Por Daniel Menezes*
É o que está em jogo no caso da ivermerctina na cidade. Não é mais uma questão de dúvida sobre a validade do mata piolho contra a pandemia pelo novo coronavírus, pois após as manifestações de agências sanitárias do Brasil e do mundo, estudos, cientistas, revistas, etc, não há dois lados sobre a eficácia geradora de proteção contra covid pela ivermerctina. Todo o empenho do prefeito de Natal Álvaro Dias e seus apoiadores diz respeito a uma questão política e judicial.
(Se você ainda acha que há dúvida sobre o assunto, talvez impactado pelas fake news locais que circulam na cidade, favor ler apenas – não postarei tudo novamente – a recente proibição emitida pela fda – agência de saúde americana – sobre o uso da ivermectina contra covid. Está em inglês, mas você pode ligar o tradutor do Google: https://www.fda.gov/animal-veterinary/product-safety-information/faq-covid-19-and-ivermectin-intended-animals)
O prefeito de Natal Álvaro Dias alicerçou todo o seu discurso, diante da maior pandemia dos últimos 100 anos num pleito eleitoral, no sucesso da operação ivermerctina. Sucesso este falso. Em Junho, no pico da primeira onda, a cidade concentrou quase metade dos óbitos, tendo 24% da população do RN. Mas o discurso e toda euforia vieram e, sem contraponto local, a coisa engrenou. Com o arrefecimento da primeira onda, ele cuidou de dizer que foi por conta do tratamento preventivo, o que não foi porque a pandemia desacelerou (mas não desapareceu) em todo o RN e no restante do Brasil.
A distribuição massiva de ivermerctina o permitiu acessar milhares de eleitores e abocanhar politicamente a vitória imunológica dos doentes contra o vírus, dizendo que foi ação dele. Ora, 99,4% das pessoas que pegam covid ficam boas, conforme a organização mundial de saúde. Tomando um placebo sugestivo, elas imaginarão que foi o remédio e não o próprio corpo, agradecendo ao político pai da iniciativa.
O tratamento profilático era a contribuição da prefeitura do Natal contra a pandemia, disse em entrevista membro do comitê científico de Natal a um jornal da cidade. Álvaro Dias explodiu em avaliação positiva e ganhou em primeiro turno em sua reeleição em 2020.
O problema é que a realidade – sempre ela – se impôs e, com a segunda onda, novamente Natal voltou a sua condição crítica, lotando hospitais e exportando pacientes para outras regiões do RN. O rei ficou nu.
O desespero para manter uma dúvida inexistente no ar, usando representantes negacionistas de associações médicas locais que lhes apoiam, fake news, etc, é a forma para salvar o futuro político do prefeito, que é ventilado como possibilidade de concorrer ao governo do RN em 2022. Imagine se toda a população perceber que foi feita de boba? Se o natalense se tocar que a liberação do comércio aplicada pela prefeitura do Natal em pleno pico da primeira onda e as promessas de proteção contra covid pelo uso indiscriminado de mata piolho não passaram de pura enganação? O custo eleitoral será bastante elevado para ele e para os entusiastas também emaranhados nesta mentira coletiva.
Toda a operação montada em Natal pela prefeitura e seus apoiadores vai no caminho de tentar desovar uma narrativa que caiu de podre. O consenso científico é insofismável, mas o popular sobre o tal tratamento precoce também está se impondo. As pessoas estão acreditando menos na pseudociência do prefeito, as contestações crescem, o governo federal finalmente parou de falar em tratamento precoce e as associações médicas nacionais já se manifestaram sobre a ausência de validade científica da cloroquina e ivermectina.
O único caminho para o prefeito é dizer que há uma dúvida sincera e que, diante dela, ele preferiu não pecar por omissão. Só assim o maior estelionato eleitoral da história de Natal poderá ser esquecido. Do contrário, no próximo ano, sua imagem será a de quem enfrentou o principal problema da cidade em décadas, com politicagem voltada para a geração de dividendos eleitorais com um placebo.
Além disso, não será chamado a responder politicamente e do ponto de vista judicial porque fez defesa pública da automedicação com ivermerctina, incentivou seu uso sem qualquer base na ciência e nada no Brasil ampara tal prática. Mesmo na pandemia, os médicos só podem, por exemplo, receitar a panacéia com a autorização individual do paciente, nunca em programa de tv ou em outras declarações públicas como fez o gestor da cidade e seus apoiadores, a partir de falsas promessas.
A necessidade de desfazer tal operação não se relaciona com a perspectiva de inviabilizar o futuro do prefeito. Mas de impedir que a falsa informação novamente leve as pessoas a uma exposição ao vírus, imaginando se protegidas. Sim, esta é a consequência social mortal de uma fake news alimentada pelo poder público. E, por isso, qualquer titubeio diante da mentira é sinônimo de mais mortes. Não há como ficar em cima do muro, vendo o sangue bater na canela.
*É sociólogo e professor da UFRN.
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