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O porte de drogas

Por Rogério Tadeu Romano*

Necessário discutir o artigo 28 da Lei de drogas.

Anteriormente a Lei incriminava o usuário como aquele que adquiria drogas, guardava drogas e ou trazia consigo drogas para consumo pessoal. A Lei nº 11.343/2006 configura usuário como aquele que adquiri, guarda, traz consigo, tem em depósito e transporta drogas.

O artigo 28 caput da Lei promoveu um alargamento na incriminação do usuário de drogas. Quanto as condutas de ter em depósito e transportar o tipo penal apresenta a hipótese de novatio legis incriminadora, de forma que somente deverão ser punidos aqueles que praticarem tais condutas a partir de 8 de outubro de 2006.

Adquirir é comprar mediante pagamento. Guardar é armazenar para consumir em curto período de tempo, tomar conta de algo, proteger.

Na modalidade trazer consigo, entende-se o transporte pessoal do tóxico. É conservar a coisa junto à própria pessoa, oculta no corpo, nas vestes, ou de qualquer outro modo ligada ao sujeito. Ter em depósito é ter armazenado suprimento que traga uma ideia de mais perpetuidade, maior quantidade. Transportar é levar de um lugar para outro, em malas, veículos etc.

Há o entendimento de que o artigo 28 da Lei 11.343/06 não afastou o crime de trazer consigo ou adquirir para uso pessoal (antes, uso próprio) da esfera do crime de drogas. Assim não se afastou a criminalidade no fato de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização legal ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Está assim redigido o artigo 28:

Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II – prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

  • 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
  • 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
  • 3o As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
  • 4o Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
  • 5o A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
  • 6o Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I – admoestação verbal;

II – multa.

  • 7o O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

No passado, frente à legislação anterior à Lei nº  6.368/1976, Nelson Hungria(Comentários ao código penal, volume IX, 139) entendia que o viciado não pratica o crime, sendo antes vítima dele.

Para muitos estudiosos o dispositivo em discussão trata de não criminalização.

A sentença que homologa a transação penal tem eficácia declaratória-constitutiva(RT 753/449). Não há falar em condenação penal. Aplicam-se penas alternativas, com medidas restritivas(artigo 28, incisos I, II e III).

Não será caso de aplicação do princípio da insignificância, afastando-se o crime, para os casos de condutas envolvendo consumo pessoal, cultivo, semeadura e coleta de plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

É o que ocorre nos chamados crimes de porte de drogas para uso pessoal, linha esta que deve ser mantida no novo Código Penal. Será hipótese de lavrar um termo circunstanciado, providenciando-se as requisições.

Registre-se que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento de Questão de ordem suscitada nos autos do RE 430.105 QO/RJ, rejeitou as teses de abolitio criminis e infração penal sui generis para o crime previsto no artigo 28 da Lei 11.343/06, afirmando a natureza de crime da conduta perpetrada pelo usuário de drogas, não obstante a despenalização.

Não importa que o acusado não chegue a vender o tóxico, pois trazer consigo já é delito consumado, segundo uma das normas múltiplas contidas no artigo 33 da Lei de Drogas No HC 241.376/SC, Relator Ministro Jorge Mussi, DJe de 5 de setembro de 2012, o Superior Tribunal de Justiça assentou que ¨trazer consigo¨ ou fornecer ainda que gratuitamente substância entorpecente ilícita são núcleos do tipo do delito de tráfico de drogas, crimes de perigo abstrato, de ação múltipla, de conteúdo variado, que se consuma com a prática das hipóteses já referenciadas.

Embora o artigo 28 da Lei 11.323, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, tenha alterado o tratamento penal para o porte de drogas ilícitas para consumo pessoal, substituindo a prisão de seis meses a dois anos pelas penas de advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa obrigatória, a nova legislação manteve o desvalor penal do comportamento, não retirando a natureza delitiva da conduta.

A matéria voltou a ordem do dia com o posicionamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro que considera inconstitucionais todas as prisões de usuários de drogas, matéria que poderá ser objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal em breve, no RE 635659, que tem como Relator o ministro Gilmar Ferreira Mendes.

Em 2013, o defensor público de são Paulo, Leandro de Castro Gomes, recorreu ao Supremo Tribunal Federal da decisão do Colégio Recursal do Juizado Especial de Diadema/SP que condenou réu, naquele processo, a dois meses de prestação de serviço à comunidade, por guardar 3(três) gramas de maconha num único invólucro para consumo próprio.

Para Pier Paolo Bottini, a criminalização do porte de drogas para uso pessoal afronta não só a norma constitucional que protege a intimidade e a vida privada, mas, sobretudo, a que prevê as bases sobre as quais se sustenta todo o modelo político e jurídico nacional; a dignidade da pessoa humana e a pluralidade.

Disse o Professor Bottini:

“Ao criminalizar o porte de droga para uso pessoal, a lei parece afrontar a ideia de dignidade da pessoa humana e de pluralidade, ambas previstas na Constituição Federal (artigo 1º, III e V). A primeira pode ser definida como a capacidade de autodeterminação do ser humano para o desenvolvimento de um mundo de vida autônomo, onde seja possível a reciprocidade. Pluralidade significa a tolerância no mesmo corpo social de diferentes mundos de vida, estilos, ideologias e preferências morais, respeitadas as fronteiras do mundo de vida dos outros.

Os princípios da dignidade e da pluralidade limitam o uso do direito penal como instrumento de controle social ou de promoção de valores funcionais. Em sendo esta a faceta mais grave e violenta da manifestação estatal, sua incidência se restringe à punição de comportamentos que violem esta liberdade de autodeterminação do indivíduo, que maculem este espaço de criação do mundo de vida.

Nesse sentido, a definição do espaço de legitimidade do direito penal exige do intérprete da Constituição o reconhecimento de que comportamentos praticados dentro do espaço de autodeterminação do indivíduo, sem repercussão para terceiros — ou seja, que não afetem a dignidade de outros membros do corpo social — não têm relevância penal.

Com base nessa assertiva, são estranhos ao direito penal comportamentos religiosos, sexuais, ideológicos, ínsitos à liberdade individual, que possam ser praticados com reciprocidade, ou seja, cujo exercício mútuo seja possível por todos os demais membros da sociedade. Em suma, que não afetem a autodeterminação de outros componentes do corpo social. Não por acaso, a criminalização do homossexualismo, da opção religiosa, do incesto, são rechaçadas pelo direito penal brasileiro, e duramente criticadas — quando presentes — nas legislações estrangeiras.

Como ensina ROXIN, “la protección de normas morales, religiosas o ideológicas, cuya vulneración no tenga repercusiones sociales, no pertenece em absoluto a los cometidos del Estado democrático de Derecho, que por el contrario también debe proteger las concepciones discrepantes de las minorias y su puesta em práctica”.

Nesse contexto chama a atenção recente decisão da lavra do ministro Celso de Mello.

O ministro Celso de Mello deferiu o pedido de habeas corpus de uma mulher que comprou pela internet 26 sementes de maconha da Holanda. Patrícia Scheffer Schlumberger foi denunciada pelo Ministério Público Federal por tráfico de drogas por ter importado as sementes ‘através de remessa postal internacional, sem autorização legal ou regulamentar’.

A defesa de Patrícia apresentou o pedido no Supremo para restabelecer uma decisão de primeira instância que rejeitou a denúncia contra ela.

A Justiça de São Paulo havia reconhecido ‘atipicidade de conduta’ avaliando que a semente de Cannabis ‘não é matéria prima para a droga, e sim a planta’, sendo necessário o cultivo das sementes para se obter a droga.

Ao analisar o caso, o Tribunal Regional Federal da 3.ª Região (TRF-3) reformou a decisão e determinou o recebimento da denúncia contra Patrícia.

No Superior Tribunal de Justiça, os ministros da Quinta Turma reforçaram a decisão e negaram recurso da mulher, sob o entendimento de que ‘a importação de semestres de maconha é classificada como tráfico de drogas’.

A defesa de Patrícia argumenta que as sementes de Cannabis e seu óleo, como indicado por um manual da United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), não contém a substância psicotrópica tetrahidrocanabinol (TCH), de uso proscrito no Brasil.

O pedido de habeas corpus destaca ainda que o laudo pericial confirmou que as sementes apreendidas não apresentavam a substância química.

Em sua decisão, Celso de Mello destacou que a conclusão pericial do laudo de exame toxicológico é essencial para o caso. Segundo o ministro, se o laudo atestar a ausência do princípio ativo, as sementes serão consideradas inócuas e ‘penalmente indiferentes’.

A ‘mera importação ‘ ou ‘simples posse’ de sementes de ‘Cannabis’ não se qualificam como ‘fatores revestidos de tipicidade penal’, apontou o decano.

“Por não conterem o TCH, as sementes não produzem dependência física e/ou psíquica, não constituindo elementos caracterizadores de matéria-prima para a produção de drogas”, diz Celso de Mello.

Os ministros Edson Fachin, que apresentou voto-vista, e o ministro Luís Roberto Barroso, votaram, ambos pela descriminalização do porte de maconha para consumo próprio, julgando inconstitucional o artigo 28.

O relator do caso, ministro Gilmar Mendes também já votou pela inconstitucionalidade do dispositivo entendendo que ele viola o princípio da proporcionalidade. Para o ministro, a punição do usuário é desproporcional, ineficaz no combate às drogas, e ofende o direito constitucional à personalidade. Em seu voto, no entanto, o ministro afastou apenas os efeitos penais da conduta, mantendo, “até o advento de legislação específica”, as punições de ordem administrativa (multa).

Destaco os principais trechos do voto do ministro Fachin:

  1. i) Declarar a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343, sem redução de texto, específica para situação que, tal como se deu no caso concreto, apresente conduta que descrita no tipo legal tiver exclusivamente como objeto material a droga aqui em pauta;

(ii) Manter, nos termos da atual legislação e regulamento, a proibição inclusive do uso e do porte para consumo pessoal de todas as demais drogas ilícitas;

(iii) Manter a tipificação criminal das condutas relacionadas à produção e à comercialização da droga objeto do presente recurso (maconha) e concomitantemente declarar neste ato a inconstitucionalidade progressiva dessa tipificação das condutas relacionadas à produção e à comercialização da droga objeto do presente recurso (maconha) até que sobrevenha a devida regulamentação legislativa, permanecendo nesse ínterim hígidas as tipificações constantes do título IV, especialmente criminais do art. 33, e dispositivos conexos da Lei 11.343;

(iv) Declarar como atribuição legislativa o estabelecimento de quantidades mínimas que sirvam de parâmetro para diferenciar usuário e traficante, e determinar aos órgãos do Poder Executivo, nominados neste voto (SENAD e CNPCP), aos quais incumbem a elaboração e a execução de políticas públicas sobre drogas, que exerçam suas competências e até que sobrevenha a legislação específica, emitam, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, a contar da data deste julgamento, provisórios parâmetros diferenciadores indicativos para serem considerados iuris tantum no caso concreto;

(v) Absolver o recorrente por atipicidade da conduta, nos termos do art. 386, III, do Código de Processo Penal.

(vi) E por derradeiro, em face do interesse público relevante, por entender necessária, inclusive no âmbito do STF, a manutenção e ampliação do debate com pessoas e entidades portadoras de experiência e autoridade nesta matéria, propor ao Plenário, nos termos do inciso V do artigo 7o do RISTF, a criação de um Observatório Judicial sobre Drogas na forma de comissão temporária, a ser designada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, para o fim de, à luz do inciso III do artigo 30 do RISTF, acompanhar os efeitos da deliberação deste Tribunal neste caso, especialmente em relação à diferenciação entre usuário e traficante, e à necessária regulamentação, bem como auscultar instituições, estudiosos, pesquisadores, cientistas, médicos, psiquiatras, psicólogos, comunidades terapêuticas, representantes de órgãos governamentais, membros de comunidades tradicionais, entidades de todas as crenças, entre outros, e apresentar relato na forma de subsídio e sistematização.

Por sua vez, o ministro Barroso declarou inconstitucional o artigo 28 da lei 11.343/06 quando aplicado à maconha, sem qualquer juízo de valor as outras drogas, e o parágrafo 1º do referido artigo, validando a produção limitada de até seis plantas, assim como é feito no Uruguai, até que o congresso nacional se pronuncie sobre a questão.

O ministro estabeleceu também um critério distintivo entre consumo e tráfico. De acordo com seu voto, consiste na presunção de inexistência de tráfico a posse de 25 gramas de maconha. Contudo, Barroso afirmou que a quantidade é mera referência, não impedindo o juiz do caso concreto de valorar os elementos para dizer que é caso de uso próprio mesmo a quantidade sendo maior ou que entende que exista tráfico mesmo a quantidade seja menor, hipótese que, segundo o ministro, o ônus argumentativo do juiz será aumentado.

Como informou o site Migalhas, que noticiou aquele julgamento, o ministro Barroso destacou que Independente da criminalização ou não, os ministros precisavam estabelecer um critério mínimo para que se diferencie o consumo pessoal do tráfico. Para ele, é a má distinção entre usuários e traficantes que faz com que com as mesmas quantidades, nos bairros abastados, os usuários sejam considerados usuários e nos bairros pobres os considerados como traficantes. “Há um impacto desproporcionalmente discriminatório.”

O ministro Alexandre de Moraes, por sua vez, propôs que sejam presumidas como usuárias as pessoas flagradas com 25g a 60g de maconha ou que tenham seis plantas fêmeas. Ele chegou a esses números a partir de levantamento que realizou sobre o volume médio de apreensão de drogas no Estado de São Paulo, entre 2006 e 2017. O estudo foi realizado em conjunto com a Associação Brasileira de Jurimetria e abrangeu mais de 1,2 milhão de ocorrências com drogas. Ele propôs que a autoridade policial não ficaria impedida de realizar a prisão em flagrante por tráfico quando a quantidade de maconha for inferior ao limite. Entretanto, é necessário comprovar a presença de outros critérios caracterizadores do tráfico, como a forma de acondicionamento da droga, a diversidade de entorpecentes e a apreensão de instrumentos e celulares com contatos, por exemplo. Da mesma forma, nas prisões em flagrante por quantidades superiores, o juiz, na audiência de custódia, deverá dar ao preso a possibilidade de comprovar que é usuário, como bem sintetizou o site de notícias do STF.

Diante desses argumentos apresentados o ministro Gilmar Mendes, pediu o adiamento do julgamento para construir uma solução consensual, diante dos novos argumentos e da mudança das circunstâncias desde 2015, quando apresentou seu voto, como a implementação das audiências de custódia. Inicialmente ele votou para descriminalizar todas as drogas para uso próprio.

A questão é tema de saúde pública, devendo ter a devida atenção da sociedade.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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