Categorias
Artigo

Uma afronta ao estado democrático de direito

Por Rogério Tadeu Romano*

 

Colho o que informou o G1 Política, em 28.02.2023:

“O chefe da inteligência da Receita Federal do governo de Jair Bolsonaro, Ricardo Pereira Feitosa, acessou e copiou dados fiscais sigilosos de opositores do ex-presidente.

Um dos alvos foi Eduardo Gussem, procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro e responsável pelas investigações do suposto esquema de rachadinha dentro do gabinete do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). A denúncia foi posteriormente arquivada.

As informações foram reveladas pelos jornais “Folha de S.Paulo” e “O Globo”.

À época das pesquisas, não havia nenhuma investigação fiscal envolvendo os alvos que justificassem o acesso aos dados. Posteriormente, uma investigação interna da Receita Federal foi aberta para apurar a conduta de Ricardo Pereira Feitosa.

O Sigilo Fiscal do contribuinte (pessoa natural ou pessoa jurídica) é inviolável, constituindo um direito fundamental, exceção feita somente nas hipóteses de requisição Judicial.

O que abrange o sigilo fiscal?

Tem-se, portanto, que sigilo fiscal é o dever, a obrigação imposta à Fazenda Pública e a seus servidores de não divulgar informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo, ou de terceiros, e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades.

Fala-se ainda que o acesso indevido a dados fiscais de contribuinte, se constitui em ato de improbidade administrativa da parte do servidor envolvido (artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa).

Esse fato se caracteriza como um verdadeiro escândalo.

Ora, usar o aparato do estado, servindo-se da condição de poder eventual para perseguir adversários é algo de extrema gravidade.

É mais uma prova de que o bolsonarismo perseguia os seus adversários não apenas como tais, mas como inimigos.

Leve-se em conta que políticos que entraram em conflito com o ex-presidente Jair Bolsonaro tiveram seus dados acessados e copiados. Foram eles: o empresário Paulo Marinho e o ex-ministro Gustavo Bebianno, que morreu em março de 2020.

De Bebianno foram pesquisados e extraídos os dados do Imposto de Renda de 2013 a 2019.

Já Marinho teve os IRs de 2008 a 2019 acessados (a exceção de 2012) e copiados. A mulher do empresário também foi alvo da pesquisa e teve o Imposto de Renda de 2010 a 2013 extraído.

Foram ainda acessados dados do então procurador-geral de Justiça do RJ, Eduardo Gussem, que, em 2021, recebeu um relatório feito pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) que indicou movimentação financeira suspeita pelo ex-assessor de Flávio Bolsonaro, Fábricio Queiroz.

Eduardo Gussem esteve à frente das chamadas investigações sobre as rachadinhas, que trouxeram à luz uma forma de enriquecimento ilícito com recursos obtidos ilicitamente.

Após a identificação das pesquisas, foi instaurada uma sindicância investigativa em março do 2020, que recomendou a abertura de um PAD (Processo Administrativo Disciplinar). O processo pode culminar, inclusive, com a demissão do servidor público. A demissão é a forma máxima de pena na Administração Pública que diverge da exoneração, que não tem fins punitivos.

Observe-se ainda que o corregedor da Receita Federal, João José Tafner, afirma ter sofrido no ano passado pressão do antigo comando do Fisco para arquivar processo disciplinar aberto contra o servidor que acessou sem justificativa legal dados fiscais sigilosos de desafetos do clã Bolsonaro, como noticiou a Folha.

As afirmações, feitas internamente ao atual comando da Receita, resultaram na instauração de uma investigação pela Corregedoria do Ministério da Fazenda.

Afinal, por que todo esse tempo para investigar essa conduta? Somente após o fim do governo anterior o fato é levado a público?

Isso é coisa de um regime autocrático que afronta aos princípios e regras da democracia.

É absolutamente condenável que se use a Receita Federal para perseguir adversários, na verdade inimigos dos donos do poder da hora. É uma afronta ao princípio republicano, ao princípio da moralidade administrativa. Lembre-se que o princípio republicano, que deve nortear as relações da Administração, é um princípio democrático.

Para Hauriau a moralidade administrativa seria “o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração; implica não só distinguir o bem e o mal; o legal e o ilegal, o justo e o injusto; o conveniente e o inconveniente, mas ainda entre o honesto e o desonesto; há uma moral institucional, contida na lei, imposta pelo Poder Legislativo; e há a moral administrativa, que é imposta de dentro e que vigora no próprio ambiente institucional e condiciona a utilização de qualquer poder jurídico, mesmo o discricionário”, como se lê de Maria Sylvia Zanella di Pietro (Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, pág. 102).

É certo ainda que Maria Zanella de Pietro, ao estudar a moral em relação ao objeto do ato administrativa, repele, desde logo, que se pretenda relacionar a moralidade com a mera intenção do agente. Enfatiza Maria Sylvia Zanella de Pietro que a sua presença deve ser mais objetiva que subjetiva. Disse Maria Sylvia Zanella de Pietro (obra citada): ‘O princípio da moralidade tem utilidade na medida em que diz respeito aos próprios meios de ação escolhidos pela Administração Pública.

Muito mais do que em qualquer outro elemento do ato administrativo, a moral é identificável no seu objeto ou conteúdo, ou seja, no efeito jurídico imediato, que o ato produz e que, na realidade, expressa o meio de atuação pelo qual opta a Administração para atingir cada uma de suas finalidades”.

Não será preciso penetrar na intenção do agente, porque do próprio objeto resulta a imoralidade. Isso ocorre quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao trabalho, à ética das instituições.

Tal conduta repugnante deve ser devidamente investigada pela Receita Federal, Ministério da Fazenda, em um processo administrativo, onde pelo devido processo legal, devem ser analisadas essas condutas que se constituíram em um escárnio, e, se formada a culpa, demitir os envolvidos ou envolvido. Ainda, afinal, será caso de ação de improbidade administrativa, em que a Justiça Federal deverá dar contornos judiciais a eventuais penas cominadas pela Administração.

Foi usada a Máquina do Estado para conseguir informações sensíveis e sigilosas de cidadãos para serem utilizadas como arma política e ideológica.

Há evidente desvio de finalidade, situação que leva o ato administrativo de órgãos da Receita Federal a evidente nulidade.

Repito, na íntegra, a lição de Miguel Seabra Fagundes (O controle dos atos administrativos, 2ª edição, pág. 89 e 90), assim disposta; “A atividade administrativa, sendo condicionada pela lei à obtenção de determinados resultados, não pode a Administração Pública dele se desviar, demandando resultados diversos dos visados pelo legislador. Os atos administrativos devem procurar as consequências que a lei teve em vista quando autorizou a sua prática, sob pena de nulidade.”

Prossegue o eminente administrativista, que tantas lições deixou entre nós, alertando que se a lei previu que o ato fosse praticado visando a certa finalidade, mas a autoridade o praticou de forma diversa, há um desvio de finalidade.

Na doutrina, aliás, do que se tem de Roger Bonnard, as opiniões convergem no sentido de que, a propósito da finalidade, não existe jamais para a Administração um poder discricionário.

Assim não lhe é deixado o poder de livre apreciação quanto ao fim a alcançar. Isso porque este será sempre imposto pelas leis e regulamentos. E adito: pela Constituição, que, no artigo 37, estabelece, impõe, respeito à legalidade, moralidade, impessoalidade, dentre outros princípios magnos que devem ser seguidos pela Constituição. A literalidade do texto é mais que evidente.

Há no ato administrativo, para sua higidez e validade, um fim legal a considerar. Marcelo Caetano (Manual de direito administrativo, pág. 507) distinguia os desígnios pessoais, os cálculos ambiciosos, as previsões que o agente faz de si para si, no momento em que se determina a exprimir a vontade administrativa, sem repercussão positivamente exteriorizada, na prática do ato, daqueles que se refletem de modo objetivo na sua prática, vindo a desvirtuá-lo em sua finalidade objetiva.

Caberá à polícia federal investigar o caso triste na administração brasileira, no quadrante administrativo e ainda, se for o caso, ao MPF denunciar o envolvido ou os envolvidos solicitando as sanções no âmbito penal.

Tem-se do artigo 153 do Código Penal:

Art. 153 – Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem:

Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa, de trezentos mil réis a dois contos de réis. (Vide Lei nº 7.209, de 1984)

Parágrafo único – Somente se procede mediante representação.

(Revogado)

  • 1º Somente se procede mediante representação. (Parágrafo único renumerado pela Lei nº 9.983, de 2000)

 

  • 1 o -A. Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)

  • 2 o Quando resultar prejuízo para a Administração Pública, a ação penal será incondicionada. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000).

Especificamente interessa para o caso o parágrafo primeiro daquele artigo.

O objeto jurídico deste crime é a liberdade individual, especialmente a proteção dos segredos cuja divulgação possa causar dano à outrem.

O sujeito ativo do crime é o destinatário ou o descobridor do segredo.

Não se protege o segredo recebido oralmente, mas apenas o contido em documento ou correspondência confidencial. O núcleo do crime é divulgar, que significa o ato de propagar, difundir. Para muitos o crime exigiria que se conte o segredo a mais de uma pessoa. Para Celso Delmanto e outros ( Código Penal Comentado, 6ª edição, pág. 332), basta que se narre a um só, porquanto o que se tem em vista é o comportamento divulgar e não o resultado divulgação. Todavia, o elemento normativo sem justa causa torna atípico o comportamento quando a causa é justa (defesa de um interesse legítimo). O que é segredo? É o fato que deve ficar restrito ao conhecimento de uma ou de poucas pessoas; sendo que a necessidade desse sigilo deve ser expressa ou implícita.

O núcleo do tipo penal envolve divulgar e dar conhecimento de algo a alguém ou tornar algo público. O objetivo deste tipo penal é resguardar as informações sigilosas ou reservadas contidas em sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública. A informação, como revelou Guilherme de Souza Nucci ( Código Penal Comentado, 8ª edição, pág. 699), deve estar guardada em sistema que contenha base material, isto é, não se configura o ilícito se a informação sigilosa ou reservada for unicamente verbal.

O que é banco de dados? É a compilação organizada e inter-relacionada de informes guardados em um meio físico, com o objetivo de servir de fonte de consulta para finalidades variadas, evitando-se a perda de informações.

Repita-se que o objeto material e jurídico do ilícito é a informação sigilosa ou reservada.

O elemento subjetivo do crime é o dolo genérico.

Trata-se de crime formal, comissivo, instantâneo, unissubjetivo.

Em sendo a conduta em prejuízo da Administração Pública, a ação penal pública incondicionada.

Em face da pena mínima de 1 (um) ano será caso de apresentação de sursis processual pelo Parquet e ainda, se for o caso, proposta de não persecução penal.

Trata-se, pois, de crime próprio na medida em que se demande sujeito ativo qualificado ou especial.

A lei, portanto, exige que a informação objeto de divulgação seja considerada sigilosa ou reservada.

Somente para fins legais, para interesse da sociedade, pode um funcionário público lotado na Receita Federal ter acesso a dados confidenciais e sobre eles dar divulgação.

Tal se dá nos estritos limites da lei, em observância ao interesse público, seja primário ou secundário.

A conduta acima narrada é um evidente desprezo aos princípios e normas do Estado Democrático de Direito.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.