Categorias
Artigo

Trambique das arábias

Por Dão Real Pereira dos Santos*

A expressão “das arábias” significa coisa fora do comum, extravagante, conceito que combina muito bem com o que estamos verificando ultimamente. Tem muita coisa ainda para ser esclarecida neste escândalo da venda das joias envolvendo militares de alta patente do Exército e da Marinha, aeronaves da FAB, o advogado do ex-presidente e o próprio ex-presidente da República. Que esse episódio é extravagante, não há nenhuma dúvida.

As notícias que circulam mostram que pelo menos quatro conjuntos de joias teriam sido oferecidos à venda e que três deles teriam sido vendidos. O valor dessas operações pode ultrapassar a R$ 1 milhão, segundo noticiários. Um desses conjuntos, composto por uma caneta, um par de abotoaduras, um rosário árabe e um relógio, teria sido oferecido por US$ 50 mil em uma casa de leilões.

A intenção não é repetir o que já está sendo exaustivamente noticiado, mas tentar esclarecer a dimensão desse imbróglio, para que esse assunto não seja banalizado nem normalizado como se fosse apenas mais uma trapalhada do ex-presidente e de sua família.

Os fatos, se confirmados, são gravíssimos. A primeira questão que devemos ter em conta é sobre o porquê de tantas joias terem sido presenteadas ao ex-presidente e a sua esposa pelo ditador da Arábia Saudita. Membros do governo Bolsonaro viajaram 150 vezes para aquele país, em quatro anos. Não está explicado ainda quais seriam as razões para essa rotina tão intensa de viagens internacionais para essa região, principalmente porque o estreitamento de relações diplomáticas e comerciais nunca esteve no campo de interesse nem de preocupações do antigo governo.

Em 2021, um Auditor-Fiscal da Receita Federal apreendeu na Alfândega do Aeroporto Internacional de Guarulhos um conjunto de joias que estava sendo trazido de forma oculta pelo então ministro de Minas e Energia, quando retornava do Oriente Médio. Eram joias avaliadas em R$ 16,5 milhões. Depois da apreensão houve, pelo menos, quatro tentativas de altas autoridades do governo para liberação dessas joias, a última delas praticamente nos últimos dias do governo amplamente noticiado.

Presentes recebidos por chefes de Estado devem ser incorporados ao patrimônio da União. A tentativa de introduzir essas joias no país, de forma clandestina, revela que havia a intenção de não incorporá-las ao patrimônio público, mas de mantê-las no patrimônio pessoal do então presidente da República e sua esposa.

As vendas, que foram agora desvendadas, demonstram com muita clareza que essa era uma prática comum. Ainda que se pudesse cogitar que tais presentes poderiam pertencer ao presidente e não a Presidência, a ocultação da sua importação configura crime contra a Administração Pública, o que nos permite deduzir que aquela antiga declaração do ex-presidente, de que sonegava tudo o que podia, não era apenas força de expressão.

Vamos então aos efeitos dos fatos. Se os bens pertenciam à União, eles foram furtados para serem vendidos. Se pertencessem ao ex-presidente, como alguns alegam, ainda assim, não foram importadas nem exportados de forma regular. Sejam eles da Presidência ou do ex-presidente, foram importados de forma irregular, sem pagamento dos tributos devidos e sem o cumprimento das formalidades exigidas.

Os bens recebidos pelo chefe de Estado em missão internacional poderiam ter sido importados, até mesmo junto à bagagem dos viajantes, e não estariam sujeitos ao pagamento de tributos, mas teriam de ser declarados na chegada com vistas a sua devida incorporação ao patrimônio público.

A não declaração torna a importação totalmente irregular. Segundo a legislação aduaneira esses bens estariam sujeitos à aplicação de pena de perdimento. Pode até parecer um contrassenso, pois esses bens, depois de decretado o perdimento, passariam para o patrimônio da União e poderiam até mesmo ser incorporados à própria Presidência da República. No entanto, a destinação dos bens apreendidos segue ritos próprios e prioridades estabelecidas na legislação, podendo, inclusive, ser doados a museus ou vendidos em leilão, sem prejuízo, obviamente, das penalidades administrativas ou criminais que deveriam ser aplicadas aos infratores.

Como as joias foram vendidas, a pena de perdimento deve ser substituída por uma multa de valor igual ao valor dos bens e, neste caso, devem ser cobrados também os tributos incidentes na importação acrescidos de multa de 150%. Ou seja, em relação às importações destas joias que teriam sido vendidas por um valor estimado de R$ 1 milhão, os responsáveis pela importação estão sujeitos, em tese, a uma autuação fiscal de aproximadamente R$ 2 milhões, sendo R$ 1 milhão de multa administrativa, R$ 400 mil de tributos (o somatório das alíquotas dos tributos federais sobre a importação de joias é de aproximadamente 40%) e R$ 600 mil de multas tributárias.

Os bens vendidos e enviados para o exterior foram exportados também de forma clandestina. O beneficiário dos pagamentos, que, supõe-se, seja o ex-presidente, teria recebido uma renda aproximadamente de R$ 1 milhão, e, provavelmente, não deve tê-la submetido a nenhuma tributação. Assim, considerando uma alíquota efetiva de aproximadamente 25% de Imposto de Renda, estaria sujeito a uma autuação por omissão de rendimentos de aproximadamente R$ 600 mil, correspondente ao imposto mais as multas.

Essa conduta de fazer trambique com as joias importadas, no valor de R$ 1 milhão, custaria ao infrator, por baixo, cerca de R$ 2,6 milhões somente em tributos e multas tributárias e administrativas.

Além disso, essas práticas configuram, em tese, diversos crimes e ilícitos funcionais praticados pelos envolvidos.

A importação irregular é crime de descaminho do artigo 334 do Código Penal. A falta de pagamento dos tributos sobre o rendimento obtido constitui crime contra a ordem tributária, da Lei 8.137, de 1990. O recebimento dos valores cobrados à margem do sistema oficial de câmbio constitui crime contra o Sistema Financeiro, previsto na Lei 7.492, de 1986. A operacionalização dos crimes por diversas pessoas mancomunadas para o mesmo fim, constitui crime de Organização Criminosa da Lei 12.850, de 2013.

A operação internacional com joias pode configurar crime de lavagem de dinheiro, previsto na Lei 9.613, de 1998. Apropriação de bens públicos para proveito próprio ou de terceiros constitui crimes de furto e de peculato, ambos do Código Penal.

Evidentemente que estamos no campo das conjecturas e possibilidades, pois as investigações ainda estão em andamento e não houve nenhum julgamento concluído. No entanto, os fatos noticiados já são demasiadamente graves e, sendo confirmados, suas consequências devem ir muito além de um simples desgaste de imagem ou de reputação pessoal dos agentes envolvidos.

*É auditor fiscal, presidente do Instituto Justiça Fiscal, coordenador da campanha Tributar os Super-Ricos.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

Categorias
Artigo

Chupa, Chopard

Por Paulo Afonso Linhares*

O que difere o “homo sapiens” dos seus ancestrais  primatas certamente é a sua capacidade guiar sua existência por valores que derivam de escolhas valiosas, que se tornam as metáforas das diversas eras das sociedades humanas, aliás, fenômenos  captados pela sensível poética de Archibald MacLeish,  no seu “Methaphor”, quando afirma que “ um mundo termina quando sua metáfora está morta”. Metáforas nada mais são do que valores aceitos e que compõem um arcabouço ético imprescindível à vida social.

Com efeito, uma questão revisitada com frequência cada vez maior refere-se  ao agir dos cidadãos que, ungidos pelo voto popular, ocupam relevantes cargos de gestão ou de controle da máquina público-administrativa.

A estes o “sarrafo” ético-político eleva-se o décuplo daquele exigido dos ditos “mortais comuns”: a ética pública, nas sociedades democráticas, impõe aos agentes políticos padrões de comportamento social bem mais rígidos do que os impostos aos cidadãos comuns. Importante notar, por exemplo, que nas monarquias constitucionais europeias essa ética política atingiu níveis inimagináveis, como a proibição das famílias reais opinar sobre temas políticos, como ocorre, sobretudo, no Reino Unido da Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda.

No entanto, mesmo nas repúblicas em que tem vigência o estado democrático de direito, os ocupantes de cargos políticos relevantes devem pautar-se por padrões ético-jurídicos compatíveis à sua condição. Assim, a um presidente da República, governador de Estado, senador da República, deputado federal ou estadual, prefeito municipal ou vereador, não é admissível conduta pública dissoluta, desregrada, mesmo porque, na gradação política de suas investiduras, se constituem modelos para aqueles que os investiram na condição de agentes políticos.

Assim, alguém que exerce o cargo de chefe de Estado e de governo, a poderosa presidência da República brasileira, pode ser agraciado por ricos presentes dados por autoridades estrangeiras em missões diplomáticas? Não, todos os presentes valiosos e impessoais destinados ao presidente da República Federativa do Brasil são propriedades do Estado brasileiro.

 Essa discussão, posto que aceita pacificamente por décadas, eclodiu quando veio à tona que o governo autocrático da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos haviam presenteado o ex-presidente Jair Bolsonaro e sua esposa com “mimos” de vultosos valores: jóias comercializadas pela casa Suíça Chopard  muito valiosas: o conjunto destinado à então primeira-dama, Michele Bolsonaro, avaliado em 16 milhões de reais; do conjunto milionário destinado a Jair Bolsonaro, só o relógio de pulso  Chopard está avaliado em mais de oitocentos mil reais, ademais de uma caneta de ouro, anel, abotoaduras, um rosário muçulmano, todos igualmente de ouro e cujos valores atingem cifras estratosféricas. A grife suíça Chopard é a mais exclusiva no mundo, na venda de jóias para potentados de todas as estirpes.

Ressalte-se que em sua trajetória conturbada de presidente do Brasil, passou a imagem de que usava um humilde relógio Casio e uma prosaica caneta Bic, além  de comer galeto com farofa que derramava nas vestes…

Hipocrisia populista: os ricos presentes dados pelos potentados árabes entram no Brasil por vias escusas, sem qualquer declaração de que eram presentes para o Estado brasileiro, no objetivo ilícito de burlar as regras especiais que cuidam dessa matéria. O grave é que parte das ricas joias passaram pela Alfândega brasileira, porém, o conjunto mais valioso foi detectado e retido – as joias de Michele Bolsonaro – pela Aduana nacional, escondido numa mochila de subalterno militar que servia ao Ministério das Minas e Energia. Coisa de traficante meia-tigela.

Claro, a essas alturas ninguém sabia que as joias do conjunto masculino, aquelas destinadas ao próprio presidente Bolsonaro por seus parceiros das Arábias, havia passado pela Alfândega e, em seguida, entregues àquele.

As joias mais valiosas – acima dos 16 milhões de reais – destinadas à então primeira-dama, continuaram retidas pelas Receita Federal, a despeito das oito tentativas feitas para liberá-las, inclusive, pelo próprio presidente da República, Jair Bolsonaro.

Por oportuno, ressalte-se as atitudes altivas dos servidores da Receita Federal que não se intimidaram diante dos esbirros autoritários e ilícitos de seus chefes, para manter a custódia das jóias apreendias.

Após a entrada do Tribunal de Contas da União no caso, foi decidido que o ex-presidente Bolsonaro deveria devolver os ricos presentes que recebeu, inclusive, duas armas que lhe foram dadas. Devolveu tudo. Ao menos o que se sabe.

O que Bolsonaro e sua esposa fizeram por merecer tão ricos presente? Certamente, não foram os belos olhos negros e insinuantes de Michele.

Para os sauditas um excelente negócio: algumas (ricas) bugigangas da Chopard pela refinaria de petróleo Landulfo Alves, da Petrobras, na Bahia, comprada por vinte por cento do seu valor na gestão de Jair Bolsonaro.  Michele com seus diamantes eternos e Jair Bolsonaro com relógio, anel, caneta e terço dourados, de milhões de reais.

Chupa, Chopard!

*É advogado, jornalista e professor aposentado da UERN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.