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Crônica

Uma comparação literária

Por Marcelo Alves Dias de Souza

Hoje mais do que nunca, com a globalização, a facilidade de comunicação e o maior intercâmbio cultural, a literatura comparada deve ser uma das principais “parceiras” daquele que pretende analisar as realidades da cultura geral e do seu povo. E, quando falo de globalização, refiro-me àquele processo que tende a criar e consolidar uma economia mundial unificada, um único sistema ecológico, uma complexa rede de comunicações que abarca todo o mundo e, por que não, um padrão de cultura/literatura comum a todos os povos ditos “civilizados”.

Essa melhor utilização da literatura comparada, aliás, pode se dar de várias maneiras e em vários níveis. Podemos realizar macro ou microcomparações. A primeira refere-se ao estudo de duas ou mais “literaturas” (a brasileira e a norte-americana em suas totalidades, por exemplo); a segunda, ao estudo de aspectos, temas, obras ou autores de duas ou mais “literaturas”. Deve-se notar, ainda, que essa comparação pode ser horizontal ou vertical, a depender se o enfoque recai sobre o panorama atual ou se são feitas incursões de caráter histórico nas “literaturas” comparadas. De fato, na literatura, a comparação tem muito a nos oferecer. De maneira ao mesmo tempo integrativa e contrastante, a literatura comparada nos ajuda a identificar os elementos essenciais da literatura de outros países, de outros povos, de outras línguas, suas semelhanças e diferenças para com a nossa, assim como seus pontos fortes e fracos no panorama cultural universal. Jamais em competição com as tradições internas, mas em parceria com elas, a literatura comparada pode ter uma função de análise e ajudar a se chegar a um julgamento mais equilibrado e crítico de nossa produção intelectual, graças a uma perspectiva mais ampla e multicultural da literatura.

Tomemos aqui, como singelo exemplo para comparação literária, a seguinte relação entre a obra do irlandês Laurence Sterne (1713-1768) e do nosso Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908).

O mulato carioca Machado de Assis é convencionalmente tido como o maior escritor brasileiro de todos os tempos. É quase uma unanimidade, acredito. O grande crítico norte-americano Harold Bloom (1930-2019), aliás, tinha Machado de Assis como o maior escritor negro de todos os tempos. Uma de suas obras-primas é o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881). E a propósito, em 2020, a prestigiosa revista The New Yorker, em virtude de uma nova edição de “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”, deu à resenha do livro o consagrador título: “Redescobrindo um dos mais espirituosos livros jamais escritos”.

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” é alegadamente inspirado no “Tristram Shandy” (“The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”, 1759-1767) de Sterne. Mesmo que se tenham estórias diversas para cada um dos livros, e mesmo que seus contextos sociais e culturais sejam diversos (uma Europa com duzentos anos de diferença para o nosso Brasil), há, sem dúvida, fortes pontos de contato/inspiração. A “forma livre de jogar as ideias”, as digressões e o humor (embora um humor mais sarcástico em Machado e um mais ingênuo/sentimental em Sterne) são amplamente reconhecidos. Pode-se até de dizer que Machado “roubou” a ideia ou concepção do romance de Sterne, que, por sua vez, já a teria “furtado”, em parte, do Dom Quixote (1605) de Miguel Cervantes (1547-1616).

Mas não tenham isso como demérito para o nosso maior escritor. Com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado de fato nos presenteou com um romance inovador – experimental, posso dizer –, tido como o marco inicial do realismo (mágico?) na literatura brasileira, até então presa ao romantismo. Um ponto de virada, para melhor, na obra do Bruxo do Cosme Velho. As ousadias formais – basta lembrar que o narrador é um “defunto autor”, sem compromisso com a cronologia do tempo – e o humor implacável são mesmo revolucionários. E, para além dos aspectos formais, o romance também encanta pelo seu conteúdo: pretensa autobiografia, é uma crítica, refinada mas sem concessões, da hipocrisia da sociedade brasileira de então (e de hoje?). Por detrás do humor, revela o pessimismo do autor com tudo que ele enxerga. É um romance filosófico e moral, que combina diversão e profundidade com natural equilíbrio.

Afinal, e não canso de repetir, já dizia o enorme Picasso (1881-1973): “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Artigo

Como um governante se sente à vontade para banir Kafka e Machado de Assis?

Por Rodrigo Casarin

A notícia: a Secretaria de Educação de Rondônia preparou um documento apontando mais de 40 livros que deveriam ser retirados das bibliotecas de escolas púbicas da cidade porque seriam impróprias para os jovens. No índex, títulos como “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis”, “Poemas Escolhidos”, de Ferreira Gullar, e “O Castelo”, de Franz Kafka. O governo estadual negou. Professores disseram que já tinham sim recolhido alguns volumes. A caça aos autores existiu. Deu-se o imbróglio e, aparentemente, os censores voltaram atrás. O governador de Rondônia é Marcos Rocha, do PSL, adorador de Bolsonaro.

Escrever o quê? Que a arte está sendo perseguida? Bato nessa tecla há três anos. Que a censura já encontrou seu caminho para vigorar no país? Também não é novidade por aqui. Que é um absurdo tudo isso que está acontecendo? E quem se importa, além de um milhão ou outro num país com mais de 200 milhões? É tanto descalabro para tudo que é lado que anda difícil ser minimamente original.

Mas fui dormir com a seguinte pergunta: o que leva alguém a se sentir à vontade para censurar até os clássicos? O que leva um governante a achar razoável dizer para os colegas: “Vamos banir uns livros aí? Um nome ou outro só. Mário de Andrade, Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca – este é bem perigoso, tem que dar fim em quase tudo que encontrar dele -, Euclides da Cunha… Tem também uns nomes estranhos, Kafta, Kafka, sei lá, Allan Poe… Vamos banir. Ah, e o Machado. Tira o Machado das estantes, parece que ele era comunista”. Daí o outro tosco retruca: “Pô, que boa ideia. Vamos fazer isso sim, talquei?”

Bem, andam se sentido confortável principalmente porque a imensa maioria das pessoas não está nem aí para nada que vá além do próprio umbigo. E o próprio umbigo é: “Isso vai mudar meu dia? Não? Então dane-se. E daí que não pode mais estudante ler livro de defunto autor? Nem sabia que morto escrevia”. No boteco da esquina, ninguém dá a menor bola para o que está acontecendo. Há inúmeras razões para isso, claro, mas a consequência está aí: o povo paralisado enquanto o Brasil toma um caminho assustador. E mesmo os que se importam, os que de alguma forma reagem, dificilmente levantam a bunda para tal: é resistência pela internet ou nada.

Dessa vez voltaram atrás. Na próxima – que virá –, talvez não voltem. Vamos tuitar que tudo é um grande absurdo, que o Brasil está perdido. Até que alguém proponha, e talvez emplaque, algo ainda mais estúpido.