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Crônica

O dilema de Antígona

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Sófocles (497-406 a.C.) compõe – ao lado de Ésquilo e Eurípedes – a tríade dos famosos dramaturgos gregos, cujas tragédias (no sentido de gênero teatral/dramático, deixo claro), pelo menos parte delas, chegaram até nós. “Antígona” (441 a.C.) é, provavelmente, a sua peça mais famosa. Para os estudiosos do direito, ela possui aspectos interessantíssimos.

Eis o contexto e parte da trama de “Antígona” (buscando não fazer spoiler, claro): a coisa se passa em Tebas, então em guerra com Argos. Antígona, a personagem-título, é filha da relação incestuosa entre Édipo e Jocasta, assim como o são seus irmãos Etéocles e Polinices, mortos na guerra. Creonte, então o rei de Tebas, proíbe o enterro de Polinices, por considerá-lo um traidor. A isso, Antígona opõe a lei divina ou natural de que todo homem merece sepultamento. A que lei se deve obedecer? Antígona viola a lei positiva, determinada pelo rei de Tebas, e dá exéquias ao irmão Polinices. Por isso, é condenada à morte “enterrada” viva em uma caverna/túmulo. A partir daí, mais mil tragédias recaem sobre todos. Afinal, como dito no meu pequenino exemplar de “Antígona” (Editora Paz e Terra, 1996), com tradução de Millôr Fernandes, “um erro traz um erro. Desafiado o destino, depois tudo é destino”.

A tragédia grega – e a força metafórica que ela carrega em si – é palco para encenação das mais variadas contradições e dilemas humanos: sobre a nossa própria natureza, sobre o amor e a amizade, sobre a religião e a moral, sobre a política e o poder. E, no caso de “Antígona”, mais especificamente, é cenário para se debater uma milenar dicotomia/dilema do direito, entre a “lei positiva”, representada pelos editos do rei Creonte, e a “lei natural”, defendida pela trágica heroína da trama. Uma dicotomia entre o jusnaturalismo e a face mais visível do positivismo, sobre onde repousa a legitimidade do direito.

Na verdade, a concepção de direito natural é antiquíssima e, através dos tempos, é representada, entre outros, por pensadores como Aristóteles, Cícero, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Hugo Grotius, John Locke e Rousseau; recentemente, no século XX, podem ser lembrados os nomes de Del Vecchio, Lon Fuller, Ronald Dworkin e John Finnis. Ela quer significar, em linhas gerais e respeitadas as muitas variantes, a existência de um direito fundado na razão ou no mais íntimo da natureza humana, na qualidade de ser individual ou coletivo, ou mesmo na nossa relação com Deus, que preexiste ao direito que é produzido pelos homens ou pelo Estado e que deve ser sempre respeitado. Assim como a maioria das escolas filosóficas, o jusnaturalismo tem seguidores que vão desde ardorosos apóstolos, como São Tomás de Aquino, que desenvolveu uma verdadeira tipologia de direitos baseada na relação entre os seres humanos e o criador, a moderados defensores, como Leon Fuller, que apenas afirma haver princípios preexistentes ao direito positivo e que devem ser considerados em qualquer sistema jurídico.

Já o positivismo jurídico aqui deve ser entendido como uma contraposição à ideia de direito natural. O direito é positivo no sentido de que é criação do homem. Algo como “o comando do soberano apoiado por uma sanção”, como certa vez definiu John Austin. E se os partidários do jusnaturalismo se ocupam do fundamento e da legitimação do direito positivo, baseando sua validade no respeito a princípios e valores absolutos, aos positivistas interessa tão só a averiguação dos pressupostos lógico-formais de sua vigência. Os ideais positivistas, seguindo a lição de H. L. A. Hart, podem ser assim sintetizados: a) o direito identifica-se com mandatos; b) não há, necessariamente, um nexo entre as esferas da moral e do direito; c) a análise do direito deve ser isolada das reflexões de ordem sociológica, ética, econômica e teleológica; d) o caráter lógico do sistema jurídico faz com que as decisões judiciais possam ser alcançadas independentemente de apoio em outros valores como, por exemplo, éticos ou políticos; e) os juízos morais não se assemelham aos juízos a respeito de fatos.

E como esse dilema é enfrentado poeticamente em “Antígona”? Vejamos alguns trechos da peça, claro. Mas apenas na nossa próxima conversa… Paciência. Isso não é uma tragédia.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Crônica

Do velho professor

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Desculpem o trocadilho do título, mas não resisti ao escrever sobre Giorgio Del Vecchio (1878-1970). Ele é um velho conhecido desde o tempo do bacharelado. E foi também de um livro dele, as suas famosas “Lições de filosofia do direito” (Arménio Amado Editor, 1979), que colhi uma mui antiga afirmação de Kant (1724-1804) que não canso de repetir: “Ainda procuram os juristas uma definição do seu conceito de Direito”. Mesmo passados tantos anos, ao invés de ficar antiquada, a assertiva mantém o seu valor.

Giorgio Del Vecchio nasceu em Bolonha, a cidade-mãe das nossas universidades (ao menos é o convencionalmente aceito no Ocidente). Crescendo na vida e após estudos na Alemanha, ele foi dando aulas nas universidades de Ferrara, Sassari, Messina, Bolonha e, finalmente, na Università degli Studi di Roma, La Sapienza, de 1920 a 1953. Foi reitor dessa instituição de 1925 a 1927. Aderiu inicialmente ao fascismo (ninguém é perfeito), mas logo se afastou. Caso curioso, Del Vecchio perdeu sua cátedra duas vezes por razões opostas. Em 1938, por ordem dos fascistas, porque era judeu; em 1944, por imposição dos antifascistas, acusado de simpatizar com o fascismo de outrora. Paciência. Sua primeira obra foi “O senso jurídico” (1902). Por uma questão de gosto, recomendo aqui “Lições de filosofia do direito” (1930) e “História da filosofia do direito” (1950). Ele é considerado um neokantiano. Influenciou muita gente, a exemplo de Norberto Bobbio (1909-2004). Del Vecchio faleceu, já nonagenário, na litorânea Genova.

Cabral de Moncada (1888-1974) – português, mas outro gigante da história da filosofia do direito –, em seu prefácio às “Lições de filosofia do direito” (edição acima referida), afirma: “A construção das ideias de Del Vecchio nasceu em 1902, depois de largos estudos na Alemanha, com o seu primeiro trabalho, intitulado Il sentimento giuridico. Aí encontramos em germe todo o seu ulterior sistema de ideias filosóficas, como este veio a desenvolver-se. Nasceu tal sistema sob o signo do Neokantismo, então em plena ascensão. A influência de Marburgo e as afinidades com o pensamento de Stammler são nele inegáveis. Tal qual este, Del Vecchio atribui também à Filosofia do Direito, como objeto próprio das suas investigações, estes dois temas capitais: a determinação do conceito de direito, e a determinação do ideal jurídico. Que é direito? E como dever ser o direito? Eis aí também as duas preocupações máximas iniciais do filósofo italiano”.

Mas o que eu quero aqui ressaltar é outro aspecto da vida/obra de Del Vecchio. Para mim, ele foi sobretudo um professor, pela carreira e pelo didatismo dos seus escritos. Na sua empreitada para estabelecer um conceito de direito (uma aventura de viés positivista), de estudar os seus fenômenos criticamente e, por fim, de estabelecer como o direito “deve ser” (e aqui aproximando direito e justiça), ele foi um educador à moda antiga. Escrevendo bem, sistematicamente e em forma de síntese. Sem fronteiras que limitassem suas lições ao seu país de nascença, a bela Itália. Embora não abrisse mão de pintar “a própria aldeia”, à moda de Tolstói (1828-1910), Del Vecchio foi didaticamente universal, com suas obras recomendadas nas universidades mundo afora.

Peguemos o caso das “Lições”. O livro é originalmente de 1930. Foi sucessivamente reeditado na Itália. Foi traduzido para o espanhol, francês, alemão, turco, japonês e por aí vai. E para o nosso português, claro. Recebeu prêmios e aplausos. Mas, sobretudo, nas palavras do seu tradutor António José Brandão: “o êxito destas Lições deve-se ao facto de nelas o autor ter sabido, com arte consumada, tornar a Filosofia do Direito acessível a todos os juristas, mesmo àqueles destituídos de formação especializada. Todas as questões que ao jurista como tal interessam foram pelo Professor Del Vecchio filosoficamente enfocadas e tratadas”.

De fato, trata-se de um livro interessantíssimo. Quiçá dois livros em um só. Uma primeira parte/livro tratando da história da filosofia do direito, para mim a mais interessante. E uma “Parte sistemática”, que mais se aproxima, pelo caráter didático, a uma introdução ao estudo do direito.

Bom, eu vou xeretar a parte da história da filosofia. Partindo da aldeia do autor: os capítulos sobre a filosofia jurídica na Itália. Tem bastante coisa sobre os escritores “guibelinos”, sobre Maquiavel (1469-1527) e Vico (1678-1744) e por aí vai. E interessou-me sobretudo o capítulo com o título “Resumo da moderna Filosofia do Direito na Itália”. Moderna ao tempo do velho Giorgio, claro. Não acredito que ele já tratasse de Bobbio, que será o tema da nossa próxima conversa. O velho era professor; e não, vidente.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.