Por Alan Lacerda*
As comparações entre Brasil e Estados Unidos são mais longevas do que se pensa. De fato, precedem o Grito do Ipiranga. Em 1817, o presidente James Monroe enviou Henry Brackenridge em uma missão especial à América do Sul, quando o Brasil ainda fazia parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Impressionado com a vastidão dos recursos à disposição do país prestes a se tornar independente, o emissário descreveu em 1819 a sensação de orgulho que tinha como americano diante do glorioso destino do império sul-americano. Ao mesmo tempo, concluiu que não seria visionário predizer que no futuro o Brasil seria um rival dos Estados Unidos.
A previsão não se concretizou. Por maior e mais populoso que seja o país lusófono, os Estados Unidos conformam o “império” que de fato enriqueceu e estendeu sua influência sobre o globo terrestre. O Brasil não tem como ser rival dos EUA, pelo menos no futuro previsível, em termos geopolíticos e econômicos. Todavia, em uma área podemos falar de superioridade real sobre os americanos: a das instituições políticas como barreiras ao autoritarismo. Ela não envolve, claro, a rivalidade geopolítica temida por Brackenridge, mas a simples constatação de que o Brasil opera melhor no freio a líderes autoritários.
Os EUA optaram eleitoralmente neste mês pelo retorno ao poder de um líder autoritário cujo abuso de poder é notório, culminando no seu primeiro mandato em um conjunto de tentativas de subverter a eleição de 2020. Tais tentativas podem e vêm sendo descritas em parte da literatura especializada como um autogolpe estendido no tempo, felizmente malsucedido. Derrotado no referido pleito, Donald Trump não reconheceu o resultado e ainda incitou a lamentável insurreição de 6 de janeiro de 2021. Mesmo após dois impeachments, diversos indiciamentos e uma condenação, pôde concorrer regularmente na eleição de 2024 e vencê-la.
No Brasil, um líder menos competente, mas não menos autoritário, também foi derrotado em sua tentativa de reeleger-se. O abuso de poder foi igualmente detectado após sua saída do cargo, consistindo na disseminação de notícias falsas sobre as urnas eletrônicas, planos mal disfarçados de autogolpe, a busca canhestra de apoio militar para sua execução e o incitamento a acampamentos golpistas. Jair Bolsonaro já havia sido declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral. No mesmo mês em que se deu o triunfo de seu inspirador em Washington, um indiciamento da Polícia Federal o atinge agora frontalmente. A acusação, por enquanto uma alegação de investigadores, caminha para se tornar uma denúncia formal robusta do Ministério Público, envolvendo vários crimes. Não sabemos se Jair Bolsonaro ganharia a eleição de 2026, para a qual não está apto a concorrer – e não precisamos saber. Certamente a direita nacional possui outros nomes viáveis, mesmo que ao final seja alguém com o apoio do ex-presidente. O Partido Republicano, ao qual Trump é filiado, também não carece de nomes alternativos comprometidos com o jogo democrático.
Alguns poderão dizer que nosso sistema institucional é mais paternalista com o eleitor do que o americano. O ponto é pertinente. No tocante a líderes autoritários, no entanto, que não acreditam nas regras do jogo democrático e as desrespeitam quando têm uma chance, o paternalismo institucional se justifica. A vitória desses líderes afeta negativamente a natureza do regime democrático-liberal e provoca dúvidas sobre a validade da própria alternância eleitoral. Os Estados Unidos passarão, de novo, por quatro anos de erosão autoritária; o Brasil reduziu muito a probabilidade de esse cenário vir a ocorrer após a próxima eleição presidencial. No fim, Brackenridge poderia se orgulhar disso como americano, no sentido amplo deste termo.
*É cientista político e professor da UFRN.
Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.