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Crônica

O acesso, literariamente

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

O mais badalado dos romances de Franz Kafka (1883-1924), pelo menos para nós do direito, é “O processo”, que restou sendo publicado, já postumamente, em 1925. A obra narra a estória do bancário Jofeph K., que, por um “crime” ou por razões nunca reveladas, nem a ele nem ao leitor, é preso, processado e condenado por um misterioso e inacessível tribunal. Algo “kafkiano”, digo, sendo hiperbolicamente tautológico.

E é desse romance que destaco uma passagem para tentar ilustrar, literária e literalmente, a temática do “acesso à justiça”: a parábola “Diante da Lei”, que consta do capítulo 9 de “O processo” (embora tenha sido também publicada, separadamente, no livro de contos “Um médico rural”, de 1919). Trata-se de um texto central em toda a obra de Kafka, e não só em “O processo”, sendo um dos escritos preferidos do próprio autor.

Em “O processo”, a narrativa/parábola é contada a Josef K. pelo capelão da prisão, tendo como cenário a igreja gótica que faz as vezes da sede do tribunal que processa, julga e condena o protagonista (lembrando ainda que este, o nosso Josef K., será executado no capítulo seguinte). E, aqui, rogo a ajuda de Modesto Carone, com o seu “Lição de Kafka” (Companhia das Letras, 2009), para explicar o conteúdo de “Diante da Lei”: “Um homem do campo chega ao porteiro que vigia a entrada para a lei e pede admissão. O porteiro recusa o pedido e responde evasivamente sobre se o homem do campo poderá entrar mais tarde. Quando o homem do campo olha para o interior da lei pelo portão, o porteiro adverte-o de que é inútil tentar entrar sem permissão. Ele diz que, apesar de ser o último dos porteiros, é poderoso. A partir daí o homem do campo passa a observar atentamente o porteiro. O porteiro dá-lhe um banquinho, no qual ele pode ficar sentado enquanto espera. Os anos passam, durante os quais o homem do campo envelhece. Primeiro ele tenta subornar o porteiro, depois pede até às pulgas da gola do seu casaco que o ajudem. Esquece cada vez mais que existem outros porteiros porque, no seu esforço para entrar na lei, ele se concentra totalmente no primeiro. Quando está morrendo, pergunta por que, em todos aqueles anos, nenhuma outra pessoa solicitou entrada na lei. O porteiro responde-lhe que aquela porta havia estado aberta só para ele e que, agora que ele está morrendo, vai fechá-la”.

Bom, em sendo a narrativa de “Diante da Lei” uma parábola (mesmo que Kafka também a denomine “legende” ou lenda), ela tem de ter um objetivo. Um fim moral, melhor dizendo. Afinal, como ensina o citado Modesto Carone, a parábola “é uma narrativa que contém algum tipo de argumentação que termina numa moral da história. (Em Kafka, essa moral é suprimida ou encapsulada.) Em outros termos, a parábola é uma história consistente em si mesma, mas aponta para uma outra coisa – geralmente um ensinamento de vida – que só pode ser desentranhada daquilo que é efetivamente narrado”.

Mas qual seria essa “moral da história” na parábola “Diante da Lei”? Aí é que está o problema. Ou a beleza da coisa – se você é daqueles, como o grande Robert Frost (1874-1963), para quem fazer poesia é “dizer uma coisa significando outra”. Como registra Modesto Carone, em “O processo, depois que a ‘lenda’ é contada a Josef K. pelo capelão, ambos discutem o sentido da parábola e suas implicações. Por meio dessa discussão, Kafka deixa a critério do leitor a interpretação da narrativa e, em vez de oferecer a K. alguma clareza sobre sua situação (K., o réu, não sabe por quem, nem de que é acusado), o relato o deixa mais perplexo a respeito do processo de que é vítima”.

Na verdade, como muito ou quase tudo em Kafka, a coisa aqui está sujeita a mil interpretações. O absurdo existencial é a tônica da narrativa kafkiana, sendo “O processo” até um livro inacabado, talvez propositalmente. Mas podemos dar nossos pitacos, é claro.

Todavia, aproveitando essa deixa – um tanto kafkiana, confesso – de deixar as coisas em suspenso, apenas vamos tratar dessas interpretações/pitacos em uma próxima conversa. Na semana que vem, asseguro. Ou não?

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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