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Fofoqueiros, historiadores e reformadores

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Faz uns dias, eu escrevi aqui sobre o que denominei de “romances de adultério”. Um certo tipo de ficção, cujo apelido dado já indica acerca do que os textos significativamente tratam, que exemplifiquei com duas obras-primas da literatura universal: “Madame Bovary” (1857), de Gustave Flaubert (1821-1880), e “Ana Karenina” (1878), de Leon Tolstói (1828-1910).

Entretanto, fui acusado, por um leitor indignado, mesmo tratando dos casos de Bovary e Karenina, de haver abandonado o direito e estar agora escrevendo fofocas.

Devo logo reiterar que, em termos de qualidade e legado para a cultura, os textos de Flaubert e Tolstói frequentam o pódio dos maiores de todos os tempos. “Todas as famílias felizes são parecidas. As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”, de “Ana Karenina”, talvez seja a mais célebre primeira linha da literatura. E, para muitos, “Madame Bovary” é simplesmente o melhor romance jamais escrito. Se têm “fofocas”, elas são de altíssima qualidade.

Na verdade – e aqui já chego onde quero chegar –, se, num primeiro momento, “Madame Bovary” e “Ana Karenina” têm como temas principais a hipocrisia, a sociedade, a família, o casamento, o divórcio, a fidelidade, a paixão, o sexo e por aí vai, elas são sobretudo retratos históricos dos contextos social, político e também jurídico da França e da grande Rússia de então.

Grandes romancistas, com suas tocantes estórias, algumas vezes são ótimos historiadores, inclusive do direito. Seus textos literários testemunham a visão sobre o mundo jurídico existente em certa sociedade em determinada época, embora essa visão seja marcada pela ótica particular do autor. E esses testemunhos, em linguagem elegante, são bem mais acessíveis aos leitores (com ou sem formação jurídica), para fins de reconstrução da imagem que determinada sociedade tem do direito e de seus atores, que os áridos estudos jurídico-histórico-sociológicos de caráter estritamente científico.

Para além disso, os grandes romances, ao mesmo tempo em que reproduzem o direito posto e o imaginário popular acerca das diversas temáticas jusfilosóficas, também influenciam, em graus variados, a construção desse direito e, sobretudo, desse imaginário. Nesse ponto, como se dá com outras interfaces da literatura (com a religião, com os costumes, com a moda etc.), ela (a literatura) é subversiva, tanto para o direito positivo como para a filosofia do direito. De fato, muitas das ideias inovadoras no direito, assim como boa parte das críticas à mentalidade jurídica consolidada, encontraram sua mais vívida expressão nesse popular e imaginativo meio de expressão, denominado por nós de romance, mas que, poeticamente, o mesmo William P. MacNeil chamou certa vez de “lex populi” (na obra “Lex Populi: The Jurisprudence of Popular Culture”, Stanford University Press, 2007).

Dois grandes exemplos disso são precisamente os casos de Bovary e Karenina, como anota Antonio Padoa Schioppa em “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea” (edição da WMF Martins Fontes, 2014): “Um primeiro setor de inovações legislativas diz respeito à família. Na França, a Restauração havia abolido o divórcio admitido no Código Napoleônico. A crescente consciência das consequências não raro dramáticas, sobretudo para a mulher, de uniões irremediavelmente viciadas – uma consciência exaltada com muita eficácia também pela literatura: pense-se em Madame Bovary de Flaubert ou em Anna Karenina de Tolstoi – levou em 1884, após longas batalhas parlamentares e de opinião, à reintrodução do divórcio na França, limitado contudo a poucas causas específicas (rapto, estupro, sevícias, condenação penal) e com a exclusão do consentimento mútuo como causa de dissolução do vínculo. Ainda na França, muito gradualmente se impôs também a proteção da mulher: à esposa é reconhecida uma pequena capacidade de agir, bem como o usufruto de uma parcela dos bens do cônjuge falecido, a mulher separada foi subtraída ao poder marital, concedeu-se à mulher trabalhadora a possibilidade de dispor livremente de seu salário”.

No mais, definitivamente não somos fofoqueiros. Nem eu nem muito menos Flaubert ou Tolstói.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Crônica

Romances de adultério

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Por estes dias, vieram me contar – melhor seria dizer “fofocar” – de um caso recentíssimo de adultério na nossa terrinha. Sei que essas coisas de adultério se tornaram hoje banais. Mas o tal caso envolve gente conhecida, posso até dizer bem famosa na paróquia potiguar. E o indivíduo que me contou estava deveras entusiasmado – para não dizer “excitado” – com o furdunço e, sobretudo, com a beleza bem-nascida da consorte adúltera.

Não pretendo agora entrar em detalhes sobre o ocorrido, nem muito menos dar nome aos “bois”. Pelo menos essa é a minha vontade no momento em que inicio esta crônica. Minha intenção é, aproveitando esse “gancho”, tratar de um tipo especialíssimo de literatura (dizer subgênero talvez seja um exagero), um tal “romance de adultério”, relembrando e indicando aqui dois clássicos das letras universais, “Madame Bovary” (1857), de Gustave Flaubert (1821-1880), e “Ana Karenina” (1878), de Leon Tolstói (1828-1910).

“Madame Bovary” é uma obra-prima. Figura certamente entre os melhores romances já escritos. Para alguns, tecnicamente, é mesmo o número 1. E agora mesmo eu relembro as sensações que tive quando o li, já pelo finalzinho da minha adolescência, começo da vida adulta. Foram de um realismo de fazer corar os mais castos. Parcialmente inspirado em um caso real, o enredo conta as aventuras e desventuras de Emma Bovary, nascida Roualt, uma jovem francesa que se casa com o médico provinciano, extremamente trabalhador, Charles Bovary. Apesar da paixão do marido por ela, Emma sente muito pouco por ele. À própria falta de amor, ela compensa imaginando os amores que lê em livros/estórias românticas. Ela lê Walter Scott (1771-1832) e outros menos votados. Quando um dia Emma frequenta um baile promovido pela nobreza de então, ela ali se mistura, entre nobres e ricos, e imagina que nasceu para viver aqueles sonhos. Esses ideais românticos, transformados em adultério, acabam por destruir seu casamento e sua vida (e paro por aqui para não dar mais spoiler). De toda sorte, o causo da “Madame” desvelou sobremaneira uma aprisionante realidade matrimonial em França e alhures.

“Ana Karenina”, em termos de qualidade e legado para a cultura, anda de par com “Madame Bovary” na ribalta dos maiores “romances de adultério” da literatura mundial. “Todas as famílias felizes são parecidas. As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira” – talvez seja a mais célebre primeira linha da literatura universal. Alegadamente inspirado em um caso real de adultério, o romance conta, em primeiro plano, a estória de Ana Karenina e de seu amante, o Conde Alexei Vronski. Ana, em meio a essa paixão proibida (ela era casada com o enfadonho Conde Alexei Alexandrovich Karenin), entra num turbilhão de mentiras e de traição. Desesperada, premida por convenções sociais de antanho e leis absurdas (que só oprimiam as mulheres), vivendo num teatro de hipocrisias, numa das mais famosas cenas da literatura, ela acaba… Num primeiro momento, embora “Ana Karenina” tenha como temas principais a hipocrisia, a sociedade, a família, o casamento, o divórcio, a fidelidade, a paixão, o sexo e por aí vai, a obra não deixa de ser um veículo para que Tolstoi – com sua “filosofia” bem peculiar, quase mística – exponha suas ideias, de cunho mais social e político quero dizer, sobre a grande e congelante Rússia. Uma Rússia onde a vida no campo, idealizada pela e na personagem Konstantin “Kostya” Levin (para muitos o alter ego do autor), contrasta com os vícios e a hipocrisia da cidade. Paro por aqui.

Sei que a classificação “romances de adultério”, para certo tipo de ficção, não está consagrada nos manuais de literatura, pelo menos não como nos casos dos (sub)gêneros romances policiais/detetivescos, romances históricos, ficção científica, faroestes e por aí vai. Mas estou seguro de que, quando bem escritos, e ainda mais se obras-primas como “Madame Bovary” e “Ana Karenina”, esses livros são maravilhosamente excitantes. Assim como excitante é o caso real que mencionei acima, cujos detalhes acabei não apresentando aqui. Quem sabe não o faço em forma de ficção? Boa ideia…

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.