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Crônica

Muito barulho por lucro

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Primeiro foi com Bond, James Bond. Como anotei dia desses, este ano, em que comemoramos o septuagésimo aniversário do Agente 007, os herdeiros do escritor britânico Ian Fleming (1908-1964), que guardam os seus direitos autorais, decidiram publicar novas edições dos livros de Bond expurgando a linguagem dita racista e, por conseguinte, ofensiva a muitos leitores contemporâneos. Um expurgo suave foi prometido pela família/editores, para ficar o mais próximo possível do original e da época em que os romances foram escritos e originalmente publicados.

O mesmo se dá agora com as investigações de Hercule Poirot e Miss Marple, os famosos detetives da minha amiga Agatha Christie (1890-1976), celebrada como a “Rainha do Crime”. Vi isso quando dei de cara com a manchete do caderno Style da CNN americana: “Agatha Christie’s classic detective novels edited to remove potentially offensive language”. A CNN, por sua vez, já faz referência a uma manchete/matéria até mais assertiva do britânico The Telegraph: “Agatha Christie classics latest to be rewritten for modern sensitivities”.

Não é a primeira vez que minha amiga Agatha passa por esse tipo de constrangimento. Já expliquei aqui o problema com o clássico “Ten Little Niggers” (“O caso dos dez negrinhos”, 1939), que teve de mudar de título algumas vezes, para “Ten Little Indians”, “The Nursery Rhyme Murders” e “And Then There Were None”. Mas agora essas mudanças foram mais generalizadas.

Os romances de Agatha Christie datam de 1920 a 1976, iniciando com “The Mysterious Affair at Styles” (1920) e fechando a conta com “Curtain: Poirot’s Last Case” (1975) e “Sleeping Murder”, este o “último caso” de Miss Marple, publicado já postumamente. Segundo as matérias da CNN (autoria de Toyin Owoseje) e de The Telegraph (por Craig Simpson), logo em “The Mysterious Affair at Styles”, a descrição de Poirot sobre outra personagem como “um judeu, claro” foi retirada da nova versão. Já por toda a edição revisada da coleção de contos “Miss Marple’s Final Cases and Two Other Stories”, a palavra “nativo” foi substituída por “local”, e um trecho descrevendo um empregado de casa como “negro” e “sorridente” foi revisada e essa personagem é agora simplesmente referida como obediente/prestativo, sem qualquer alusão à sua raça. E no romance “Death on the Nile”, de 1937, referências ao “povo núbio” foram removidas ao longo de toda a obra. Esses são apenas alguns exemplos da coisa.

Reitero aqui que acho essa preocupação com a linguagem ofensiva válida. Importantíssima. Mas também ressalto minha preocupação com os exageros que podem aí ser cometidos. Que vão desde a alteração do original em si, para melhor ou para pior (sei lá), mas que podem descaracterizar a obra “bulida”. Há sempre editores buliçosos demais, é fato. Até a questão fundamental pertinente à liberdade de expressão, podendo-se cair na censura ou no banimento da obra/autor, ou no tal “cancelamento” como se diz hoje, por motivações políticas, religiosas, sexuais e sociais, a partir do gosto da turma de plantão.

Todavia, os casos seguidos de James Bond/Ian Fleming e de Hercule Poirot/Miss Marple/Agatha Christie, figuras tão badaladas, que vendem aos tubos e arrecadam milhões de libras esterlinas, tanto no papel como no cinema e na TV, com suas novas edições expurgadas, me fizeram pensar em uma novel explicação para o sucedido.

Não vou desmerecer o motivo nobre de se remover a linguagem literária potencialmente ofensiva em respeito a padrões civilizatórios mais elevados e escorreitos. Pode ser. Deve ser isso. Tenho fé na humanidade. Mas também acredito em motivos mais terrenos (mais “pé no chão”, como se diz). Há todo um mercado de “mentalidades mais sensíveis”. Pode-se vender a esse mercado mais livros, até porque é uma edição “diferente”. Ademais, o politicamente correto normalmente gera um engajamento positivo, um marketing positivo, isso é fato. Por fim, mesmo o engajamento neutro ou até negativo causa barulho. Traz Fleming e Christie à ribalta novamente (se é que eles estiveram um dia de fora). Com mais intensidade certamente. Debate, barulho, no caso da literatura, do cinema e da TV, gera marketing espontâneo e vendas. Com mais ganho, seguramente. O mercado – e o editorial não foge à regra – é bom, bruto e sabido.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Crônica

Um Bond alternativo

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Comemoramos em 2023 os 70 anos de Bond, James Bond. De fato, foi em 1953, em plena Guerra Fria, que o escritor britânico Ian Fleming (1908-1964) nos apresentou o seu agente secreto 007 – que se tornou “nosso”, de todos os amantes das letras e, sobretudo, do cinema. “Cassino Royale” é o romance de estreia, embora não seja o primeiro título a rolar na grande tela. No cinema, a primazia fica com “Dr. No”, filme de 1962, baseado em romance homônimo de 1958.

Para celebrar a data, os herdeiros de Ian Fleming, que ainda guardam os seus direitos autorais, decidiram publicar novas edições dos livros de Bond, cujo cânone é composto por doze romances e dois livros de contos. Maravilha! Em princípio…

O problema, como informa Christine Lehnen, da Deutsche Welle, em artigo publicado em várias mídias do país (G1, Uol e até num certo O Sul, que não conhecia até ser apresentado por um amigo leitor voraz), é que essas novas edições virão um tiquinho diferente. A linguagem considerada racista – e, por conseguinte, ofensiva – será expurgada das páginas de Fleming. Um expurgo suave, prometem família/editores, ficando tudo o mais próximo possível do original e da época em que os romances foram escritos e originalmente publicados. Maravilha! Em princípio…

De fato, a coisa – falo dos expurgos realizados nas novas edições – já gerou debates.

Primeiramente, há a questão em si da alteração do original. Se para pior ou para melhor (e acredito que a intenção aqui foi “melhorar” o texto), o fato é que “buliram” no texto de Fleming. Texto esse que deve sempre ser lido e sopesado – e criticado, por óbvio – levando em consideração as circunstâncias da época.

Ademais, no Reino Unido, fala-se até em censura à obra de Fleming. Não acho que seja tecnicamente o caso, afinal as demais edições dos romances de James Bond, inúmeras, fiéis aos originais, continuarão a circular por lá, produzidas, vendidas, emprestadas e lidas, como de praxe. A nova edição de que falamos é apenas um Bond alternativo.

De toda sorte, Christine Lehnen nos traz uma observação bastante interessante sob o ponto de vista do tratamento igualitário às demais visões de mundo: “Enquanto para alguns as mudanças planejadas vão longe demais, para outros elas não são suficientes. O jornal britânico Independent apontou que, embora a representação de pessoas negras seja alterada, a linguagem condescendente em relação às figuras do leste asiático e da Coreia permaneceria. Descrições misóginas e homofóbicas também continuam no romance, informou o jornal britânico Daily Telegraph, incluindo comentários como ‘o doce cheiro de estupro’ ou a descrição da homossexualidade como uma ‘deficiência teimosa’”. E há ainda coisas mais sutis, como o sex appeal de Bond, visivelmente dominante (ou mesmo sexista) em relação às mulheres – em especial para com as belíssimas Bond Girls –, que, devemos assumir, faz parte do seu “charme” e que seria muito difícil de se expurgar da obra sem desnaturar a própria coisa.

O Reino Unido tem dessas coisas. Eu mesmo já fui “vítima” de uma espécie de pegadinha na busca por um dos títulos mais famosos da minha amiga Agatha Christie (1890-1976), “Ten Little Niggers”, de 1939, cujo versão em português, lida na minha adolescência, chama-se “O caso dos dez negrinhos”. Ele ganhou ares de obra polêmica em tempos do politicamente correto. A questão aqui está mais no título, é verdade, e menos no seu conteúdo, que também teve de ser ligeiramente alterado, o que causou a indignação dos defensores da liberdade de expressão. Inspirado em antiga canção inglesa/americana, o título foi considerado racialmente ofensivo e teve de ser mudado (sob pena de não ser mais indicado em escolas, universidades, etc.), primeiramente, nos EUA e, em seguida, no Reino Unido, para “And Then There Were None” (tendo sido ainda adotados os títulos “Ten Little Indians” e “The Nursery Rhyme Murders”).

Na verdade, acho que o mundo inteiro (o mundo ocidental, pelo menos) tem dessas coisas em tempos do politicamente correto. Acho uma preocupação válida. Crucial, aliás. Mas também perigosa se tratada sem cuidado. Afinal, como alertado em “120 Banned Books: Censorship Histories of World Literature” (Checkmark Books, 2011), de Nicholas J. Karolides, Margaret Bald e Dawn B. Sova, “por séculos, livros têm sido banidos, suprimidos e censurados por razões políticas, religiosas, sexuais e sociais, segundo os gostos e as crenças de uma era particular ou de uma localidade”. E isso é bem mais do que perigoso.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.