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Uma afronta ao STF e ao sistema de freios e contrapesos

Por Rogério Tadeu Romano*

I – O FATO

Observo o que foi divulgado na edição do Estadão, em 14.11.23:

“O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, e o decano da Corte, Gilmar Mendes, criticaram a Proposta de Emenda à Constituição (PEC), prevista para ser votada hoje pelo Senado, que tira poder de ministros do STF, limita decisões monocráticas e pedidos de vista e autoriza parlamentares a cassar decisões da Corte. No seminário “O papel do Supremo nas democracias”, do Estadão, Barroso disse ser contrário à PEC porque, segundo ele, as mudanças reforçariam a ideia de que erros do País passam pelo STF. Mendes associou a proposta à ditadura Vargas e disse que ela “não tem boa origem”. O decano adiantou que, se os senadores aprovarem a PEC, o plenário do STF deve derrubá-la.

A PEC define que as chamadas decisões monocráticas não podem suspender a eficácia de uma lei ou norma de repercussão geral aprovada pelo Congresso e sancionada pela Presidência da República —para isso, obriga que haja decisões colegiadas.

O Plenário do Senado aprovou em dois turnos e seguiu para a Câmara dos Deputados a proposta de emenda à Constituição (PEC 08/2021) que limita a atuação dos ministros do Supremo Tribunal Federal. De autoria do senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), a PEC veta decisões monocráticas que suspendam a eficácia de leis ou atos dos presidentes dos demais Poderes. Ele minimizou a decisão do relator, Esperidião Amin (PP-SC), de retirar da proposta o prazo de seis meses para concessão do pedido de vista, tempo maior para a análise de uma ação, consoante informou o portal do Senado Federal, em 22.11.23.

Foram 52 senadores a favor, 18 contra e nenhuma abstenção, tanto na votação do primeiro como do segundo turno. O texto segue agora para análise da Câmara dos Deputados.

II – A PRERROGATIVA DO STF DE LEGISLAR SOBRE SUA ORGANIZAÇÃO INTERNA

De outra parte tem-se que a Constituição da República estabelece em seu artigo 96 a competência dos tribunais para a elaboração de normas de organização interna sobre a atribuição e o funcionamento de seus órgãos jurisdicionais e administrativos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes. No Supremo Tribunal Federal (STF), órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, questões relativas ao procedimento e ao julgamento de processos de sua competência e aos serviços do Tribunal são disciplinadas pelo Regimento Interno.

Ali se prescreve:

Art. 96. Compete privativamente:

I – aos tribunais:

  1. a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;

………

Disse bem o ministro Celso de Mello (Poder reformador não legitima nem autoriza desrespeito às cláusulas pétreas, in Consultor Jurídico, em 5 de outubro de 2023):

“O eminente e saudoso ministro Paulo Brossard, em um de seus luminosos votos proferidos no Supremo Tribunal Federal ( ADI 1.105‐MC/DF), bem equacionou o problema resultante da tensão normativa entre a regra legal e o preceito regimental, chamando a atenção para o fato — juridicamente relevante — de que a existência, a validade e a eficácia de tais espécies normativas hão de resultar do que dispuser o próprio texto constitucional:

“Em verdade, não se trata de saber se a lei prevalece sobre o regimento ou o regimento sobre a lei. Dependendo da matéria regulada, a prevalência será do regimento ou da lei (José Celso de Mello Filho, Constituição Federal Anotada, 1986, p. 368; RMS 14.287, ac. 14.VI.66, relator ministro Pedro Chaves, RDA 87‐193; RE 67.328, ac. 15.X.69, relator ministro Amaral Santos, RTJ 54‐183; RE 72.094, ac. 6.XII.73, relator Antonio Neder, RTJ 69‐138). A dificuldade surge no momento de fixar as divisas entre o que compete ao legislador disciplinar e o que incumbe ao tribunal dispor. O deslinde não se faz por uma linha reta, nítida e firme de alto a baixo; há zonas cinzentas e entrâncias e reentrâncias a revelar que, em matéria de competência, se verificam situações que lembram os pontos divisórios do mundo animal e vegetal. (…). O certo é que cada Poder tem a posse privativa de determinadas áreas. (…).”

Themístocles Brandão Cavalcanti (A Constituição Federal Comentada, vol. II/312, 1948, Konfino) enfatizou a impossibilidade de ingerência do Poder Legislativo no regramento dessas mesmas questões, observando que os órgãos do Judiciário, ao editarem os seus regimentos internos,”exercem uma função legislativa assegurada pela Constituição, restritiva da função exercida pelo Poder Legislativo”.

José Frederico Marques (Instituições de Direito Processual Civil – volume I – 1990 – p. 186) ao tratar do tema assevera que “o regimento é lei em sentido material, embora não o seja em sentido formal. Na hierarquia das fontes normativa do Direito, ele se situa abaixo da lei, porquanto deve dar-lhe execução”.

Sabe-se, porém, segundo noticiou a Agência Senado, em 4.10.23, que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou proposta de emenda à Constituição que limita decisões monocráticas e pedidos de vista nos tribunais superiores. A PEC 8/2021, apresentada pelo senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), recebeu voto favorável do relator, senador Esperidião Amin (PP-SC) e será encaminhada para deliberação do Plenário do Senado.

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal aprovou alterações em seu regimento interno para restringir decisões individuais e limitar a 90 dias corridos o prazo para a devolução de pedidos de vista.

Como informou o portal de notícias do STF, em 26.12.22, a norma também prevê que, em caso de urgência, o relator deve submeter imediatamente a referendo do Plenário ou da Turma, a depender da competência, medidas cautelares necessárias para evitar grave dano ou garantir a eficácia de decisão anterior. O referendo deve ser realizado, preferencialmente, em ambiente virtual. Mas, caso a medida urgente resulte em prisão, a deliberação se dará, necessariamente, de modo presencial.

Se mantida, a medida precisa ser reavaliada pelo relator ou pelo colegiado competente a cada 90 dias, nos termos do Código de Processo Penal (CPP). Caberá à Secretaria Judiciária acompanhar os prazos.

A mesma regra de transição dos pedidos de vista se aplica às liminares já deferidas: o prazo para a submissão a referendo é de 90 dias úteis.

III – O SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS

Estaria em risco a teoria dos checks and balances?

A figura dos “Checks and Balances”, comumente denominada de sistema de freios e contrapesos, torna-se imprescindível para garantir essa independência e limitação dos Poderes. Como pode ser lido:

Eis então a constituição fundamental do governo de que falamos. Sendo o carpo legislativo composto de duas partes, uma prende a outra com sua mútua faculdade de impedir. Ambas estarão presas ao poder executivo, que estará ele mesmo preso ao legislativo. Estes três poderes deveriam formar um repouso ou uma inação. Mas, como, pelo movimento necessário das coisas, eles são obrigados a avançar, serão obrigados a avançar concertadamente. [O Espírito das leis. Tradução Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005).

A Teoria da Separação dos Poderes de Montesquieu foi inspirada em Locke que, também, influenciou significativamente os pensadores norte-americanos na elaboração da Declaração de sua independência, em 1776.

Somente no século XVIII, Montesquieu, autor da obra O Espírito das Leis (1748), que alcançou 22 edições, em 18 meses, sistematizou o princípio com profunda intuição. Coube-lhe a glória de erigir uma doutrina sólida sobre a divisão de poderes.

A primeira Constituição escrita que adotou integralmente a doutrina de Montesquieu foi a da Virgínia, em 1776, seguida por outras, como as de Massachussetts, Maryland, New Hampshire e pela Constituição americana os constitucionalistas norte-americanos, de modo categórico, que a concentração de três poderes num só órgão de governo, representa a verdadeira definição de tirania.:

“Quando na mesma pessoa ou corporação, o poder legislativo se confunde com o executivo, não há mais liberdade. Os três poderes devem ser independentes entre si, para que se fiscalizem mutuamente, coíbam os próprios excessos e impeçam a usurpação dos direitos naturais inerentes aos governados. O Parlamento faz as leis, cumpre-as o executivo e julga as infrações delas o tribunal. Em última análise, os três poderes são os serventuários da norma jurídica emanada da soberania nacional”.

Assim o princípio de Montesquieu, ratificado e adaptado por Hamilton, Madison e Jay, foi a essência da doutrina exposta no Federalist, de contenção do poder pelo poder, que os norte-americanos chamaram sistema de freios e contrapesos.

Um dos objetivos de Montesquieu era evitar que os governos absolutistas retornassem ao poder. Para isso, em sua obra “O Espírito das leis”, descreve sobre a necessidade de se estabelecer a autonomia e os limites entre os poderes. No seu pensamento, cada Poder teria uma função específica como prioridade, ainda que pudesse exercer, também, funções dos outros poderes dentro de sua própria administração.

O Sistema de Freios e Contrapesos consiste no controle do poder pelo próprio poder, sendo que cada Poder teria autonomia para exercer sua função, mas seria controlado pelos outros poderes. Isso serviria para evitar que houvesse abusos no exercício do poder por qualquer dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Desta forma, embora cada poder seja independente e autônomo, deve trabalhar em harmonia com os demais Poderes.

A Teoria da Separação dos Poderes surgiu na época da formação do Estado Liberal.

O princípio dos poderes harmônicos e independentes acabou por dar origem ao conhecido Sistema de “freios e contrapesos”, pelo qual os atos gerais, praticados exclusivamente pelo Poder Legislativo, consistentes na emissão de regras gerais e abstratas, limita o Poder Executivo, que só pode agir mediantes atos especiais, decorrentes da norma geral. Para impedir o abuso de qualquer dos poderes de seus limites e competências, dá-se a ação do controle da constitucionalidade das leis, da decisão dos conflitos intersubjetivos e da função garantidora dos direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito, pelo Poder Judiciário.

Esse princípio da separação é o melhor instrumento contra a formação de ditaduras.

IV – CONCLUSÕES

Assim não cabe ao Congresso Nacional disciplinar sobre temas como a concessão ou não de liminares e pedidos de vista, por exemplo, de ministros, que são matérias interna corporis próprias do regimento interno do tribunal.

Trata-se de uma verdadeira garantia institucional concedida pela Constituição que fixa prerrogativas ao Supremo Tribunal Federal de dispor sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos da Corte.

Fica a palavra do ministro Celso de Mello: “são inconstitucionais as tentativas do Congresso de proibir decisões monocráticas ou revisar decisões da Corte.”

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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