Por Gabriel Manzano
Estadão
A polarização política, implantada com o “nós ou eles” do PT e reafirmada, no extremo oposto, pelo bolsonarismo, significou o adeus à moderação e ao consenso na política brasileira e afastou do debate público largos setores de classe média. A isso se juntou “uma crise de lideranças que levou a uma perda de conteúdo da democracia liberal”.
A advertência é de um dos mais experientes analistas da cena brasileira dos últimos 40 anos, José Álvaro Moisés. De um lado, Moisés aponta a radicalização no debate sobre segurança e corrupção. De outro, uma perda de conteúdo dos partidos do centro, em especial PSDB e MDB. E deixa, nesta entrevista a Gabriel Manzano, uma ideia para se tirar a sociedade do impasse: a formação “de uma frente democrática, envolvendo as diferentes forças independentemente de elas estarem um pouco à esquerda, ou à direita. O momento está exigindo isso.”
À parte tarefas imediatas dessa frente, como aprovar o voto distrital misto e redefinir os limites que a sociedade aceita para financiar campanhas, “temos de deixar claro que defender a democracia é mais importante do que atacar o outro lado”. É preciso, conclui, “de novo impor a moderação como marca do debate social e político”. A seguir, os principais trechos da conversa.
O Brasil vive, há tempos, uma polarização alimentada pelo “nós ou eles” de Lula e depois pela “nova política” de Bolsonaro, e no meio uma imensa classe média órfã de representação nesse debate. Como analisa isso?
O que temos é uma crise de liderança política e econômica desde 2013. Ali ficou clara a rejeição de parte importante da classe média em relação ao mundo político. Em 2018 a classe média identificou o PT como responsável pela sua perda de renda com a recessão e votou contra ele. Acabou aceitando os termos da polarização. Não estou dizendo que não tivessem razão ao criticar, especialmente na questão da corrupção. Mas, sem dúvida, isso afastou do diálogo político a moderação, levou a classe média a conviver com uma posição mais extrema.
As recentes pesquisas apontam uma queda no prestígio do atual governo. Isso significaria que o atual cenário pode ser mudado?
Ele está começando a mudar. É visível a decepção com o governo, que não está entregando o que prometeu. A classe média começa a perceber e vai para uma posição mais crítica, já detectada nessas pesquisas. Mas ainda faltam, a meu juízo, novas lideranças que sejam capazes de aglutinar esses segmentos insatisfeitos. O fato é que temos, ao lado da crise econômica, uma crise dos partidos políticos, especialmente os de centro, centro-esquerda e centro-direita. Refiro-me especificamente ao PSDB, ao MDB, que perderam seu conteúdo programático e não foram capazes, desde então, de renovar as lideranças.
O que poderiam ter feito e não fizeram?
Se você olhar em relação aos protestos de 2013, ninguém, nenhuma liderança, mesmo, disse uma única palavra de empatia, de identificação com a rejeição que aqueles segmentos afirmaram nas ruas, em relação ao modo de funcionamento da política. Eles se afastaram.
O que seria essa empatia?
Os atos de 2013 tornaram visível a rejeição de um segmento muito importante da sociedade quanto ao modo de funcionamento da política. O que estava em questão era o esvaziamento dos partidos, a desconexão entre representados e representantes. E há também um funcionamento ruim das instituições, com resultado negativo nas políticas públicas. Essa rejeição apareceu com clareza em inúmeras pesquisas. Inclusive nas que eu conduzi na USP que apontaram altos índices de desconfiança com relação a partidos, Congresso, Judiciário. Veja o papel das lideranças na campanha presidencial. Alckmin, Meirelles, Ciro Gomes, Marina, nenhum desses líderes foi capaz de responder àquela crise.
Isso apareceu também nos níveis de rejeição aos candidatos nas urnas em 2018.
Exato, um alto nível de rejeição. Faltou aos líderes se mostrarem solidários com o sofrimento de uma parte importante da sociedade brasileira. Gente que, ao perder renda, perder emprego, ficou numa situação crítica. Não se estabeleceu nenhuma conexão.
Ficou um espaço vazio.
Sim, um espaço que foi ocupado por Bolsonaro e por uma posição de ultradireita que radicalizou o debate sobre segurança e sobre corrupção. Cabe perguntar: por que outros setores, democráticos, não tomaram uma posição clara em relação à corrupção? E os partidos? Não poderiam fazer uma autocrítica, admitir que cometeram erros, e que assumiriam o compromisso de se corrigir?
Pode-se dizer que 2018 ‘se esqueceu” de 2013, não?
Num certo sentido, de fato, 2018 foi uma consequência de esses líderes e partidos terem virado as costas para 2013, para o que ele representava. Nem o PT fez sua autocrítica. No caso do PSDB, o Tasso Jereissati, que ocupava a presidência interina, fez uma tentativa de autocrítica, inclusive com um programa de TV no qual se admitia que o partido cometeu erros, mas os estava corrigindo.
Mas a causa não avançou.
Sim, isso não foi aceito pela grande maioria do partido. Morreu ali. O que traz à tona outra questão fundamental: a crise de lideranças no País, que teve como consequência uma perda de conteúdo da democracia liberal.
De que forma?
Porque permitiu que se organizasse um ataque da extrema direita em relação aos direitos fundamentais da democracia, em relação às minorias. Tivemos um bom exemplo disso agora, quando Bolsonaro, na ONU, abordou a questão indígena falando em “um indigenismo ultrapassado”. E houve outros ataques a outras minorias, como sabemos. A meu ver isso é responsabilidade das lideranças chamadas democráticas, que de algum modo representavam uma alternativa para as classes médias, mas não se apresentaram.
Como imagina que isso vai ser resolvido?
Temos de saber se esses efeitos negativos podem desencadear uma reação. Se novas lideranças conseguirão reafirmar posições mais moderadas. Acredito que estamos diante de um desafio: a formação de uma frente democrática, envolvendo as diferentes forças independentemente de elas estarem um pouco mais à esquerda, ou à direita. O momento está exigindo isso. Mas não pode ser, como alguns já acenam, uma frente de esquerda, que de novo leve ao isolamento.
Teria de ser uma frente obrigatoriamente ampla…
Não precisamos de isolamento neste momento. Precisamos de unificação de todos os segmentos que tenham algum compromisso com a democracia. Isso significa, por exemplo, chamar os liberais, eu até diria os liberais conservadores, que não são a ultradireita. Setores que não concordam com o governo Bolsonaro.
Quais seriam as tarefas práticas dessa frente?
Ela deve reiterar os compromissos da democracia, os direitos fundamentais envolvendo minorias – destaco os índios e os afrodescendentes. Vamos entender aqui: as políticas de segurança não estão respondendo ao fato de que as maiores vítimas da criminalidade e da insegurança continuam sendo os jovens negros. Em especial se moram nas periferias, nas favelas. Este é outro item quando eu digo que o governo não está entregando o que prometeu. O caso do Rio de Janeiro é dramático, mas não é só no Rio que isso ocorre.
Isso ajudaria a romper a polarização do “nós” contra “eles”?
Essa frente precisaria combater a sério essa bipolarização. Deixar claro que defender a democracia é mais importante do que atacar o outro lado. Isso é essencial para trazer essa parcela da sociedade de volta a um papel proativo na política. Significa de novo impor a moderação como marca do debate social e político. E uma forma de antecipar essa meta é a qualificação desses segmentos para propor nomes novos já nesta eleição para prefeitos em 2020.
Já tem gente se dedicando a formar novas lideranças. O RenovaBR, o Raps e o Agora qualificam pessoas para os partidos.
Acho extremamente positivo, é por aí. Selecionar e estimular novas lideranças é tarefa das instituições da sociedade civil, como as que você citou. Mas é também tarefa da universidade. Ela precisa… não digo lançar líderes, mas preparar uma camada de profissionais com conhecimento dos problemas do País e que se disponham a atuar na política com outra perspectiva.
Qual perspectiva?
A democrática e republicana. Porque, vamos nos entender, nem sempre a democracia reivindica os princípios republicanos. E nem sempre os princípios republicanos são realizados em contexto democrático. Essa é uma grande questão, na formação de novos líderes: a junção dessas duas perspectivas. Democracia com probidade administrativa e respeito ao interesse público.
A universidade, de modo geral, acha isso importante?
Há uma preocupação com esse tema no Instituto de Estudos Avançados da USP. Ali se faz um esforço nessa direção. Mas precisamos fazer mais do que o que tem sido feito até agora, avançar esse empenho em formar novos líderes.
Voltemos à ideia de uma frente. Imagina para ela um programa prioritário?
Um primeiro passo seria em relação às eleições de 2020, preparar candidaturas pensando nesse objetivo. E o segundo, preparar também lideranças para 2022. E tem aí também uma estratégia essencial, a de criar lideranças para disputar o Legislativo. Construir uma conexão entre os dois poderes, formar uma base de apoio político. Independentemente de partido A ou B, tem de focar em renovar a política.
Renovar em que direção?
Enfrentar os estrangulamentos do sistema político. Em primeiro lugar, caminhar logo para o voto distrital misto. Em segundo, focar a questão do financiamento das campanhas, definindo qual o nível que a sociedade aceita de recursos para financiar a democracia. Está claro que ela precisa, sim, ser financiada, mas não por atores privados porque isso já significa distorcer resultados eleitorais. Qual o grau que é aceitável? E isso leva à ideia de que as campanhas precisam ser mais baratas.
E o terceiro ponto?
Resolver, numa reforma política, a assimetria que hoje temos entre Executivo e Legislativo. Hoje é o Executivo que tem todos os poderes para definir a agenda política no País. Citaria no mínimo duas questões: limitar as medidas provisórias do Executivo e sua prerrogativa de montar e propor o Orçamento anual do governo. É o Orçamento que define as prioridades das políticas públicas, e isso não pode ficar nas mãos só do Executivo.