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Um poder armado

Por Rogério Tadeu Romano*

Segundo o Estadão, em sua edição de 2 de agosto do corrente ano, a Câmara pode votar projeto que retira dos governadores poder e controle sobre o comando das polícias militares. O texto prevê adoção de uma lista tríplice na escolha dos comandantes-gerais, confere a eles mandato de dois anos e dá autonomia orçamentária às corporações. A tendência é de aprovação da proposta. Em junho, o presidente Jair Bolsonaro (PL) recebeu parlamentares da Comissão de Segurança Pública e entidades representativas de policiais, que defenderam a aprovação de uma nova lei orgânica para as polícias. O governo acompanhou a preparação do projeto e fez sugestões. Uma tentativa de aprovar o projeto já havia ocorrido no ano passado, mas sofreu oposição dos governadores. A bancada da bala retomou o tema e apressou a tramitação.

O projeto acima, mais ainda, é clara evidência do processo de politização dos policiais nos Estados cada vez mais voltados para o atual governo.

Trata-se de um “projeto de ditadura policial-militar”.

Fala-se em um poder paralelo que representa um grave perigo para a democracia.

Querem um poder armado em um verdadeiro arroubo autoritário, fora dos limites democráticos.

O projeto é uma afronta ao princípio federalista, cláusula pétrea da atual Constituição (artigo 60, parágrafo quarto, inciso I, da CF).

É taxativo o artigo 144 da Constituição:

“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, sob a égide dos valores da cidadania e dos direitos humanos, através dos órgãos instituídos pela União e pelos Estados.

Disse bem Uadi Lammêgo Bulos (Constituição federal anotada, 6ª edição, pág. 1.175) a ordem pública interna é o inverno da desordem, do caos, da desarmonia social, porque visa preservar a incolumidade da pessoa e do patrimônio.

Nessa linha de pensar Paolo Barile (Il soggeto privato nella constituzione italiana, 1953, pág. 117) associou a ideia de ordem pública a uma situação de pacífica convivência social, distante das ameaças de violências ou sublevação que podem gerar, inclusive, a curto prazo, a prática de delitos.

Mas, ainda alertou Lammêgo Bulos (obra citada) como a convivência harmônica reclama a preservação dos direitos e garantias fundamentais é necessário existir uma atividade constante de vigilância, preservação e repressão de condutas delituosas.

Ora, os graves acontecimentos do Ceará, há pouco tempo, de sublevação da polícia militar daquele Estado são um sério aviso à sociedade dos perigos de uma classe que está e é armada em atenção aos interesses da sociedade, se voltar a interesses particulares e de índole e de ideologia política.

A polícia serve à sociedade e não a grupos ideológico, quebrando a hierarquia e a organização militar.

O envolvimento de setores da segurança pública na história com milícias de extrema direita é um fenômeno histórico.

Os camisas-negras foram organizados por Benito Mussolini como uma violenta ferramenta militar do seu movimento político. Os fundadores foram intelectuais nacionalistas, ex-oficiais militares, membros especiais dos Arditi e jovens latifundiários que se opunham aos sindicatos de trabalhadores e camponeses do meio rural. Seus métodos tornaram-se cada vez mais violentos a medida que o poder de Mussolini aumentava, e usaram da violência, intimidação e assassinatos contra opositores políticos e sociais. Entre seus componentes, que formavam um grupo muito heterogêneo, incluíam-se criminosos e oportunistas em busca da fortuna fácil.

Na Alemanha nazista havia os chamados camisas pardas.

Ambos eram grupos paramilitares constituídos para a defesa do regime.

O problema persiste nos dias de hoje.

As forças de segurança da Alemanha registraram mais de 1.400 casos suspeitos de extremismo de direita entre policiais, militares e integrantes dos organismos de inteligência nos três anos entre janeiro de 2017 e março de 2020, de acordo com um relatório divulgado em junho de 2020, o primeiro em 30 anos que busca mapear oficialmente essa infiltração.

Segundo revelou Marcelo Godoy, no site do Estadão, em 11 de janeiro de 2021, “no Brasil, a infiltração da extrema-direita nas forças policiais e nas Forças Armadas é promovida pelo bolsonarismo. O guru Olavo de Carvalho ofereceu seus cursos online de graça a policiais e a militares. Enquanto alguns militares ainda se preocupam com movimentos sociais e organizações não governamentais, os quartéis são invadidos a partir da base pelo radicalismo bolsonarista, primo-irmão do extremismo trumpista. Em São Paulo, as polícias mantêm um acompanhamento da ação de grupos de ódio e de extremistas. A Polícia Civil, por meio de uma delegacia, e a PM pelo Departamento Político de seu Serviço de Inteligência.”

Esse envolvimento perigoso pode arrastar o país para uma aventura de extrema-direita.

Ultimamente tem sido marcante o comparecimento do atual presidente a cerimônias de graduação de policiais no Brasil.

As policias militares não podem escolher um lado ideológico.

Ora, as polícias estaduais são responsáveis pelo exercício das funções de segurança pública e de polícia judiciária: a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros.

À polícia civil, dirigida por delegado de carreira, em cada Estado, incumbe as funções de polícia judiciária, e a apuração de infrações penais, exceto: as de competência da polícia federal no âmbito restrito determinado na Constituição; b) as militares.

À polícia militar, em cada Estado, cabe a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública, enquanto ao corpo de bombeiros militar de cada Estado compete, além de outras definidas em lei, como a de prevenção e debelação de incêndios, a execução de atividades de defesa civil. Essas polícias militarizadas dos Estados são consideradas forças auxiliares do Exército e se subordinam, juntamente com as policias civis, aos Governadores dos Estado, do Distrito Federal e dos Territórios.

As polícias civis e militares do Distrito Federal e dos Territórios são, porém, organizadas e mantidas pela União (artigo 21, XIV), mas as dos Estados são por estes organizadas e mantidas, obedecidas, no entanto, normas gerais federais previstas nos artigos 22, XXI, e 24, XVI, sobre a organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e dos corpos de bombeiros, e sobre a organização, garantias, direitos e deveres das policias civis. Estas últimas, pela primeira vez, ficam submetidas a normas gerais federais, sem qualquer justificativa para tanto, a não ser meros interesses corporativos que fizeram introduzir tais dispositivos na Constituição.

É o que se lê da lição de José Afonso da Silva (Direito Constitucional Positivo, 5ª edição, páginas 651 e seguintes).

Essa preocupação se manifesta, inclusive, no campo dos projetos de lei.

Como informou o Estadão, em sua edição de 11 de janeiro do corrente ano, há um Modelo defendido por aliados de Bolsonaro que propõe criação de patentes e de Conselho de Polícia Civil ligado à União, além de mandatos para comandantes.

Segundo se lê, o Congresso se prepara para votar dois projetos de lei orgânica das polícias civil e militar que restringem o poder de governadores sobre braços armados dos Estados e do Distrito Federal. As propostas trazem mudanças na estrutura das polícias, como a criação da patente de general, hoje exclusiva das Forças Armadas, para PMS, e de um Conselho Nacional de Polícia Civil ligado à União. O novo modelo é defendido por aliados do governo no momento em que o presidente Jair Bolsonaro endurece o discurso da segurança pública para alavancar sua popularidade na segunda metade do mandato.

No caso da Polícia Militar, a sugestão é para que a nomeação do comandante saia de lista tríplice indicada por oficiais e a destituição, por iniciativa do governador, seja justificada por motivo relevante e comprovado. Na Polícia Civil, o delegado-geral poderá ser escolhido diretamente pelo governador, mas a dispensa “fundamentada” precisa ser ratificada pela Assembleia Legislativa ou Câmara Distrital, em votação por maioria absoluta.

Em síntese, entre as mudanças estão a que cria uma lista tríplice para a escolha de comandantes-gerais e a que obriga o governador a justificar a exoneração de um comandante-geral. Hoje, os governadores podem destituir os comandantes sem justificativas. Segundo o relator da matéria, deputado Capitão Augusto (PL-SP), no final do ano, líderes de bancadas assinaram um requerimento de urgência para que a matéria seja votada ainda neste semestre.

São projetos apoiados pela chamada “bancada da bala”.

Certamente, haverá um poder paralelo que superará aquele dos respectivos Estados membros, colocando nas mãos do Executivo federal, as principais decisões corporativas policiais.

Se houver um projeto que defenda a tomada de poder pela força, semelhante àquele que já existiu na história e é visto com preocupação em Nações como a alemã, essa infiltração é deveras perigosa.

O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, disse ao Estadão que os projetos de lei que tiram poder de governadores sobre polícias são um “retrocesso inaceitável”. Uma das vozes mais contundentes do cenário nacional em defesa da Constituição e das liberdades individuais, o ex-decano do Supremo abriu mão do silêncio que marca sua postura desde a aposentadoria, em outubro do ano passado, para criticar a proposta que prevê mandato de dois anos para os comandantes-gerais e delegados-gerais e impõe condições para que eles sejam exonerados antes do prazo.

“A padronização nacional dos organismos policiais estaduais, com expressiva redução do poder e competência dos Estados-membros, se implementada, traduzirá um ato de inaceitável transgressão ao princípio federativo”, disse Celso de Mello à reportagem. “Não se pode ignorar que a autonomia dos Estados-membros representa, em nosso sistema constitucional, uma das pedras angulares do modelo institucional da Federação. Qualquer proposição legislativa que tenda à centralização em torno da União Federal, com a consequente minimização da autonomia estadual, significará um retrocesso inaceitável em termos de organização federativa.”.

O que quero dizer é que estaríamos diante de uma afronta a uma cláusula pétrea. Uma agressão a uma garantia institucional.

A garantia institucional não pode deixar de ser a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais, providos de um componente institucional que os caracteriza. Temos uma garantia contra o Estado e não através do Estado. Estamos diante de uma garantia especial a determinadas instituições, como dizia Karl Schmitt. A vitaliciedade é uma garantia constitucional que protege o Judiciário e o Ministério Público e sua perda enfoca a instituição. Ora, se assim é a garantia institucional na medida em que assegura a permanência da instituição, embaraçando a eventual supressão ou mutilação, preservando um mínimo de essencialidade, um cerne que não deve ser atingido ou violado, não se pode conceber o perecimento desse ente protegido.

J.H. Meirelles Teixeira prefere chamar de direitos subjetivos, uma vez que eles configuram verdadeiros direitos subjetivos. Tais direitos se configuram quando a Constituição garante a existência de instituições, de institutos, de princípios jurídicos, a permanência de certas situações de fato. São características desses princípios, consoante apontados por Karl Schmitt: a) são, por sua essência, limitados, somente existem dentro do Estado, afetando uma instituição juridicamente reconhecida; b) a proteção jurídico‐constitucional visa justamente esse círculo de relações, ou de fins; c) existem dentro do Estado, não antes ou acima dele; d) o seu conteúdo lhe é dado pela Constituição. Penso que a Constituição não deixa margem de mudança dos direitos institucionais, garantias institucionais, por emenda constitucional, e muito mais ainda por lei ordinária. As garantias institucionais, direitos institucionais, constituem direitos fundamentais.

*É procurador da República aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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Bolsonaro é um ditador em potencial

Bolsonaro ameaça a democracia (Foto: Adriano Machado/REUTERS)

Já se tornou clichê escrever sobre o processo político atual no Brasil citando o livro “Como as Democracias Morrem”, mas o que estamos vendo em curso no país é exatamente o que é descrito na obra de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.

O processo de ruptura das democracias passa pela quebra das regras não escritas da democracia e o presidente Jair Bolsonaro quebrou várias delas e pelo menos duas criaram as condições para que ele flerte diariamente com o golpismo: 1) o fim da nomeação do procurador-geral da república a partir de uma lista de tríplice elaborada numa eleição entre seus pares; 2) o não envolvimento dos militares na política.

Nada disso está escrito em lei, mas eram ritos fundamentais da nossa democracia.

Outro ponto descrito na obra é a omissão das instituições democráticas e das elites. Tudo isso aconteceu sem grandes reações de quem tem poder e influência para conter os arroubos do presidente.

Quem leu este livro sabe que o roteiro está sendo escrito à risca. Naturalizamos o retorno dos militares à política quase que nos moldes do pré-1964. Aceitamos, porque a lei permite, o retrocesso no modelo de nomeações da PGR. O resultado é que hoje Bolsonaro se sente protegido para atacar diariamente a democracia porque tem um procurador-geral submisso e a parceria das forças armadas.

Isso sempre foi uma possibilidade real. Bolsonaro pode ser acusado de tudo, menos de ter nos enganado neste aspecto. Ele sempre deixou seus desejos golpistas expostos e muitos que acreditavam em lendas como “kit gay” não foram capazes de perceber o que realmente estava diante de si.

Hoje teremos um espetáculo deprimente da presença de tanques de guerra na porta do Palácio do Planalto durante a votação na Câmara dos Deputados da proposta do voto impresso. Diga-se de passagem, a apreciação nem deveria acontecer em plenário. É que em outra regra não escrita de nossa tradição democráticas propostas rejeitadas em comissões especiais não são levadas ao plenário.

A Marinha e o Ministério da Defesa alegam que a Operação Formosa é realizada desde 1988, mas esta é uma meia verdade. A operação nunca fez parte da rotina política do país, nunca entrou no coração do poder em Brasília e nunca coincidiu com o momento de uma votação de uma matéria de interesse do presidente.

Ignorar isso é coisa para fanático ou burro. Se bem que fanatismo e burrice estão sempre de mãos dadas.

Há quem diga que Bolsonaro apela aos tanques por estar enfraquecido politicamente, mas são justamente os fracos que apelam ao uso da força na política. Se os militares tivesse força para derrotar João Goulart no voto eles não teria dado um golpe de estado.

E foi justamente num dos últimos capítulos da ditadura militar que tivemos tanques circulando nas ruas de Brasília em dia votação importante. Era justamente o General Newton Cruz, um dos ídolos de Bolsonaro, quem estava liderando a intimidação contra os deputados que votavam a Emenda Dante de Oliveira que visava devolver pela via institucional aquilo que os militares nos tiraram pela força das armas: o direito de votar para presidente.

A população duvidar de um processo golpista quando ele está no curso também está no roteiro dos golpes que se impõe na força. João Goulart tinha certeza que não seria apeado do poder se confiando num dispositivo militar que lhe apoiava.

Aqui recorro a outro livro fundamental para entender os problemas de hoje: “O Povo Contra a Democracia” de Yascha Mounk que mostra ser fundamental para o golpista ter uma parcela da sociedade que não tem apreço pelos valores democráticos e não Brasil não falta esse ingrediente dos ressentidos que Bolsonaro acalenta todos os dias.

Não sei se tudo isso ainda é suficiente para ter golpe que se consolide. Bolsonaro tem o apoio dos militares? Acho que tem. Os militares nunca adotaram publicamente uma postura decente contra o golpismo do presidente. Ele tem o apoio do “centrão”? Para reformas antipovo creio que sim, mas para derrubar a democracia é outra história. E as elites empresariais? Tenho minhas dúvidas sobre o real apreço à democracia no baronato nacional.

O grande entrave a meu ver é a conjuntura internacional.

Bolsonaro teme as eleições, teme sair do poder derrotado por Lula, teme sofrer um impeachment, teme que ele ou os filhos sejam presos…

É do seu medo e da sua fraqueza política que emerge o desejo de dar um golpe de estado empurrando o Brasil num caos maior.

Temos um presidente que tem na democracia a sua maior adversária e por isso ele é um ditador em potencial.