”, Centro de Estudios Constitucionales, 1989): “Dentro de uma apresentação estritamente técnica da função de aplicação das normas, a ‘independência’ indicava a subtração a qualquer imperativo ou fonte de pressão, alheios ao processo técnico (‘políticos’, para reduzir o tópico). O juiz não deve depender de ninguém, e só se reconhecer submetido ao texto legal. O problema surge quando se torna evidente que não há tal aplicação técnica sem prévia interpretação valorativa; nela os juízos encadeiam-se inevitavelmente com juízos prévios, que marcam uma dependência peculiar do juiz: de si mesmo e de tudo o que compõe seu horizonte interpretativo, pessoal e dificilmente transferível. Esta dependência do juiz do seu próprio entorno, juntamente com o caráter mais ou menos aberto, mas sempre histórico do sentido do texto legal, explica a pluralidade interpretativa que os diversos órgãos acabam produzindo. A hierarquização processual ajudará a reduzir essa dependência judicial, suavizando-a. Prescindindo dessa e de outras instâncias de controle, entre as quais o respeito ao precedente (exigido pela igualdade) ocupa lugar destacado, não se faria homenagem alguma à independência de uma subjetividade cuja eliminação é tão utópica como indesejável, dado que, sem tais juízos prévios, nunca haveria juízo algum. Vincular o juiz ao precedente [à lei parece mais que óbvio] é obrigá-lo a controlar seus próprios juízos prévios em diálogos com juízos próprios e alheios. Assim se tornará mais dono de si mesmo e aumentará também a dimensão de sua independência; porque nada corrói mais a confiança na Justiça do que as aparências de arbitrariedade (‘independência’ sem controle) nos responsáveis por realizá-la”.

Por fim, admitindo como uma realidade a impossibilidade de uma decisão pura, livre de quaisquer preconceitos/bias, o que vejo hoje é uma hiperinflação das ideologias. Para um lado e para o outro, a todo redor, diga-se de passagem. E isso é péssimo.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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Artigo

Uma abreviada visitação às teorias do Direito: de Platão a Michael Sandel

Por Gláucio Tavares Costa*

O conceito de Justiça, no decorrer dos estudos das ciências humanas desde a antiguidade à atualidade, sofreu diversas modificações, conforme o momento histórico da própria sociedade. Em apertadíssima síntese, é oportuno pontuar alguns entendimentos sobre tal conceito.

Nesse trilhar, as teorias clássicas de justiça encontram assentamentos no entendimento dos filósofos antigos e medievais. Cite-se, a propósito de representar uma das concepções clássicas de justiça, Platão que, na obra A República, em um diálogo de Trasímaco, procura definir o justo como sendo tudo quanto os mais poderosos ordenam em seu próprio benefício.  Em outro diálogo, atribuído ao personagem Polemarco, define o justo como fazer o bem a quem é amigo e o bem a quem é inimigo. Em contraposição, a justiça – explica Sócrates – reside muito mais na satisfação dos mais fracos ou dos menos peritos do que na dos mais fortes e sábios. Platão conclui, numa acepção comunitarista, que serão justas todas as ações que contribuam para a manutenção e o sucesso da pólis perfeita, ou seja, o bem do indivíduo é o bem da comunidade (Vasconcelos e Chaves, 2016).

A conceituação de Aristóteles sobre justiça também aponta no sentido do bem da coletividade, na medida que ao considerar o ser humano um animal político, que necessita viver em comunidade, parece ser justa a ação que beneficia a coletividade, sendo a justiça uma virtude social (Vasconcelos e Chaves, 2016). Há que se compreender a igualdade sob um prisma relativo, ou seja, como uma exigência de que os iguais sejam tratados da mesma forma, como pensada por Aristóteles, na sua obra clássica – Ética a Nicômaco.

No medievo, Santo Tomás de Aquino, por sua vez, desenvolve a concepção aristotélica proporcionalista e equitativa da justiça, entendida como “a vontade constante e perpétua que dá a cada um o que é seu de direito”.

Com o liberalismo, na Idade Moderna, John Locke (1632 – 1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778), ao ter por mira que os homens nascem livres e iguais, aponta-se que o conceito de justiça deve resultar do exame da realidade, concluíram que leis ou instituições tendentes a suprimir a liberdade individual ou a privilegiar alguns em detrimento de outros eram inevitavelmente injustas, porquanto violavam a natureza e a essência do próprio homem.

Immanuel Kant (1724-1804) buscou fundamentar a justiça não em elementos exteriores ao sujeito cognoscente, mas na própria estrutura da razão humana, considerada em sua extrema pureza, despida de elementos empíricos ou provenientes direta ou indiretamente da experiência humana.

Herdeiro da filosofia ética de Kant, o norte-americano John Rawls (1921 – 2002) formulou uma teoria da justiça da contemporaneidade, que pode ser descrita como uma aplicação dos pressupostos da ética kantiana às condições sociais do mundo contemporâneo. Rawls pressupõe que todos os indivíduos humanos são, em essência, livres (i.e., detêm livre-arbítrio), iguais (são membros da mesma espécie), racionais (têm o dom da razão e do discurso articulado) e moralmente autônomos (são capazes de regularem sua conduta de acordo com as suas próprias normas). Assim como Kant, ademais, Rawls procura definir o conceito de justiça através de um procedimento imaginativo de universalização (no caso de Kant, o imperativo categórico; em Rawls, a posição originária). A própria noção de justiça, conclui Rawls, pressupõe a igualdade substancial entre os seres humanos (Vasconcelos e Chaves, 2016).

O professor estadunidense Michael J. Sandel também propõe uma teoria de justiça, assinalando que justiça envolve o cultivo da virtude e a preocupação com o bem comum, além de não se dissociar de variadas concepções de honra e virtude, orgulho e reconhecimento. Justiça é a forma certa de distribuir e também de avaliar as coisas. Se uma sociedade justa requer um raciocínio conjunto sobre a vida boa, resta perguntar que tipo de discurso político nos conduziria nessa direção.

Como se depreende nesta sumária visitação a posições doutrinárias, o conceito de justiça não é estanque, sofrendo evolução de acordo com o momento histórico, contudo, de maneira geral a ideia de justiça remete a igualdade, a virtude moral, a harmonização de interesses conflitantes e na exigência de que uma decisão seja o resultado da aplicação correta de uma norma, como coisa oposta à arbitrariedade.

REFERÊNCIAS

  1. Bordat, Cristiano. O Poder em Foucault: a noção de poder para o filósofo francês, 2021. Café com Sociológia. Disponível em https://cafecomsociologia.com/o-poder-em-michael-foucault/. Acesso em: 31 de maio de 2023.
  2. Chomsky, Noam e Foucault, Michel. Debate Noam Chomsky & Michel Foucault On human nature, 1971. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=9_HaHtcKG9c.
  3. Cunha, Maria Carolina S. P. da. O CONCEITO DE JUSTIÇA PARA MICHAEL SANDEL NA OBRA “JUSTIÇA: O QUE É FAZER A COISA CERTA?”REGRAD, UNIVEM/Marília-SP, v. 10, n. 1, p 129 – 146, outubro de 2017.
  4. MD002 – Teoria do direito. In: Campus Virtua da Universidad Europea del Atlántico. Recuperado de https://campus2.funiber.org/mod/scorm/player.php?a=10659&currentorg=ORG-49820F63C04BE077A080F429A58E974D&scoid=912548&sesskey=ZCmv4YSuFT&display=popup&mode=normal. Acesso em: 31 de maio de 2023.
  5. Piske, Oriana. A Noção de Justiça e a Concepção Nomativista-Legal do Direito, 2010. Disponível em https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2010/a-nocao-de-justica-e-a-concepcao-nomativista-legal-do-direito-juiza-oriana-piske#:~:text=A%20Justi%C3%A7a%20%C3%A9%20%22a%20virtude,na%20vida%20social%20da%20comunidade.. Acesso em: 1° de junho de 2023.
  6. Silva, Adelmo José da. Poder político e poder de justiça em Michel Foucault, 2017. Astrolábio. Revista internacional de filosofia. Núm. 20. ISSN 1699-7549. pp. 25-34.
  7. Vasconcelos, Fernanda Sousa; CHAVES, Raphael Ayres Moura. Teorias clássicas e contemporâneas da justiça: de Platão a John Rawls. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4638, 13 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46469. Acesso em: 31 mai. 2023.

*É assessor Jurídico do TJRN e mestrando em Direito pela FUNIBER.

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Crônica

Direito em Cervantes

Marcelo Alves Dias de Souza*

O direito – a Justiça, sobretudo – é um tema recorrente na obra dos grandes escritores. Não seria diferente com Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), no seu “Dom Quixote” e nos seus títulos menores. Isso é percebido pelos experts cervantinos. Na verdade, como aduz Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares, em “Atmósfera universitaria em Cervantes” (Ediciones Universidad Salamanca, 2006), “as considerações sobre o direito são abundantes no Quixote, declarando-se até que o fim deste é justamente ‘a justiça distributiva e dar a cada um o que é seu’. É por isso que as menções à justiça e ao direito possibilitaram tantos trabalhos especializados”.

Eu mesmo possuo um pequeno grande livro intitulado “El ideal de Justicia de Don Quijote de la Mancha”, por um certo D. Adolfo Pons y Umbert, resultado do seu discurso de posse na Real Academia de Jurisprudencia y Legislación de España. Minha edição, deste século, da Thompson/Aranzi/Civitis, é um fac-símile de uma edição de 1922 da tradicional Editorial Reus, que se afirma “a mais antiga editora jurídica em língua castelhana” (deve ser, por supuesto). Embora denso e duro de se ler, dada a forma de palestra, não ajudada pelo castelhano de então, trata-se de um livro raro, que já disponibilizei, a pedido, para alguns amigos queridos.

Mas é sobretudo com base em “Atmósfera universitaria em Cervantes” que ora apresento alguns aspectos da temática jurídica em Cervantes.

De início, reitero o fascínio de Cervantes com os estudos jurídicos. No próprio “Quixote” é anotado ser o “estudo das Leis” – o estudo universitário do direito – o propósito de muitos pais para a promoção de seus filhos, devido às muitas oportunidades e favores daí decorrentes.

Grandes jurisconsultos são citados nas obras de Cervantes, anota o autor de “Atmósfera universitaria em Cervantes”. Por exemplo, “o nome de Justiniano é referido pela boca da personagem Redondo na comédia Pedro de Urdemalas, ainda que de forma grosseira. O mesmo se dá com os importantes juristas medievais Bartolo ou Baldo”. Em “La elección de los Alcaldes de Daganzo”, uma farsa, “num coro de músicos e ciganos, faz-se referência a Bartolo”. Há também “uma menção aos juristas Bartolo e Baldo em La tía fingida, atribuída por um tempo a Cervantes”.

O direito, a legislação e, sobretudo, as fórmulas legais de então estão muito presentes no “Quixote”. Especialistas apontam vários episódios na narrativa que trazem problemas jurídicos ali bem “resolvidos” à luz da legislação da época. Termos legais, forenses e notariais, suas locuções e fórmulas, são mesmo abundantes na obra. Mais do que um estudo formal do direito, essa terminologia mostra a familiaridade de Cervantes com os processos judiciais, os serviços notariais e as funções administrativas de então, até por haver ele trabalhado como comissário de suprimentos e cobrador de impostos na Administração. São expressões como “salvo melhor parecer”, “sem prejuízo de terceiros” etc., que, por sinal, até hoje ainda usamos.

Questões de filosofia do direito, para além da “lei” em si, abundam no “Quixote”. Como anotado por Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares: “As leis divinas e humanas asseguram o direito de defesa”; “Pela lei natural é obrigatório favorecer os cavaleiros andantes”; “O cavaleiro andante deve ser jurista e saber as leis da Justiça distributiva e comutativa”; “É lei natural e divina defender a vida”; “As leis vão aonde querem os reis”; “O excessivo rigor da lei não deve pesar sobre o delinquente”; “Muitas leis não devem ser feitas, e as feitas devem ser cumpridas”; e por aí vai.

Mas é sobretudo “o ideal de Justiça” o grande “objetivo jurídico” do Quixote. É algo recorrente na obra, em busca de uma Justiça da “Idade de Ouro”, plena, imperturbável a favores ou interesses. E o próprio D. Quixote oferece conselhos a Sancho Pança para o governo de sua ínsula, que podem ser resumidos na ideia de que a compaixão é sempre melhor do que o rigor. Todavia, como lembra Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares, “José María Maravall destacou que a defesa da Justiça e da paz de Dom Quixote, e sua defesa da Idade de Ouro, não pode ser separada de sua figura ridícula e anacrônica. A justiça de seu tempo não era mais uma questão de esforços individuais ou do estilo natural daquela Idade de Ouro rural, mas das engrenagens administrativas e militares dos novos Estados renascentistas”. A Justiça de D. Quixote não pode ser tida como solução estatal, mas apenas como um modo de conduta particular, dirigida aos outros de forma pessoal. A restauração de uma sociedade cavalheiresca e virtuosa já não era mais imaginável, senão como utopia. Tristíssima constatação sobre o cavalheiro da triste figura.

No mais, quedou-me uma dúvida: ao pensarmos numa justiça ao mesmo tempo distributiva e comutativa somos todos Quixotes? É isso?

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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Checagem de fatos

Justiça nas estrelas

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Como prometido, misturando Shakespeare com ficção científica, tratarei hoje da filosofia do direito presente nas aventuras de “Jornada nas Estrelas” (“Star Trek”, no original). E se assim o faço é porque acredito no que é defendido pelos autores de “Star Trek Visions of Law & Justice” (editado por Robert Chairs e Bradley Chilton e publicado pela Adios Press, 2003): se na obra de Shakespeare encontramos todos os tipos de seres humanos, em “Star Trek” podemos achar todos os questionamentos conhecidos da condição humana – e alguns desconhecidos até que vislumbrados em um dos muitíssimos episódios da franquia.

Peguemos a questão do modelo – ou da medida, usando de uma licença poética – de Justiça que queremos para uma sociedade. Esse dilema nos é apresentado na comédia shakespeariana “Medida por Medida” (de 1604), que é considerada, de par com “O Mercador de Veneza” (1597), como registra Daniel J. Kornstein em “Kill All the Lawyers? Shakespeare’s Legal Appeal” (University of Nebraska Press, 2005), uma das duas peças marcadamente “jurídicas” do bardo.

Até para não fazer spoiler, deixo a trama de “Medida por Medida”, em que nenhuma personagem é inteiramente boa ou má, para uma futura pesquisa/leitura de vocês. Mas colho algumas sentenças do seu texto: “Que lhe perdoe o céu, como a nós todos! Uns sobem pelos crimes; outros caem pela virtude. Alguns vivem impunemente, nos vícios atolados, outros por uma falta são julgados”; “Não podemos medir nossos vizinhos pela nossa bitola; os poderosos riem das coisas santas; o que neles é espírito, não passa de disforme profanação nos outros”; “antes de a alguém castigar, deve seus erros pesar. Vergonha para quem pune pecados sem ser imune”; “Leis para todas as faltas (…): são motivo de zombaria mais que de advertência”; “Dizem que os melhores homens hão de conter sempre defeitos e que chegam a ser melhores quando alguma coisa de ruim contêm”.  Em “Medida por Medida”, numa terra onde o vício floresce, a justiça implacável parece ser a solução para todos os problemas. E a “justificada” tirania de um só “incorruptível” há de reparar o dano que a frouxidão tem causado. Mas aí é que surge a hipocrisia da justiça absoluta aplicada pelos homens. A justiça pura e absoluta, no mundo real, de paixões e fraquezas, porque simplesmente não funciona, não é a medida certa. Pelo menos não na visão do grande conhecedor da alma humana – certamente o maior de todos que, em poesia, dela tratou – que foi Shakespeare.

Considerando os modelos/paradigmas da “justiça absoluta”, da “justiça equitativa” (com base nas particularidades do caso) e do “devido processo legal”, à moda de Shakespeare, o direito da Federação em “Star Trek” opta claramente por rejeitar a ideia de justiça absoluta. Como se lê em “Star Trek Visions of Law & Justice”: “Dentro das várias reencarnações de Star Trek, esses modelos, paradigmas se vocês assim desejarem, de direito e justiça são vistos em constante conflito. Este conflito se dá em nível macro na oposição entre o equitativo/processualmente justo modelo da Federação v. os modelos absolutos dos ditos primitivos Klingons, Romulanos e Ferengis, dentro da Federação entre os seus mundos, e especificamente como um tema de constante conflito dentro da Frota Estelar, quando a absoluta Primeira Diretriz [de não intervenção em outras civilizações] se choca com equitativas considerações de justiça em situações concretas”.

No mais, é fundamental não confundir a ideia de justiça absoluta com sistemas políticos autoritários ou totalitários. Aquela pode ser uma característica comum a esses. Mas essa perigosa justiça absoluta pode também andar disfarçada no mais edílico dos sistemas políticos. Aliás, foi ao fim de um episódio de “Star Trek: the Next Generation”, em que uma punição é buscada a qualquer preço, que o capitão da Enterprise, Jean-Luc Picard, alertou aos seus companheiros de jornada: é fácil identificar o bandido que enrola o bigode; difícil é identificar aquele que, sob uma falsa aparência de justiça, em verdade faz terror.

Bom, os autores de “Star Trek Visions of Law & Justice” indagam: deve ser “Star Trek” objeto de estudo da ciência política, da sociologia, da filosofia ou mesmo virar um novo campo para os estudos jurídicos [à semelhança de como se dá com a obra de Shakespeare, acrescento eu]? Advogo que sim; e para toda boa ficção científica. Anteciparemos muitos dos nossos problemas – jurídicos – do futuro. Aqui não posso pedir para que se escreva um livro “Jornada nas Estrelas e a filosofia do direito” como obra seminal. Essa obra já existe em “Star Trek Visions of Law & Justice” (ou em outros estudos que eu desconheço). Mas que tal subirmos nesses “ombros de gigantes” para enxergarmos mais longe? Explorando novos mundos, novas vidas, novas civilizações, juridicamente “indo onde nenhum homem jamais esteve!”.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

 

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Um decreto de indulto inconstitucional

rogerio tadeu romano <bodeu@hotmail.com> 26 de dezembro de 2022 às 17:30
Para: Bruno Barreto <bruno.269@gmail.com>
UM DECRETO DE INDULTO INCONSTITUCIONAL

Rogério Tadeu Romano

Segundo o G1 São Paulo, em 23.12.2022, “o decreto do último indulto de Natal do presidente Jair Bolsonaro (PL), publicado nesta sexta-feira (23) no Diário Oficial da União, perdoa as penas e extingue as condenações dos policiais militares culpados na Justiça pelo caso conhecido como Massacre do Carandiru. Em 2 de outubro de 1992, 111 presos foram mortos durante invasão da Polícia Militar (PM) para conter rebelião no Pavilhão 9 da Casa de Detenção em São Paulo.

Segundo o decreto presidencial do indulto deste ano, estarão perdoados agentes de forças de seguranças que foram condenados por crimes ocorridos há mais de 30 anos, mesmo que eles não tenham sido condenados em definitivo na última instância da Justiça. Os PMs condenados pelo Massacre do Carandiru se encaixam nesse perfil. O caso completou três décadas em 2022.”

Ainda de acordo com o decreto, o indulto se aplica “às pessoas que, no momento do fato, integravam os órgãos de segurança pública, na qualidade de agentes públicos”.

O indulto pode ser individual ou coletivo. O primeiro não deixa de ser uma forma de graça com outro nome e poderá ser provocado por petição do condenado, por iniciativa do Ministério Público, do Conselho Penitenciário ou da autoridade administrativa, que será encaminhado, com parecer do Conselho Penitenciário, ao Ministério da Justiça, onde será processado e depois submetido a despacho do Presidente da República. Por sua vez, o indulto coletivo é concedido independentemente de provocação, sem audiência dos órgãos técnicos, pelo Presidente da República, em ocasiões especiais, sendo uma tradição o indulto coletivo, concedido, todos os anos, nas vésperas do Natal.

Trata-se de forma de extinção de punibilidade.

No caso trazido à colação parece ser caso em que se colocaria o policial acima da lei.

Em manifestação sobre a matéria disse a ministra Cármen Lúcia:

“Indulto não é prêmio ao criminoso nem tolerância ao crime. Nem pode ser ato de benemerência ou complacência com o delito, mas perdão ao que, tendo-o praticado e por ele respondido em parte, pode voltar a reconciliar-se com a ordem jurídica posta”.

Em passado recente, a ministra Cármen Lúcia deferiu medida cautelar para suspender os efeitos de dispositivos do Decreto 9.246/2017 que reduziram o tempo de cumprimento da pena para fins de concessão do chamado indulto de Natal. “Indulto não é e nem pode ser instrumento de impunidade”, afirma a ministra na decisão, tomada na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5874,

A ministra explicou a natureza do indulto, adotado no Brasil desde a Constituição de 1891 “em situações específicas, excepcionais e não demolidoras do processo penal” a fim de se permitir a extinção da pena pela superveniência de medida humanitária. A medida, segundo a ministra, é um gesto estatal que beneficia aquele que, tendo cumprido parte de seu débito com a sociedade, obtém uma nova chance de superar seu erro, fortalecendo a crença no direito e no sistema penal democrático. “Indulto não é prêmio ao criminoso nem tolerância ao crime”, ressaltou. “O indulto constitucionalmente previsto é legitimo apenas se estiver em consonância com a finalidade juridicamente estabelecida. Fora daí é arbítrio.

Sustentou a autora da ação (PGR) que “não há dúvida jurídica de que o indulto é ato discricionário e privativo do Presidente da República, disciplinado no artigo 84, inciso XII da Constituição. O Presidente pode concedê-lo segundo critérios de conveniência e de oportunidade, sob a premissa inafastável, no entanto, da finalidade constitucional do instituto, que é a de prevenir o cumprimento de penas corporais desproporcionais e indeterminadas”.
Afirma que, “todavia, discricionariedade não é arbitrariedade, pois esta não tem amparo constitucional, enquanto aquela deve ser usada nos limites da Constituição” e continua sua argumentação apontando que “nestes limites, não é dado ao Presidente da República extinguir penas indiscriminadamente, como se seu poder não tivesse limites: e o limite do seu poder, no caso do indulto, é o livre exercício da função penal pelo Poder Judiciário, encarregado de aplicar a lei ao caso concreto e, assim produzir os efeitos esperados do Direito Penal: punir quem cometeu o crime, fazê-lo reparar o dano, inibir práticas semelhantes pelo condenado e por outrem, reabilitar o infrator perante a sociedade. Estes objetivos do direito penal, alcançáveis por meio da função penal exercida pelo Poder Judiciário, ficarão frustrados se o indulto anular a atuação judicial, descredenciando-o com uma exoneração ampla, em bases que gerem impunidade e atraiam a desconfiança em torno da capacidade do Estado de punir o crime e os criminosos. Os limites constitucionais do indulto derivam direta e precisamente do princípio constitucional da separação e da harmonia dos poderes”.

Destaco do voto do ministro Alexandre de Morais naquele julgamento:

“Assim como nos demais atos administrativos discricionários, como apontado por VEDEL, há a existência de um controle judicial mínimo, que deverá ser sob o ângulo de seus elementos, pois, embora possa haver competência do agente, é preciso, ainda, que os motivos correspondam aos fundamentos fáticos e jurídicos do ato, e o fim perseguido seja legal (GEORGES VEDEL. Droit administratif. Paris: Presses Universitaires de France, 1973. p. 320). O Poder Judiciário deve exercer somente o juízo de verificação de exatidão do exercício de oportunidade perante a constitucionalidade do Decreto de Indulto. A análise da constitucionalidade do Decreto de Indulto deverá, igualmente, verificar a realidade dos fatos e também a coerência lógica da decisão discricionária com os fatos. Se ausente a coerência, o indulto estará viciado por infringência ao ordenamento jurídico constitucional e, mais especificamente, ao princípio da proibição da arbitrariedade dos poderes públicos que impede o extravasamento dos limites razoáveis da discricionariedade, evitando que se converta em causa de decisões desprovidas de justificação fática e, consequentemente, arbitrárias (TOMAS-RAMON FERNÁNDEZ. Arbitrariedad y discrecionalidad. Madri: Civitas, 1991. p. 115).

……

Não é possível transferir a redação do indulto para o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, de maneira que, a cada nova edição pelo Presidente da República, a CORTE possa reanalisar o mérito do decreto e as legítimas opções realizadas. Com o devido respeito às posições em contrário, não compete ao SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL reescrever o decreto de indulto, pois, ou o Presidente da República extrapolou o exercício de sua discricionariedade, e, consequentemente, a norma é inconstitucional; ou, entre as várias opções constitucionalmente lícitas, o Presidente da República escolheu validamente uma delas, e, consequentemente, esta opção válida não poderá ser substituída por uma escolha discricionária do Poder Judiciário, mesmo que possa parecer melhor, mais técnica ou mais justa.

…….

Na presente hipótese, não houve desrespeito ao princípio da razoabilidade, uma vez que não se vislumbra o desrespeito às necessárias proporcionalidade, justiça e adequação entre o expresso mandamento constitucional (artigos 5º, XLIII e 84, XII da Constituição Federal) e o decreto de indulto; e, consequentemente, não há inconstitucionalidade da norma, pois, como salientado por AUGUSTIN GORDILLO (Princípios gerais do direito público. São Paulo: RT, 1977, p. 183), a atuação do Poder Público será sempre legítima, quando apresentar racionalidade, ou ainda, no dizer de ROBERTO DROMI (Derecho administrativo. 6. Ed. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1997, p. 36), a razoabilidade engloba a prudência, a proporção, a indiscriminação à proteção, a proporcionalidade, a causalidade, em suma, a não-arbitrariedade perante o texto constitucional.”

O instrumento pela qual se formaliza o indulto é um ato administrativo emanado do presidente da República.
Discute-se se o Judiciário, diante de um ato administrativo editado de forma discricionária pelo chefe do Executivo, pode adentrar em sua análise e reformá-lo.

O indulto existe desde antes do Estado Democrático de Direito: era concedido por reis, em um contexto de amplos poderes e de imposição de penas mais duras que as de hoje. Apesar disso, foi mantido no decorrer da História e transformado em instituto de política criminal, voltado a evitar superpopulação carcerária. Trata-se de uma “competência política” conferida ao chefe do Executivo legitimado pelo voto.

O indulto é dado em hipóteses abstratas. Não pode ser concreto e individual. A graça é para situações específicas. Mas está em desuso. Qual o problema de você extinguir a punibilidade de pessoas determinadas? Isso se choca com Estado democrático de Direito. A República exige que quem comete crime seja punido. Quando são isentas pessoas específicas, há tensão com dever de punição. Pode haver desvio de finalidade, que é adaptar a medida não para perseguir o interesse público, mas para proteger determinada categoria, seria inválido esse ato da Administração.
Não é poder absoluto. Apesar de ter margem de ação muito ampla, não é poder à margem da Constituição. Um limite central seria violado se fosse só para policiais nesse contexto que o presidente Bolsonaro já várias vezes tem defendido, de excludente de ilicitude. Seria uso indevido do indulto. Indulto genérico a policiais que matem em serviço também me parece inconstitucional. Se for execução, tem que ser punido.
Ainda o indulto é para quem está cumprindo pena. Assim será necessário que o beneficiado já tenha sido condenado com sentença penal com trânsito em julgado.

Ademais, é mister que se lembre que a Constituição Federal, e na sua linha a lei de crimes hediondos, proíbe a concessão de indulto para crimes hediondos.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º inciso XLIII, positivou que não seriam susceptíveis de graça e anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos.

Sabe-se que esse inciso, inexistente nas Constituições anteriores, consiste no desdobramento dos princípios fundamentais do artigo 1º da Constituição, de sorte que ali estão traçados princípios constitucionais impositivos.

Estamos diante de um artigo que procura arrolar os direitos fundamentais da pessoa humana.

Procura-se com a leitura e dicção do artigo 5º, inciso XLIII, evitar ações agressivas, com a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e crimes que são definidos na legislação ordinária como crimes hediondos.

O caso em concreto aqui abordado poderá ser objeto de análise pelo STF por suas próprias razões jurídicas, sendo caso de entender se o Executivo agiu dentro dos limites da proporcionalidade ao determinar o indulto aqui noticiado.

Trago a lição de Willis Santiago Guerra Filho (Ensaios de teoria constitucional. Fortaleza, UFC, Imprensa Universitária, 1989, pág. 75) de feliz síntese:

¨Resumidamente, pode-se dizer que uma medida é adequada, se atinge o fim almejado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e finalmente proporcional em sentido estrito, se as vantagens superarem as desvantagens.”

Os referenciais para a análise da proporcionalidade são a necessidade e adequação. Ambos se reúnem no princípio da proporcionalidade, assim sintetizado por Eugênio Pacelli (Curso de processo penal, São Paulo, Atlas, 2013, pág. 504), consoante vemos:

a) na primeira, desdobrando-se, sobretudo, na proibição de excesso, mas, também, na máxima efetividade dos direitos fundamentais, serve de efetivo controle da validade e do alcance das normas, autorizando o intérprete a recusar a aplicação daquela norma que contiver sanções ou proibições excessivas e desbordantes da necessidade de regulamentação;

b) na segunda, presta-se a permitir um juízo de ponderação na escolha da norma mais adequada em caso de eventual tensão entre elas quando mais de uma norma constitucional se apresentar aplicável ao mesmo fato.

Assim proíbe-se o excesso e busca-se a adequação da medida.

De outra forma, se o decreto presidencial procura proteger casos individuais há claramente uma afronta ao princípio da impessoalidade, sendo caso de desvio de finalidade, situação que leva ao anulamento desse ato.

Repito, na íntegra, a lição de Miguel Seabra Fagundes (O controle dos atos administrativos, 2ª edição, pág. 89 e 90), assim disposta; “A atividade administrativa, sendo condicionada pela lei à obtenção de determinados resultados, não pode a Administração Pública dele se desviar, demandando resultados diversos dos visados pelo legislador. Os atos administrativos devem procurar as consequências que a lei teve em vista quando autorizou a sua prática, sob pena de nulidade.”

Consoante a Revista do Oeste, em 25.12.2022, tem-se:

“O MPSP enviou a representação contra a decisão de Bolsonaro ao Procurador-Geral da República (PGR), Augusto Aras. O documento é assinado por Mário Luiz Sarrubbo, Procurador-Geral de Justiça.

Segundo o ofício, “a concessão do indulto se incompatibiliza com esses dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos promulgada pelo Decreto n. 678, de 06 de novembro de 1992, razão pela qual requer a Vossa Excelência a tomada de providências urgentes em face dos preceitos impugnados por incompatibilidade com o art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, e as normas acima indicadas da Convenção Americana de Direitos Humanos, por ação direta de inconstitucionalidade ou arguição de descumprimento de preceito fundamental“, afirma no ofício.”

Dir-se-á que a Convenção Americana de Direitos Humanos assim disciplina:

Artigo 7 NINGUÉM poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médias ou cientificas.

Trata-se de norma internacional que tem hierarquia superior à lei interna, à luz da Emenda Constitucional nº 45/2004.

Observe-se, então, que o decreto referenciado agride claramente princípios constitucionais, ao personalizar sua área de abrangência e agredir preceitos atinentes à proteção da pessoa humana.

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Mais de direito e arte

Marcelo Alves Dias de Souza*

Já tratei algumas vezes da mistura da arte – e, aqui, falo sobretudo da arte decorativa, pintura, escultura, utensílios decorativos etc. – com o direito. Recordo-me bem dos textos “Decorativas e descritivas” e “Direito no Louvre”, nos quais registrei a “desproporção” da presença do direito nas artes decorativas, em prejuízo destas, comparada com a presença nas artes descritivas, o romance e o teatro, em especial. Tornou-se clássica assertiva de Enrico Ferri (em “Os criminosos na arte e na literatura”, Ricardo Lenz Editor, 2001), passando sobretudo em revista o mundo artístico dos “tipos criminosos”: “é sua maior frequência nas artes descritivas – literatura ou drama – do que nas artes decorativas – pintura e escultura”. A assertiva de Ferri é corroborada por Christos Markogiannakis (em “Scénes de crime au Louvre”, Éditions Le Passage, 2017), que replica: “nas artes narrativas, nove em cada dez obras, drama, romance ou comédia, contêm um ou mais crimes; nas artes visuais, a proporção é inversa: uma em cada dez pinturas – menos ainda nas esculturas – representa um crime, como tema principal ou secundário”.

Concordo com os autores acima citados. A desproporção existe, sim. Mas isso não impede que eu faça uma propaganda em prol do estudo do direito por meio das artes decorativas. E o faço citando mais três livros que são do balacobaco (para usar de uma expressão fora de moda).

O primeiro é “O espelho infiel: uma história humana da arte e do direito” (Nova Fronteira, 2020), de José Roberto de Castro Neves. Talvez vocês já conheçam o autor por “Medida por Medida – O Direito em Shakespeare”, “A Invenção do Direito”, “Como os Advogados Salvaram o Mundo”, entre outros livros. Em “O espelho infiel” consta já na contracapa: “Arte e direito. No imaginário popular, duas esferas que parecem extremamente distantes. De uma se dirá que é lúdica, criativa, sentimental. Da outra, que é séria, inflexível e árida. O espelho infiel, porém, veio para derrubar essa visão. Nestas páginas ricamente ilustradas, o advogado e escritor José Roberto de Castro Neves revela que existe muito mais em comum entre arte e direito do que poderíamos pensar: ambos são expressões da nossa humanidade que, ao longo da História, se aproximaram de maneira instigante, rendendo anedotas e controvérsias memoráveis. Com uma linguagem simples e direta que nos conduz pelas mais diferentes épocas, muitos desses episódios são aqui relatados e acabam por ampliar os horizontes intelectuais e estéticos do leitor, a fim de que conheça melhor a magnanimidade (e também a pequenez!) do espírito humano”. É isso mesmo. Tamojunto!

O segundo é “Semiótica, Direito & Arte: entre teoria da justiça e teoria do direito” (Almedina, 2020), de Eduardo Carlos Bianca Bittar. Originalmente publicado em inglês (também em 2020), é um livro diferente do anterior. É mais acadêmico, especializado e profundo, posso dizer. O livro procura “recobrir um importante campo de investigação dentro da Semiótica do Direito, especialmente este direcionado aos temas da Justiça. E esse exercício se completa através da mais completa conexão entre Direito & Arte”. Fazendo uso das ferramentas da semiótica, o livro “significa” o direito na arte, na pintura, no teatro, na arquitetura, na cultura e por aí vai. E o livro também é “o registro da disciplina intitulada Semiótica, Justiça & Arte, que foi criada em 2020 de forma pioneira no âmbito do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Assim, do ponto de vista local, para a literatura brasileira sobre o tema, o livro tem um papel inovador, e, do ponto de vista global, para a literatura mundial sobre o tema, o livro se soma a uma série de estudos e esforços que vêm se multiplicando no sentido do fortalecimento da Visual Jurisprudence”.

Por fim, cito “Law: a Treasury of Art and Literature” (de 1990, editado por Sara Robbins para a Beaux Arts Edictions). É um livro enorme, daqueles que usamos para decorar mesas. Com texto e muitíssimas imagens. Cerca de duzentas. Belíssimas. Nunca esqueci onde e quando comprei o dito cujo: na Casa dos EUA, no Epcot Center, no Walt Disney World, há muitos anos. Foi uma luta para trazê-lo na mão, com temporários arrependimentos dos meus pais e meu. Mas costumo dizer que ele é o livro mais bonito que possuo. É, em si, uma obra de arte. Maravilha.

Pensando bem, vou dar uma xeretada em “Law: a Treasury of Art and Literature”. Agora que não temos mais diariamente o “jogo bonito” da Copa do Mundo, ando “meio assim sei lá”. Depressão pós-copa antecipada? Bom, quem não tem futebol-arte caça com direito-arte mesmo.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Evie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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A palavra certa

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Sempre digo que o vocabulário dos juristas – ou pretensos juristas, melhor dizendo –, o chatíssimo “juridiquês”, é complicado. São palavras enormes, uso desmedido de expressões, verborragia constante, entre outras coisas. E, claro, fica complicado para os leigos, aqueles sem formação jurídica, entender todo esse palavreado “gongórico”.

Por outro lado, ter um vocabulário próprio, dito técnico, é necessário ao direito. Isso se dá – e deve ser assim – com qualquer ciência. Na medida certa, ele ajuda a evitar desentendimentos. E, por conseguinte, é fundamental para nós, supostos juristas, saber usá-lo, esse vocabulário, corretamente.

A coisa não é fácil para nós, registre-se. Há problemas semânticos graves, é verdade. Mas, em outros casos, o que se dá é a falta de cuidado no uso do termo jurídico correto, seja por mera preguiça em procurar essa palavra certa, seja por carência de uma formação acadêmica sólida.

Vou dar um exemplo que me dói aos ouvidos: o uso do termo “jurisprudência” no lugar de “precedente”. Tipo “achei umas jurisprudências no sentido da nossa tese”. Ou “a parte citou umas jurisprudências para justificar o seu pedido”. Não são “jurisprudências” que foram achadas ou citadas; são “precedentes”.

Vamos aos dicionários.

Primeiramente, o significado do vocábulo precedente, em termos não jurídicos, é fácil de se apreender. Segundo o “Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa” (Objetiva, 2001), “precedente” quer significar algo “que precede, ocorrido previamente, anterior”.

Já em termos jurídicos, o precedente judicial pode ser definido, segundo o “Black’s law dictionary” (West Publishing, 1990), como “um caso sentenciado ou decisão de uma corte considerada como fornecedora de um exemplo ou de autoridade para um caso similar ou idêntico posteriormente surgido ou para uma questão similar de direito”. É verdade que podemos ser um pouco mais sutis, enfatizando a questão da persuasividade ou obrigatoriedade do precedente judicial, como consta em “The Oxford Companion to Law” (Clarendon Press, 1980), que define os precedentes judiciais como “decisões prévias das cortes superiores que são consideradas, para um caso subsequente em que se discute a mesma ou semelhante questão jurídica, como aptas a serem referidas como possuidoras de um princípio que pode ter influência ou mesmo, sob a doutrina do stare decisis, ser decisivo na decisão desse caso. Um precedente, portanto, é uma decisão anterior considerada como fonte do direito no caso posterior”.

Mas, definitivamente, não podemos confundir o significado de precedente judicial em seu sentido estrito com jurisprudência: este vocábulo, como consta do “Vocabulário jurídico – De Plácido e Silva” (Forense, 1990), no seu sentido mais comum entre nós – e sentido preciso –, designa “o conjunto de decisões acerca de um mesmo assunto ou a coleção de decisões de um tribunal”. Em outras palavras, “jurisprudência” é conjunto de decisões e não uma decisão isolada.

Bom, é fundamental atentarmos ao correto uso dos termos “precedente” e “jurisprudência”. Eles não são sinônimos. Nem consigo enxergar uma polissemia em qualquer deles para englobar o sentido do outro termo.

E, de uma forma mais ampla, é fundamental consignar que, se num período mais remoto, não existiu uma maior preocupação dos juristas em se estudar o significado das palavras do vocabulário do direito, isso hoje não é mais cabível. Não podemos ser indiferentes ao problema do significado das palavras. “As palavras têm poder”, posso dizer, aproveitando uma expressão comumente utilizada em outro contexto. E devemos atentar para o caráter técnico e científico dessa abordagem “semântica” dos termos jurídicos, prestigiando aqui a interdisciplinaridade entre direito e linguística/semiótica.

Até porque erros gritantes doem nos ouvidos. Isso é fato.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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Crônica

Diferenças no common law

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

A pedido de amigos, vou voltar a uma temática tratada dia desses, o common law, a conhecida tradição jurídica anglo-americana, desta feita para abordar algumas diferenças entre os direitos dos dois principais países a ela filiados, o Reino Unido e os Estados Unidos da América.

Como sabemos, a formação dos EUA remonta à fundação, pelos ingleses, nos albores do século XVII, de colônias independentes no chamado novo mundo (a primeira, em 1607, foi a Virginia). E, hoje, com a exceção do estado da Luisiana, o direito dos EUA está identificado com os princípios do common law inglês: conceitos semelhantes do direito e de suas funções, divisões similares quanto aos seus ramos, desenvolvimento de institutos jurídicos idênticos (torts, trust etc.) e um papel fundamental para o precedente judicial, entre outros.

Entretanto, no decorrer da história, o direito americano adquiriu características que o fazem diferir do direito inglês. A existência de uma Constituição escrita e rígida, o princípio da supremacia da constituição, o fato de ser uma federação, a descentralização do Poder Judiciário, a existência de alguns códigos, para citar as mais importantes, são singularidades que de fato fazem o direito americano algo diferente do seu modelo inspirador.

Compreende-se isso bem quando se faz uma comparação direta entre alguns aspectos dos dois sistemas jurídicos. Victoria Sesma, com o seu “El precedente en el common law” (Civitas, 1995), nos poupa parte desse trabalho: “Em primeiro lugar, a fundamentação do direito do common law (isto é, que o direito está baseado na autoridade não escrita do costume) é rejeitada nos EUA, onde está claro que a Constituição é a fonte fundamental e superior do sistema jurídico dos EUA. (…). Além disso, a Constituição americana prevalece sobre qualquer lei, enquanto que na Inglaterra o poder do Parlamento é ilimitado. Isto tem levado a que (devido à frequente necessidade de interpretação de preceitos constitucionais) os juízes dos EUA tenham enfrentado muito mais que os ingleses problemas de política pública (public policy), em particular no conflito entre direitos inalienáveis (vested rights) e política do estado social (social state policy). (…). Em segundo lugar, os EUA (diferentemente da Inglaterra) têm uma estrutura federal em que há dois sistemas de tribunais: estaduais e federais. Aqui não somente existem jurisdições próprias em cada estado, como também há uma multiplicidade de jurisdições federais ao longo de todo o território dos EUA e não somente na capital federal. A dispersão da organização judicial nos EUA acarreta problemas que não se apresentam na Inglaterra, e se tende a adotar atitudes mais flexíveis a respeito da autoridade das decisões judiciais. Em terceiro lugar, a necessidade de uma sistematização do direito se sentiu antes e mais urgente nos EUA que na Inglaterra, devido à quantidade de material jurídico, que é tanta, que se tornou praticamente inviável administrá-lo”.

Por fim, no que tange aos precedentes judiciais, área de minha expertise, o direito americano possui uma visão bem peculiar. Se bem que a função do precedente seja basicamente a mesma, os conceitos dos institutos sejam os mesmos, ele é mais flexível, mais pragmático e menos conservador que o direito inglês. Como regra, os precedentes devem ser seguidos porque, no interesse da sociedade, o direito deve ser estável e uniforme. Mas, como consta da decisão da Supreme Court em Hertz v. Woodman 218 US 205 [1910], a regra do stare decisis não é inflexível. Mesmo em se tratando de um precedente a priori obrigatório, os tribunais americanos não se consideram obrigados a segui-lo se ele não prima pela correção e razoabilidade; ademais, a validade de um precedente está condicionada à situação política, econômica e social presente.

As diferenças são justificáveis. Primeiramente, o número de precedentes nos EUA é colossal. Um sistema de Justiça Federal, ao lado de dezenas de sistemas estaduais, faz com que se tenham comumente precedentes contraditórios. E isso dá aos juízes a possibilidade de escolha do precedente mais adequado. Em segundo lugar, a rápida expansão americana implica mudanças políticas e sociais e isso sugere, comparando-se com a conservadora Inglaterra, que a estrita adoção da doutrina do stare decisis seja mais problemática. Por derradeiro, as questões constitucionais têm um papel crucial nos EUA. A interpretação do direito constitucional – eminentemente político – é caracterizada pela flexibilidade. E essa flexibilidade, na aplicação dos precedentes judiciais constitucionais, contamina, em maior ou menor grau, as outras áreas do direito. Fato!

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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