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Crônica

O crítico

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Karl Popper (1902-1994) é provavelmente o maior vulto da filosofia da ciência e um dos grandes nomes da filosofia dita liberal. Nascido em Viena, à época uma das capitais do Império Austro-Húngaro, sua família era culta e politizada. Sofreu deveras com a debacle do seu país na Primeira Grande Guerra. Na Universidade de Viena, envolveu-se com o marxismo e o Partido Comunista austríaco. Decepcionado com a morte de jovens companheiros, refutou e rompeu com essa ideologia. Fez-se professor. Doutorou-se em filosofia em 1928. Com o nazismo, em 1937, deixou a Áustria rumo à Nova Zelândia. Passada a Segunda Grande Guerra, em 1946, foi viver no Reino Unido, para ensinar na London School of Economics. Como filósofo da ciência, sua obra mais importante talvez seja “A lógica da pesquisa científica” (1934), em que expõe o seu “princípio da falseabilidade”. E junto a Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e Milton Friedman, entre outros, Popper foi um dos grandes defensores do liberalismo clássico.

É de Popper uma das mais conhecidas e belas assertivas sobre a democracia, a liberdade e a tolerância. Basicamente, em seu livro “A sociedade aberta e seus inimigos” (1945), no que ficou conhecido como o paradoxo da tolerância, ele defendeu que, em ultima ratio, a intolerância não deve ser tolerada, uma vez que, se a tolerância permitir que a intolerância triunfe numa sociedade que não consegue se defender contra o ataque dos intolerantes, a própria tolerância seria destruída. Uma filosofia intolerante – que pregue, por exemplo, a incitação ao assassinato de governantes, o racismo, a eugenia ou a ruptura com o Estado Democrático de Direito – deve ser considerada ilegal e combatida até criminalmente. Reflitamos…

Mas é de outra sacada política e especialmente de outro livro de Popper, a sua “Autobiografia intelectual” (em publicação das Editoras Cultrix e da Universidade de São Paulo, 1977, que ando lendo), que gostaria de falar. Uma autobiografia que focaliza sobretudo as ideias do autor. “Um estudo pessoal da evolução das ideias popperianas e do ambiente intelectual onde se desenvolveram”, um ambiente onde “desfilam vultos como Carnap, Einstein, Godel, Polanyi, Russel, Schrödinger, Tarski, Wittgenstein, Woodger e outros de igual eminência”, com os quais Popper muito debateu, aprendeu e inspirou.

Na sua “Autobiografia”, Popper anota que foi criado em ambiente indiscutivelmente livresco: “Meu pai (…) tinha uma grande biblioteca e havia em casa livros por toda parte. (…) Assim, os livros fizeram parte de minha vida muito antes que eu pudesse lê-los”. E, para o grande filósofo da ciência: “Aprender a ler e, em menor grau, a escrever são, naturalmente, os acontecimentos mais significativos no desenvolvimento intelectual de uma pessoa”.

Como que antecipando a lição da menina filósofa Mafalda, para quem “viver sem ler é perigoso; te obriga a crer no que te dizem” – embora ele atribua isso não só à leitura, já que outros fatores, em especial a Primeira Grande Guerra, os anos de conflito e suas consequências, também entrariam na conta –, o fato é que Popper, desde jovem, tornou-se “um crítico das opiniões correntes, especialmente das políticas”. Agradeçamos…

Na Europa de então, havia a utopia do comunismo/marxismo, “um credo que promete a concretização de um mundo melhor. Diz-se basear-se em conhecimento: conhecimento das leis do desenvolvimento histórico”. Mas a própria história, ao submeter o marxismo à prova, anota Popper, refutou-o como pseudociência. Doutra banda, “por aquela época, poucas pessoas sabiam o que a guerra significava. Corria por todo o país um ensurdecedor brado de patriotismo, pelo qual até mesmo alguns membros do nosso grupo, anteriormente alheio às provocações de guerra, foram envolvidos”. E não muitos anos depois veio o degenerado cabo Hitler.

O problema estava – como de resto quase sempre está – nos extremos. O anticomunismo da época de Popper – assim como o atual anticomunismo tupiniquim, de baixíssimo nível e com complexo de vira-lata – se mostrava bem parecido, nas suas práticas e simbologias, com os movimentos autoritários que Popper denunciou como fascistas. E estes, sabemos, eram ontem – e são hoje – piores do que tudo!

Parodiando o criticado Marx, é de se indagar: a história agora se repete como tragédia ou como farsa? Leiamos e pensemos. Sejamos críticos…

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

 

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Artigo

Houve crime contra a ordem democrática?

 Por Rogério Tadeu Romano*

Divulgado pelo Supremo Tribunal Federal, o vídeo de uma reunião de julho de 2022, com a presença do então presidente da República e ministros de Estado, gerou forte debate. O que ali se presencia é a execução da tentativa de um golpe de Estado ou seriam “apenas” atos preparatórios desse crime? Como indagou Nicolau da Rocha Cavalcanti (Bolsonaro cometeu crime de tentar um golpe?, in Estadão, em 14.2.24).

Ainda expôs, naquele artigo, Nicolau da Rocha Cavalcanti, que a tipificação do “tentar depor” foi precisamente o modo encontrado pelo legislador de assegurar que o Estado tenha meios de defender a democracia antes do golpe.

Ali disse Nicolau da Rocha Cavalcanti, naquela manifestação:

“Afirmar que todas as ações prévias ao golpe de Estado propriamente dito (a deposição do governo) seriam meros atos preparatórios é minar a eficácia protetiva do art. 359M, além de representar um olhar simplista sobre o que é um golpe – sempre um processo complexo de ações, e não um único ato numa hora determinada. Tem-se aqui mais um motivo para a não divulgação seletiva de elementos probatórios: é preciso compreender o todo.

O legislador foi prudente. Para não instituir um tipo penal muito amplo, violando o princípio da legalidade, determinou que, para haver crime, a tentativa de deposição deve se dar “por meio de violência ou grave ameaça”. Entendo que um presidente da República, reunido com seus ministros de Estado, atuando para que o resultado da eleição não fosse respeitado constitui, sim, uma grave ameaça. Isso é muito diferente do que alguém escrever, num grupo de WhatsApp, “não podemos deixar o Lula assumir”.

O Código Penal prevê não apenas os crimes e as respectivas penas. Na sua Parte Geral, estabelece como esses crimes devem ser aplicados – e essa aplicação normativa é o que distingue, entre outras coisas, a sentença judicial da mera opinião. Por hipótese, em muitos casos do 8 de Janeiro talvez não haja o preenchimento da tipicidade subjetiva, em especial acerca da compreensão de “governo legitimamente constituído”. Como se sabe, “o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo” (art. 20 do Código Penal). De toda forma, a situação é outra, por exemplo, quando se refere a alguém que, para assumir o cargo, jurou cumprir a Constituição e, mais tarde, sancionou a própria Lei n.º 14.197/2021.”

A tipificação do ‘tentar depor’ foi o modo de assegurar que o Estado tenha meios de defender a democracia antes do golpe. Para o caso, houve, em verdade, uma tentativa de autogolpe.

Um autogolpe é uma forma de golpe de Estado que ocorre quando o líder de um país, que chegou ao poder através de meios legais, dissolve ou torna impotente o poder legislativo nacional e assume poderes extraordinários não concedidos em circunstâncias normais.

Outras medidas tomadas podem incluir a anulação da constituição da nação e a suspensão de tribunais civis. Na maioria dos casos ao chefe de Estado é concedido poderes ditatoriais.

Lembrem-se que Hitler assumiu o poder, em 1933, de forma democrática, pelo voto popular e depois se transformou num ditador na Alemanha que tinha um passado cultural invejável.

O Estado Totalitário traz uma falsa consciência de direito. Um universo antitético.

O que há é a necessidade premente de manter, num país que tem uma constituição-cidadã de índole democrática como a do Brasil, o Estado Democrático de Direito.

Comentando o mesmo princípio da Constituição da República portuguesa, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira oferecem aos estudiosos, uma resposta: “Esse conceito – que é seguramente um dos conceitos-chave da CRP – é bastante complexo, e as suas duas componentes – ou seja, a componente do Estado de direito e a componente do Estado democrático – não podem ser separadas uma da outra. O Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito. O Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é democrático”.

Observemos os tipos penais inseridos nos artigos 359 – L e 359 – M.

Sobre o tema disse Fernando Augusto Fernandes (O terrorismo por omissão e o artigo 359 – L do Código Penal, in Consultor Jurídico, em 29.12.2002):

“O crime mais adequado, contudo, é o do artigo 359-L, incluído no Código Penal pela Lei nº 14.197/21, que descreve a conduta de “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, com pena é de 4 a 8 anos, “além da pena correspondente à violência”. Apesar do artigo sobre violência política (artigo 359-P, do CP) ter também deixado de fora o fim político da conduta delituosa e optado por ” razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional “, o crime de abolição violenta do Estado de Direito já traz a tentativa no próprio crime, sem limitação da atuação que naturalmente é política.

Trata-se de crime formal, que exige o dolo como elemento do tipo. A ação pode vir por violência ou ameaça, que há de ser séria, objetivando, inclusive, restringir o exercício de um dos poderes da República, para o caso o Judiciário.

A ameaça deve ser realizável, verossímil, não fantástica ou impossível. O mal prometido, segundo forte corrente, entende que o mal deve ser futuro, mas até iminente, e não atual. Só a ameaça séria e idônea configura esse crime.

O crime é de perigo presumido.

Fatalmente, tendo a Lei de Defesa do Estado Democrático substituído a Lei de Segurança Nacional, não pode ser esquecido que delitos perpetrados com motivação política — e, portanto, crimes políticos — devem ser julgados pela Justiça Federal, conforme disposição constitucional quanto à competência dos crimes federais. Valendo ressaltar que o trâmite reservado a tais procedimentos é de denúncia em primeira instância a juízo federal e, uma vez sentenciado, eventual inconformismo deve ser levado diretamente ao Supremo Tribunal Federal via recurso ordinário constitucional, conforme versa o artigo 102, inciso II, alínea b, da Constituição Federal.”

Outro crime, por sua vez, ainda contra a democracia foi o crime de tentativa de golpe de Estado.

Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021) (Vigência)

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência. (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021)

O delito de tentativa golpe de Estado está localizado no Capítulo II da nova lei, chamado de dos Crimes contra as Instituições Democráticas. E o bem jurídico penal é o próprio Estado Democrático de Direito, o qual consta no preâmbulo da CF e nos artigos 1, caput, sendo o modelo, a forma institucional do Brasil.

Ademais, as normas constitucionais definem o sistema republicano, democrático e representativo no qual o voto é o meio pelo qual se ascende ao cargo político-eleitoral, não se admitindo a tomada violenta do poder.

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, caracterizando o crime comum. O sujeito passivo é a sociedade e o Estado.

Quanto à tipicidade objetiva, trata-se de delito de forma livre de mera conduta. Incrimina-se a conduta de tentar depor governo legitimamente constituído, o que significa governo eleito democraticamente, conforme as regras constitucionais, e devidamente diplomado.

O delito somente ocorre se a tentativa de deposição utilizar violência ou grave ameaça, não se podendo confundir este delito com a renúncia ou impeachment daquele que foi eleito ou mesmo com cassação parcial ou total da chapa.

Nota-se que a violência deve ser empregada na tentativa de deposição para que o delito se caracterize.

A grave ameaça deve ser à pessoa (havendo interpretação de que pode ser contra as instituições), o que pode ocorrer por palavra, por escrito, gestos ou outro meio simbólico de causar mal grave e injusto.

O governo constituído que pode sofrer o golpe de Estado é municipal, estadual, distrital ou federal.

Consoante tipicidade subjetiva, incrimina-se a prática dolosa de usar violência ou grave ameaça para tentar depor um governo legitimamente constituído.

Este crime não admite forma tentada e se consuma com a tentativa de depor o governo legítimo mesmo que o governo se mantenha.

A pena, 4 a 12 anos e mais as penas das violências cometidas, como lesões corporais e outras práticas contra a pessoa, comporta regime fechado a depender o caso concreto. Admite-se prisão preventiva se houver requisitos e fundamentos do artigo 312 (CPP) já que a hipótese no artigo 313, inciso I do CPP está presente. Não é cabível prisão temporária.

Não se admite a incidência de instrumentos de barganha como transação penal, suspensão condicional do processo ou acordo de não percepção penal. E a ação penal pública incondicionada, tramitando pelo rito ordinário.

O caso é gravíssimo.

Trata-se de um crime contra a democracia.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.