Por Rogério Tadeu Romano*
I – OS FATOS
Apesar de a PF ter apontado crimes no caso, quem tem a atribuição de apresentar uma denúncia contra os acusados ou pedir arquivamento é a Procuradoria-Geral da República (PGR). Como é o titular da ação penal perante o Supremo Tribunal Federal, Aras tem a palavra final sobre a responsabilização de Bolsonaro neste caso. Caberá agora ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes despachar o pedido de arquivamento. A praxe no STF é que, no caso de arquivamento, o ministro siga o parecer da PGR.
A respeito do vazamento, o ex-presidente da corte eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, declarou que “informações sensíveis, que facilitam a atuação criminosa [contra a Justiça Eleitoral], foram divulgadas em rede mundial”.
A PF, em seu relatório naquele inquérito aberto para investigar o fato, apontou a prática de crime de violação de sigilo.
Sobre o fato noticiou o site de notícias do jornal O Globo:
“Aras, entretanto, apresentou uma argumentação diferente da PF. O procurador-geral escreveu que o inquérito divulgado por Bolsonaro não era sigiloso, porque não constava no processo nenhuma decisão do juiz do caso decretando o sigilo. Por isso, na opinião da PGR, a conduta atribuída a Bolsonaro é atípica, ou seja, não configura crime.
Para a PGR, entretanto, esse sigilo só estaria efetivamente caracterizado se o juiz do caso tivesse proferido um despacho determinando o sigilo. “Nesse cenário, a simples aposição de carimbos ou adesivos nos quais se faz referência a suposto sigilo da investigação não é suficiente para caracterizar a tramitação reservada. O registro de sigilo no protocolo de cadastramento (‘Segredo de Justiça? Sim’) do inquérito policial no PJe, por ocasião de sua remessa à Justiça Federal, da mesma forma, é inapto, por si só, para caracterizar o regime de segredo”, escreveu Aras.
A PGR citou ainda a existência de uma instrução normativa interna da PF que diz que o delegado “requererá ao juízo a decretação de segredo de Justiça” no caso de investigações sigilosas. “O parágrafo único do dispositivo demonstra ser a tramitação em regime de sigilo externo do inquérito policial hipótese excepcional, condicionada à autorização de requerimento nesse sentido pelo juiz natural e à demonstração fundamentada da necessidade do segredo a partir das situações descritas”, escreveu a PGR.
Por entender que não se tratava de um documento sigiloso, Aras afirma que, sem que houvesse a “limitação de publicidade” do inquérito, “não há como atribuir aos investigados nem a prática do crime de divulgação de segredo nem o de violação de sigilo funcional”.”
II – O ARTIGO 153 DO CP
Tem-se do artigo 153 do Código Penal:
Art. 153 – Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa, de trezentos mil réis a dois contos de réis. (Vide Lei nº 7.209, de 1984)
Parágrafo único – Somente se procede mediante representação.
(Revogado)
- 1º Somente se procede mediante representação. (Parágrafo único renumerado pela Lei nº 9.983, de 2000)
- 1 o -A. Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
- 2 o Quando resultar prejuízo para a Administração Pública, a ação penal será incondicionada. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Especificamente interessa para o caso o parágrafo primeiro daquele artigo.
O objeto jurídico deste crime é a liberdade individual, especialmente a proteção dos segredos cuja divulgação possa causar dano à outrem.
O sujeito ativo do crime é o destinatário ou o descobridor do segredo.
Não se protege o segredo recebido oralmente, mas apenas o contido em documento ou correspondência confidencial. O núcleo do crime é divulgar, que significa o ato de propagar, difundir. Para muitos o crime exigiria que se conte o segredo a mais de uma pessoa. Para Celso Delmanto e outros (Código Penal Comentado, 6ª edição, pág. 332), basta que se narre a um só, porquanto o que se tem em vista é o comportamento divulgar e não o resultado divulgação. Todavia, o elemento normativo sem justa causa torna atípico o comportamento quando a causa é justa (defesa de um interesse legítimo). O que é segredo? É o fato que deve ficar restrito ao conhecimento de uma ou de poucas pessoas; sendo que a necessidade desse sigilo deve ser expressa ou implícita.
O núcleo do tipo penal envolve divulgar e dar conhecimento de algo a alguém ou tornar algo público. O objetivo deste tipo penal é resguardar as informações sigilosas ou reservadas contidas em sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública. A informação, como revelou Guilherme de Souza Nucci (Código Penal Comentado, 8ª edição, pág. 699), deve estar guardada em sistema que contenha base material, isto é, não se configura o ilícito se a informação sigilosa ou reservada for unicamente verbal.
O que é banco de dados? É a compilação organizada e inter-relacionada de informes guardados em um meio físico, com o objetivo de servir de fonte de consulta para finalidades variadas, evitando-se a perda de informações.
Repita-se que o objeto material e jurídico do ilícito é a informação sigilosa ou reservada.
Ora, apesar da argumentação apresentada pelo chefe da Instituição ministerial havia, nos autos do procedimento inquisitorial, a informação de que havia sigilo.
Como bem disse César Dario Mariano da Silva(Afinal, do que se trata o crime de violação de sigilo funcional imputado a Bolsonaro?, in Estadão, em 4 de fevereiro de 2022)
‘Duas são as condutas típicas:
revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo;
facilitar-lhe a revelação.
O objeto material é o segredo. Este é o fato que não pode ser revelado e que deva ser mantido em sigilo, embora de conhecimento de um número limitado de pessoas. A classificação do fato como sigiloso ou a decretação do sigilo em processo ou procedimento deve preceder à sua revelação. Assim, se por ocasião da revelação o fato não era sigiloso e só posteriormente o foi decretado como tal, não advirá infração penal.”
Disse então Cesar Dário Mariano da Silva:
“No que concerne especificamente ao presidente da República, algumas indagações devem ser feitas para se chegar à conclusão acerca de sua responsabilidade pelo ilícito:
1) os fatos revelados se encontravam sob sigilo formalmente decretado?
2) o sigilo precedia à revelação dos fatos?
3) os fatos eram relevantes e poderiam causar dano para a administração pública, no caso para as investigações?
4) em caso positivo, o presidente tinha conhecimento de que os fatos revelados eram sigilosos?
5) o presidente tinha o dever legal de guardar o sigilo?
“O referido inquérito policial Federal não restava abarcado por decisão judicial de sigilo, bem como não havia medida cautelar sigilosa em andamento, portanto, apresentava o sigilo relativo próprio dos procedimentos de investigação criminais” – Daniel Carvalho, delegado da PF.
Em 4 de agosto de 2020, Bolsonaro divulgou na internet o conteúdo do inquérito sigiloso 1361/2018-4/SRDF, que tratava de uma tentativa de um ataque cibernético contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A ação não afetou as eleições, mas o presidente utilizou a investigação como argumento para dizer que as urnas eram fraudáveis.
Para o PGR os fatos revelados não se encontravam sob sigilo formalmente decretado que deveria ter partido da autoridade judicial.
Para tanto seria necessário um ato formal para a decretação do sigilo e não um carimbo da Polícia Federal no sentido do respeito ao sigilo.
É indispensável, contudo, uma relação causal entre o conhecimento do sigilo e a especial qualidade do sujeito ativo (em razão da função de policial), isto é, um nexo causal entre o exercício de cargo ou função pública e o conhecimento do sigilo, que é exatamente o aspecto revelador da infidelidade funcional do sujeito ativo, que a norma penal pretende proteger.
Mas tenha-se que Cezar Roberto Bitencourt(Violação de sigilo nas investigações) ensinou ao estudar o tipo objetivo do ilícito penal:
“Como o texto legal fala somente em “descumprir determinação de sigilo das investigações”, sem declinar sua origem, se legal ou judicial, quer nos parecer que tal origem seja irrelevante, isto é, qual quer delas tem dignidade para receber a proteção penal. Por outro lado, a conduta incriminada limita-se à fase investigatória, isto é, à fase pré-processual. Assim, conduta similar praticada durante a fase processual não se adequa à descrição típica deste dispositivo legal, podendo, subsidiariamente examinar-se a possibilidade de configurar o crime descrito no art. 325 do Código Penal.”
Para a Policia Federal os inquéritos são feitos sempre de maneira sigilosa na medida em que enquadrados nessa situação.
É o que se lê dos termos do artigo 20 do Código de Processo Penal, onde se diz que “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”.
Disse bem Guilherme de Souza Nucci(Código de Processo Penal Comentado, 10ª edição, pág. 124), o inquérito policial, por ser peça de natureza administrativa, inquisitiva e preliminar à ação penal, deve ser sigiloso, não submetido, pois, à publicidade que rege o processo.
Em sendo assim, não é incomum que o delegado, pretendendo deixar claro que aquela específica investigação é confidencial, decrete o estado de sigilo. Quando o faz, afasta dos autos o acesso de qualquer pessoa. No entanto, aplica-se ainda para o caso a Súmula Vinculante 14 do STF: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. Fora isso, o inquérito segue sob sigilo necessário.”
Desta forma há razões para entender que houve por parte do atual presidente da República a prática do crime aqui considerado. É indiferente que esse sigilo do inquérito venha de lei, da autoridade policial, do juiz.
III – O ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO E POSSÍVEIS CONSEQUÊNCIAS
É certo que o Supremo Tribunal Federal tradicionalmente homologa os pedidos de arquivamento ofertados pelo PGR.
A CF de 1988 consagrou o sistema acusatório no processo penal ao definir o Ministério Público como titular exclusivo da ação penal pública (art. 129, I, CF) e separar as funções de acusar, defender e julgar a atores distintos do sistema processual penal. A investigação preliminar é fase pré-processual, em que o Ministério Público possui função fundamental, mas não é ator exclusivo.
É certo que, no âmbito dos Ministérios Públicos Estaduais, a decisão do Procurador-Geral de Justiça não fica imune ao controle de outra instância revisora. Isso porque ainda há possibilidade de apreciação de recurso pelo órgão superior, no âmbito do próprio Ministério Público, em caso de requerimento pelos legítimos interessados, conforme dispõe o artigo 12,XI, da Lei 8.625/93, in verbis:
“Art. 12. O Colégio de Procuradores de Justiça é composto por todos os Procuradores de Justiça, competindo-lhe:
[…]
XI – rever, mediante requerimento de legítimo interessado, nos termos da Lei Orgânica, decisão de arquivamento de inquérito policial ou peças de informações determinada pelo Procurador-Geral de Justiça, nos casos de sua atribuição originária”.
Penso possível uma construção normativa no caso dos pedidos de arquivamento formulados pelo Ministério Público Federal.
É certo que a matéria sofreu reformulação legislativa, em 2019.
Tem-se então;
Art. 28. Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
- 1º Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
- 2º Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).
Entretanto o ministro Luiz Fux entendeu por suspender cautelarmente “sine die” a eficácia do caput do artigo 28 do Código de Processo Penal, assim como de outros artigos constantes da Lei 13.964/2019.
No passado, o artigo 28 do CPP, em sua redação originária, dava ao juízo criminal, caso não concordasse com o opinamento do órgão do Parquet, remeter a matéria ao procurador geral para pronunciamento definitivo sobre a iniciativa da ação penal pública.
Vigora assim o texto anterior que determinava que se o juiz fosse contra o pedido de arquivamento os autos seriam encaminhados ao órgão revisor.
Entendo que, por simetria tal deve ser aplicado com relação aos pronunciamentos de arquivamento do procurador-geral da República perante o STF.
Adite-se a isso, que o STF poderia entender sob o argumento de uma norma de bom senso, entender fora da razoabilidade a um pedido de arquivamento. Afinal, atenta-se ao princípio do in dubio pro societate.
Não se pode conviver com discriminações arbitrárias.
Leve-se em conta que um arquivamento de investigação feito sob parâmetros desmedidos deve ser objeto de apreciação em nome dos interesses da sociedade. Pode o STF entender que o caso não reclamava um ato formal de decretação de sigilo por parte da autoridade judicial competente. Afinal, como o texto legal fala somente em “descumprir determinação de sigilo das investigações”, sem declinar sua origem, se legal ou judicial ou ainda da Polícia, quer nos parecer que tal origem seja irrelevante.
Caso isso ocorra os autos deveriam ser remetidos à Segunda Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal a quem caberia dar a última palavra do titular da ação penal sobre o caso.
Afinal, a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal é o órgão incumbido da coordenação, da integração e da revisão do exercício funcional dos membros do Ministério Público Federal na área criminal, excetuados os temas de atuação das 4ª, 5 ª e 7ª Câmaras.
A esse órgão revisor seria dado tal atribuição, se assim entendesse o STF em caso de não homologar o pedido de arquivamento ofertado pelo PGR.
*É procurador da República com atuação no RN posentado.
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