Por Jaime Spitzcovsky*
Em 1991, em meio ao colapso soviético e após o fim da bipolaridade da Guerra Fria, entre Washington e Moscou, o jornalista britânico Peregrine Worsthorne qualificou os Estados Unidos de hiperpotência, cunhando o termo para enfatizar a robusta hegemonia global nos primórdios da globalização.
Embora continuem detentores da maior economia e da mais avassaladora máquina militar do planeta, os EUA engoliram, dias atrás, declaração de seu ex-presidente George W. Bush, que descreveu o ataque de trumpistas ao Congresso como ingrediente de uma “República de bananas”.
A trajetória de 30 anos dos rótulos, de hiperpotência a república de bananas, ilustra o declínio da capacidade americana de exercer sua hegemonia, do ápice nas fases iniciais da globalização ao emagrecimento atual, resultado de diversos fatores, entre os quais o nacionalismo e o isolacionismo da onda antiglobalização capitaneada por Donald Trump.
A queda do Muro de Berlim, em 1989, e a desintegração da URSS, dois anos depois, desmontaram a Guerra Fria e construíram o cenário unipolar. A vantagem econômica, militar e tecnológica dos EUA se escancarou. Vitoriosa no embate com o Kremlin, a Casa Branca mergulhou em euforia e empáfia, reveladas, por exemplo, em gafes diplomáticas.
Em julho de 1991, cinco meses antes do perecimento soviético, o presidente George Bush desembarcou em Moscou para encontrar Mikhail Gorbatchov. E pontificou, na chegada: “Nos EUA, todos sabem ao menos duas palavras russas, ‘glasnost’ e ‘perestroika’. E, aqui, todos apreciam a palavra inglesa ‘democracy’”.
O mandatário poderia lembrar a origem grega da palavra democracia. Preferiu, no entanto, descrevê-la a partir de uma visão provinciana, associando-a ao léxico inglês.
Naquele período de colossais mudanças históricas, veio também, em 1991, a Guerra do Golfo, quando tropas americanas libertaram o Kuwait da ocupação iraquiana arquitetada pelo ditador Saddam Hussein. A superioridade bélica americana foi transmitida pela CNN, num casamento, à época inédito, da cobertura jornalística ao vivo com a ação militar.
O triunfalismo de Washington recebeu verniz intelectual com o lançamento, em 1992, de um livro de Francis Fukuyama, voltado a proclamar o “fim da história”. Segundo o escritor americano, o resultado da Guerra Fria evidenciava a primazia do sistema político ocidental e liberal, simbolizado pelos EUA.
A avalanche hegemônica se intensificou nos dois mandatos de Bill Clinton, inaugurados em 1993 e marcados por um dinamismo econômico bastante impulsionado pela expansão da internet.
Impactado pela preponderância de Washington, o chanceler francês Hubert Védrine, em 1999, disseminou nos meios diplomáticos a descrição dos EUA como “hiperpotência”. O ministro qualificou o termo “superpotência” como característica da finada Guerra Fria e aplicada sobretudo ao aspecto bélico, enquanto a supremacia americana passou a ser exercida “na economia, na moeda, na tecnologia, nos domínios militares, assim como nos modos de vida, no idioma e nos produtos culturais de massa”.
Porém, em 2008, a crise financeira golpeou a predominância americana. A China, em meteórica ascensão, passou a diminuir a vantagem dos EUA. O “America First” de Trump levou Washington a bater em retirada de diversos contextos internacionais e a oferecer a Pequim mais espaços para ocupar.
E a tentativa troglodita de alterar o resultado da eleição presidencial sabotou também, de forma impiedosa, o poder da hegemonia americana.
*É jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.
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