Bruno Vaiano
Superinteressante
Em 2015, a SUPER entrevistou o evolucionista Richard Dawkins — e ele comentou de passagem que um de seus ídolos, o prêmio Nobel Peter Medawar, nasceu no Brasil. Não só nasceu como viveu e estudou em Petrópolis, no Rio de Janeiro, até os 14 anos.
Eu achei essa história muito estranha. Afinal, já virou clichê dizer que o Brasil não tem Nobel. Isso fere nosso orgulho. A Argentina tem Nobel. O Peru tem Nobel. A Colômbia tem Nobel. O Brasil não tem Nobel do mesmo jeito que a Inglaterra não ganha uma Copa desde 1966: padrão Mick Jagger de zica e pé-frio. É um desses fatos inescapáveis da vida.
Uma pesquisa rápida revela o essencial sobre o prodígio mais desconhecido da nação: Medawar era filho de um libanês e uma inglesa. Sua família veio para cá quando o patriarca, sócio de uma empresa inglesa que fabricava próteses e instrumentos de dentista, visitou a capital fluminense para instalar uma filial na rua do Ouvidor. O casal gostou do que viu e ficou por aqui mesmo: eles tiveram quatro filhos, morreram e foram enterrados no Brasil.
Medawar pai não era bobo: apesar de gostar do país tropical, sabia que ter um passaporte inglês não faz mal a ninguém. Registrou suas quatro crias tanto aqui como na terra da rainha Elizabeth. Com 14 anos, o Peter adolescente aproveitou sua dupla cidadania para fazer o colegial na Europa — e como já era um gênio desde cedo, emendou uma graduação em zoologia em Oxford. Coisa fina.
Foi aí que chegou o momento mais temido por muitos adolescentes: o serviço militar. Quando completou 18 anos, Medawar filho não quis interromper os estudos para vir aqui fazer a visita obrigatória ao quartel. E sem o certificado de reservista, ele perdeu a cidadania brasileira. Em 1960, quando saiu o Nobel de medicina em seu nome, ninguém mais lembrava que o laureado tinha passado a infância na região serrana do Rio.
O que leva a outra pergunta: naquela época, não prestar serviço militar era mesmo suficiente para perder a cidadania? Ou Medawar simplesmente optou por não ser mais brasileiro para evitar a dor de cabeça?
Em uma reportagem do Fantástico de 1998 (que você pode ver no YouTube), um advogado afirma que Medawar morreu tão brasileiro quanto nasceu: ficar sem certificado de reservista não é suficiente para ser jogado na sarjeta pela nação.
A Folha também fez uma matéria sobre o assunto em 1996, em que há uma breve análise de um professor de Direito da USP. A conclusão dele foi um pouco diferente: de fato, nenhuma das constituições brasileiras — inclua aí as de 1934 e 1937, que vigoravam quando Medawar estava na faculdade — afirma explicitamente que quem não presta serviço militar fica sem cidadania. Na época, porém, “havia essa interpretação”.
O texto da Folha não dá mais detalhes, mas não é difícil de imaginar o porquê de uma medida tão radical: 1937 marca o início do Estado Novo, a ditadura comandada por Getúlio Vargas. Nessa época, tentar escapar do exército na malandragem certamente não era o melhor jeito de ficar bem na fita com a justiça.
Gerdal Medawar, um primo do biólogo que passou a vida no Brasil, afirma que ele, na verdade, renunciou voluntariamente à cidadania brasileira. O pesquisador simplesmente não quis ter a dor de cabeça de interromper a graduação em Oxford para fazer uma visita arriscada ao quartel — que poderia lhe render um ano longe dos estudos. Como ele já tinha a cidadania britânica, garantida por seus pais, não foi tão difícil assim tomar a decisão.
Os Medawar eram razoavelmente bem relacionados: o padrinho do futuro Nobel era ninguém menos que Salgado Filho, na época ministro do Trabalho. O político pediu pessoalmente a Gaspar Dutra, então ministro da Guerra, que liberasse o afilhado do serviço militar. E ouviu um “não”. Dureza.
Conclusão? Com ou sem cidadania, é pouco provável que Medawar tivesse entrado para a história como um Nobel brasileiro. Ele abraçou seu lado inglês sem olhar para trás, e foi na Inglaterra que ele fez todo seu trabalho.
Por último, para você não ir embora curioso: Medawar ganhou o prêmio por suas pesquisas sobre o sistema imunológico — que permitiram os primeiros transplantes de órgãos e tecidos sem rejeição. Mas ele também foi extremamente importante para a compreensão da seleção natural: em 1952, deu a primeira resposta evolutiva satisfatória para a pergunta “por que nós morremos?” Ficou curioso para saber a reposta? Vai ter que esperar o próximo post, que sai semana que vem aqui no Supernovas.