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Crônica

Sem fim

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Como disse certa vez, há livros que li, reli e lerei novamente. “Civilização” (1969), de Kenneth Clark, “A era da incerteza” (1977), de John Kenneth Galbraith, “O nome da rosa” (1980), de Umberto Eco, “Amor a Roma” (1982), de Afonso Arinos de Melo Franco e “O século dos intelectuais” (1997), de Michel Winock, então certamente entre eles. São os meus queridinhos. Formam o meu simulacro da “Biblioteca de Babel”, tal qual imaginada por Jorge Luis Borges, com os mesmos volumes se acumulando na desordem ordenada da minha mesa de cabeceira.

Há também o oposto. Livros que, começando e até insistindo, não consegui ler. Alguns eram ruins mesmo e rogo distância. Outros eram – na verdade, são – considerados obras-primas da literatura. “Auto-de-fé” (1935), de Elias Canetti, e “O jogo das contas de vidro” (1943), de Hermann Hesse, por exemplo. Talvez eu não estivesse preparado à época para essas duas leituras. São livros “densos”. Ou, o que é um fenômeno comum, “os nossos santos não bateram”. Acontece.

Todavia, por estes tempos – e contem para lá de dois anos –, está acontecendo comigo um fenômeno/problema em relação a um outro livro clássico, uma obra-prima no seu gênero, posso dizer: “Civilização e cultura”; o autor, Luís da Câmara Cascudo (1898-1986). Também não consigo terminá-lo. Mas isso se dá por um outro motivo, deveras curioso, paradoxal até: nossos santos bateram demais. E estou nitidamente desacelerando a leitura do danado, parando a cada página, indo e voltando, postergando um fim que rejeito ser inexorável.

O historiador, sociólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, cronista, jornalista, jurista e professor Câmara Cascudo dispensa maiores apresentações. O seu “Civilização e cultura”, perdidos os originais, reencontrados e restaurados anos após, publicado quando Cascudo já completava 75 anos, é um livro de madureza, de chegada, depois de andanças por “Sertão de pedra e Europa”. Da edição que possuo, de 1983, da Editora Itatiaia, dedicada pelo autor aos meus pais, consta: “Este livro de Luís da Câmara Cascudo resulta de uma longa experiência de pesquisador, explorando ao mesmo tempo conceitos teóricos e realidades materiais, numa amplitude de visão que surpreende e encanta. Alia à seriedade do erudito a leveza do artista. O rigor do informe e o pitoresco dos fatos e da forma combinam-se em páginas de estudo e diversão. (…). A riqueza e a minúcia com que descreve as atividades dos grupos humanos, desde suas técnicas de vida material aos tipos de organização social, religiosa e estética, fazem deste livro uma obra fundamental na extensa bibliografia do autor. Obra pensada e repensada em longos anos de trabalho intelectual”.

Mas o fato é: não consigo – na verdade, não quero – terminar o livro. E olhem que não cheguei à parte do direito (ciência da qual Cascudo foi professor), às páginas 600 e tanto, onde o mestre afirma: “O problema da origem do Direito tem sido sempre objeto especulativo de filósofos e juristas. Não de etnógrafos. O ângulo de apreciação não coincide embora o interesse pela pesquisa tenha a mesma importância máxima. Como o Direito é uma norma fixada para a conduta humana na continuidade cronológica, é óbvia a necessidade de sua elucidação, as raízes milenárias da formação, clareando a diversidade do comportamento na história do mundo”. Isso promete.

Tenho suspeitas para essa minha malevolência literária, que vão além do conteúdo da obra ou do deleite intelectual da sua leitura. É algo sensorial que me prende à “Civilização e cultura”.

Fisicamente, a visada e o toque no livro me subjugaram. Falo da textura do papel, das páginas já amareladas e da fonte utilizada. Recordam-me leituras de outrora. Sejam as edições da velha Forense, os meus Orlando Gomes e Caio Mário, que entesouro desde a Universidade. Seja a coleção Vaga-lume e o seu sinistro “O escaravelho do diabo”. Sinto-me, palpavelmente, voltando àqueles bons tempos, de irresponsável juventude ou de lúdica infância, o que já seria muitíssimo.

E algo mais: o sábio conterrâneo Cascudo sempre foi para mim um referencial de um tempo em que eu perguntava aos meus pais “O que é isso?”, “Por quê?”, exatamente como hoje me faz o pequeno João. As cousas que eu indagava e que hoje João repete são as mesmas que Cascudo busca responder no seu livro de madureza. A infinitude de grandes e pequenas coisas que forjam civilizações e culturas. Com pais vivos e filho desabrochando, o livro em mãos parece ser um elo, um amuleto, que une essas duas pontas do destino. Não posso soltá-lo. Postergando o fim de “Civilização e cultura”, vou trapaceando, sensorialmente – e “tudo é sensação”, já dizia o poeta-filósofo Pessoa –, o curso da vida.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Programa Câmara Cascudo: Inscrições se encerram na próxima terça (31)

Governo investe R$ 13,2 milhões através de renúncia fiscal para projetos na área cultural (Foto: Sandro Menezes)

Produtores culturais, artistas e empreendedores do setor de economia criativa do Rio Grande do Norte têm a próxima terça-feira, 31 de agosto para inscrever projetos para a captação de patrocínio de empresas no Programa Estadual Cultural Câmara Cascudo. O Governo do Rio Grande do Norte destinou o valor de renúncia fiscal de ICMS para a cultura de R$ 13,2 milhões em 2021.

A entrega dos projetos deverá ser efetuada através do envio pelos Correios, até o dia 31 de agosto de 2021, postada para o endereço da Fundação José Augusto, Programa Cultural Câmara Cascudo, Rua Jundiaí, 641, Tirol, Natal, RN, CEP 59020-120, como também será realizado o envio, virtualmente, através do email, projetosleicc@gmail.com. Os projetos poderão também ser entregues presencialmente na sede da FJA até às 14h dia 31 de agosto.

Os formulários e seus anexos, para a inscrição dos respectivos projetos, estão disponíveis no site institucional da Fundação José Augusto www.cultura.rn.gov.br.

O programa Estadual Câmara Cascudo é um dos principais instrumentos de democratização do acesso à cultura no Rio Grande do Norte e consiste na renúncia fiscal do ICMS por parte do Estado para que o valor correspondente à contribuição seja investido em projetos culturais. A operacionalização do programa é realizada pela Fundação José Augusto (FJA) através da Comissão de Cultura. O artista, grupo de artistas ou instituição interessada na captação dos recursos inscreve seu projeto que será analisado, para confirmar adequação às normas da Lei, e decidida sua aprovação. Nos 21 anos de existência o Programa Câmara Cascudo disponibilizou R$ 86 milhões, beneficiando mais de 550 projetos.

Programa Estadual Câmara Cascudo

Inscrições até 31/08
Edital: www.cultura.rn.gov.br.
Email: projetosleicc@gmail.com
Entrega presencial: Fundação José Augusto , Rua Jundiaí, 641, Tirol, Natal, RN, CEP 59020-120 até o horário das 14h

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Artigo

A ira contra Natália Bonavides e o nativismo de ocasião

Natália Bonavides é alvo da ira do nativismo de ocasião (Foto: Cleia Viana)

Já deixei bem clara minha posição crítica contra a emenda que a emenda da deputada federal Natália Bonavides (PT) para a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Por mais que entenda ser justa e apoie a causa da busca dos restos mortais dos desaparecidos políticos da ditadura militar, R$ 100 mil retirado de emendas do Rio Grande do Norte fazem muita falta para um Estado paupérrimo como o nosso por mais que seja para ajudar a encontrar um potiguar como Luiz Maranhão.

Nem muito menos quero relativizar as críticas à Natália Bonavides às quais me associo.

A intenção é provocar uma reflexão.

No início da semana que se encerra hoje a Fundação Palmares anunciou que vai se desfazer de um exemplar raro do livro “Dicionário do Folclore Brasileiro” de Câmara Cascudo, um escritor símbolo da cultura potiguar, considerado o maior folclorista do Brasil.

Os que gritaram contra Natália se calaram contra esse acinte contra nossa cultura. O nativismo não aflorou nessa ocasião.

Nem mesmo a referência grosseira do relatório da Fundação Palmares despertou a ira nas redes sociais:

“Quem consultar o clássico ‘Dicionário do Folclore Brasileiro’ terá em mãos um livro não só gramatical e ortograficamente desatualizado, mas com páginas soltas e exibindo um forte cheiro de mofo”.

O envio de uma emenda para outro Estado é uma falha grave por parte de uma parlamentar e merece ser objeto de crítica por mais que se tenha a justificativa de que seja para encontrar os restos mortais de um potiguar desaparecido.

Mas e o ataque a um dos nossos símbolos culturais? Ninguém se importou.

Diria que a escolha de Natália como alvo teve o fato político. Alguns dos que se irritaram com a emenda dela são os mesmos que se calaram quando o deputado federal General Girão (PSL) mandou emenda da saúde para São Paulo ou que fazem vista grossa para o fato do ministro Fábio Faria morar em São Paulo para onde ele próprio já mandou uma emenda de R$ 80.014,00 em 2015.

O nativismo é de ocasião. Talvez se Natália não fosse de esquerda a reação fosse mais dócil. O peso ideológico nesta questão é indisfarçável.