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Uma hipótese de conexão instrumental? 

Por Rogério Tadeu Romano*

I – O FATO

Observo o noticiário da BBC NEWS BRASIL, em 17.8.23:

“O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seu entorno são foco de uma investigação da Polícia Federal (PF) que apura um suposto esquema de negociação ilegal de joias dadas por delegações estrangeiras à Presidência da República.

Segundo a PF, os itens de alto valor foram omitidos do acervo público e vendidos para enriquecer o ex-presidente.

A revista Veja publicou nesta quinta-feira (17/8) que o tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e um dos principais envolvidos no caso, pretende confessar em breve que teria negociado a venda das joias a mando do ex-presidente. Cid está preso.

A intenção de confessar foi revelada à revista pelo advogado de Cid, Cezar Bitencourt, que posteriormente confirmou também a informação ao jornal Folha de S. Paulo e à TV Globo.”

Segundo o que informou o site da Folha, em  13.8.23, o deputado Duarte Jr. (PSB-MA), da base do governo na CPI do 8 de Janeiro, contestou o presidente da comissão, Arthur Maia (União-BA), e afirmou que as investigações sobre o suposto desvio de joias e presentes dados por autoridades de outros países a Jair Bolsonaro (PL) têm conexão com os trabalhos do colegiado.

Segundo artigo 76 do Código de Processo Penal, a competência será determinada pela conexão em três hipóteses: se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas ou em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras; se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas, e quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

Há realmente conexão entre os atos investigados com relação ao 8 de janeiro de 2023, onde se tentou dar um golpe na democracia brasileira, e essa venda de joias noticiada?

II – A CONEXÃO

O Supremo Tribunal Federal entendeu ser competente para instruir e julgar crimes contra a democracia cometidos no Brasil, em 8 de janeiro do corrente ano, e delitos conexos.

Os artigos 76 a 82 do Código de Processo Penal apresentam previsão de normas sobre conexão e continência. Estas não são causas determinantes da fixação de competência, como são o lugar do crime, o domicílio do réu, etc, pois são, em verdade, motivos que determinam a sua alteração, atraindo para a competência de um juízo o crime que seria de competência de outro.

Trago a conclusão de Pazzaglini Filho (Conexão e continência em processo penal, Justitia 72/23 – 52.) para quem motivando a reunião em um processo e consequentemente a unidade de julgamento, a conexão e a continência ¨tem por finalidade a adequação unitária e a reconstrução crítica única das provas a fim de que haja, através de um único quadro de provas mais amplo e completo, melhor conhecimento dos fatos e maior firmeza e justiça nas decisões, evitando-se a discrepância e contradição entre os julgados.”

Aliás, é possível que da existência de um dos crimes conexos dependa a existência do outro (a do crime acessório com relação ao principal), onde uma verdadeira dependência prévia que aconselha a união dos processos.

Essa interligação entre duas ou mais infrações leva a que sejam julgadas pelo mesmo órgão judicial.

O art. 76 do CPP explica, por exemplo, por que todos os casos de atos antidemocráticos foram distribuídos no STF ao ministro Alexandre de Moraes. Ele era o juiz competente, a quem deviam ser encaminhados tais delitos para apreciação.

Por certo, discute-se por que razão o mesmo relator estaria com competência para julgar o chamado caso das “joias”, envolvendo o ex-presidente da República. Estaria ele prevento para tal?

Na lição de Magalhães Noronha (Curso de direito processual penal. São Paulo, Saraiva, 1978, pág. 52), a palavra prevenção vem do verbo prevenire, chegar antes, conhecer antes ou antecipar-se.

Nos termos do RISTF, é o ato da distribuição da causa ou do recurso, e não decisão eventual do Relator sorteado, que o torna prevento para todos os demais processos relacionados por conexão ou continência, como está nítido no art. 69, caput:

“A distribuição da ação ou do recurso gera prevenção para todos os processos a eles vinculados por conexão ou continência.”

Por fim, conforme orientação desta Presidência, a distribuição de ação ou recurso gera prevenção para todos os processos posteriores vinculados por conexão ou continência, e somente não se caracterizará a prevenção, se o relator, sem apreciar pedido de liminar, nem o mérito da causa, negar-lhe seguimento, não conhecer ou julgar prejudicado o pedido, declinar da competência, ou homologar pedido de desistência por decisão transitada em julgado, nos termos do artigo 69, § 2º, do RISTF.

Estudemos as formas de conexão:

Conexão intersubjetiva (artigo 76, I, Código de Processo Penal), onde há infrações penais interligadas que devem ser praticadas por 2 (duas) ou mais pessoas:

Conexão intersubjetiva por simultaneidade: na hipótese, ocorrem várias infrações praticadas ao mesmo tempo por várias pessoas reunidas que não estão de forma prévia acordadas;

Conexão intersubjetiva concursal: ocorre quando várias pessoas, previamente acordadas, praticam várias infrações embora diverso o tempo e o lugar;

Conexão intersubjetiva por reciprocidade: ocorre quando várias infrações são praticadas, por diversas pessoas, umas contra as outras, havendo o que se chama de reciprocidade na violação de vínculo jurídico, algo que se distancia do crime de rixa, crime único.

Conexão objetiva, material, teleológica ou finalística (artigo 76, II, do Código de Processo Penal): ocorre quando uma infração é praticada para facilitar ou ocultar outra, ou para conseguir impunidade ou vantagem;

Conexão instrumental ou probatória (artigo 76, III, do Código de Processo Penal): ocorre quando a prova de uma infração ou de seus elementares influir na prova de outra infração.

A chamada conexão na fase preliminar investigatória nada mais é que uma forma de conexão instrumental, quando se dá a reunião dos inquéritos, na Polícia, com o objetivo de obter a verdade real e a melhor forma de acompanhar a investigação.

Há, sem dúvida, a aplicação da chamada conexão instrumental entre os atos que envolvem a tentativa de golpe de estado, fulcradas no artigo 359 – L, do CP, conduta contra a ordem democrática brasileira, e os crimes de peculato, organização criminosa, e lavagem de dinheiro que envolvem a “venda de joias pertencentes ao patrimônio público brasileiro”.

Essas condutas estão umbilicalmente ligadas? A ideia é seguir o dinheiro para verificar possíveis conexões. Ou seja: a apuração da venda fraudulenta de joias pertencentes ao patrimônio público e sua possível ligação com relação ao financiamento daqueles atos que agrediram a democracia no Brasil.

A prova da infração com relação aos chamados crimes envolvendo às joias poderá influenciar na apuração daqueles crimes cometidos contra o estado democrático de direito.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Trambique das arábias

Por Dão Real Pereira dos Santos*

A expressão “das arábias” significa coisa fora do comum, extravagante, conceito que combina muito bem com o que estamos verificando ultimamente. Tem muita coisa ainda para ser esclarecida neste escândalo da venda das joias envolvendo militares de alta patente do Exército e da Marinha, aeronaves da FAB, o advogado do ex-presidente e o próprio ex-presidente da República. Que esse episódio é extravagante, não há nenhuma dúvida.

As notícias que circulam mostram que pelo menos quatro conjuntos de joias teriam sido oferecidos à venda e que três deles teriam sido vendidos. O valor dessas operações pode ultrapassar a R$ 1 milhão, segundo noticiários. Um desses conjuntos, composto por uma caneta, um par de abotoaduras, um rosário árabe e um relógio, teria sido oferecido por US$ 50 mil em uma casa de leilões.

A intenção não é repetir o que já está sendo exaustivamente noticiado, mas tentar esclarecer a dimensão desse imbróglio, para que esse assunto não seja banalizado nem normalizado como se fosse apenas mais uma trapalhada do ex-presidente e de sua família.

Os fatos, se confirmados, são gravíssimos. A primeira questão que devemos ter em conta é sobre o porquê de tantas joias terem sido presenteadas ao ex-presidente e a sua esposa pelo ditador da Arábia Saudita. Membros do governo Bolsonaro viajaram 150 vezes para aquele país, em quatro anos. Não está explicado ainda quais seriam as razões para essa rotina tão intensa de viagens internacionais para essa região, principalmente porque o estreitamento de relações diplomáticas e comerciais nunca esteve no campo de interesse nem de preocupações do antigo governo.

Em 2021, um Auditor-Fiscal da Receita Federal apreendeu na Alfândega do Aeroporto Internacional de Guarulhos um conjunto de joias que estava sendo trazido de forma oculta pelo então ministro de Minas e Energia, quando retornava do Oriente Médio. Eram joias avaliadas em R$ 16,5 milhões. Depois da apreensão houve, pelo menos, quatro tentativas de altas autoridades do governo para liberação dessas joias, a última delas praticamente nos últimos dias do governo amplamente noticiado.

Presentes recebidos por chefes de Estado devem ser incorporados ao patrimônio da União. A tentativa de introduzir essas joias no país, de forma clandestina, revela que havia a intenção de não incorporá-las ao patrimônio público, mas de mantê-las no patrimônio pessoal do então presidente da República e sua esposa.

As vendas, que foram agora desvendadas, demonstram com muita clareza que essa era uma prática comum. Ainda que se pudesse cogitar que tais presentes poderiam pertencer ao presidente e não a Presidência, a ocultação da sua importação configura crime contra a Administração Pública, o que nos permite deduzir que aquela antiga declaração do ex-presidente, de que sonegava tudo o que podia, não era apenas força de expressão.

Vamos então aos efeitos dos fatos. Se os bens pertenciam à União, eles foram furtados para serem vendidos. Se pertencessem ao ex-presidente, como alguns alegam, ainda assim, não foram importadas nem exportados de forma regular. Sejam eles da Presidência ou do ex-presidente, foram importados de forma irregular, sem pagamento dos tributos devidos e sem o cumprimento das formalidades exigidas.

Os bens recebidos pelo chefe de Estado em missão internacional poderiam ter sido importados, até mesmo junto à bagagem dos viajantes, e não estariam sujeitos ao pagamento de tributos, mas teriam de ser declarados na chegada com vistas a sua devida incorporação ao patrimônio público.

A não declaração torna a importação totalmente irregular. Segundo a legislação aduaneira esses bens estariam sujeitos à aplicação de pena de perdimento. Pode até parecer um contrassenso, pois esses bens, depois de decretado o perdimento, passariam para o patrimônio da União e poderiam até mesmo ser incorporados à própria Presidência da República. No entanto, a destinação dos bens apreendidos segue ritos próprios e prioridades estabelecidas na legislação, podendo, inclusive, ser doados a museus ou vendidos em leilão, sem prejuízo, obviamente, das penalidades administrativas ou criminais que deveriam ser aplicadas aos infratores.

Como as joias foram vendidas, a pena de perdimento deve ser substituída por uma multa de valor igual ao valor dos bens e, neste caso, devem ser cobrados também os tributos incidentes na importação acrescidos de multa de 150%. Ou seja, em relação às importações destas joias que teriam sido vendidas por um valor estimado de R$ 1 milhão, os responsáveis pela importação estão sujeitos, em tese, a uma autuação fiscal de aproximadamente R$ 2 milhões, sendo R$ 1 milhão de multa administrativa, R$ 400 mil de tributos (o somatório das alíquotas dos tributos federais sobre a importação de joias é de aproximadamente 40%) e R$ 600 mil de multas tributárias.

Os bens vendidos e enviados para o exterior foram exportados também de forma clandestina. O beneficiário dos pagamentos, que, supõe-se, seja o ex-presidente, teria recebido uma renda aproximadamente de R$ 1 milhão, e, provavelmente, não deve tê-la submetido a nenhuma tributação. Assim, considerando uma alíquota efetiva de aproximadamente 25% de Imposto de Renda, estaria sujeito a uma autuação por omissão de rendimentos de aproximadamente R$ 600 mil, correspondente ao imposto mais as multas.

Essa conduta de fazer trambique com as joias importadas, no valor de R$ 1 milhão, custaria ao infrator, por baixo, cerca de R$ 2,6 milhões somente em tributos e multas tributárias e administrativas.

Além disso, essas práticas configuram, em tese, diversos crimes e ilícitos funcionais praticados pelos envolvidos.

A importação irregular é crime de descaminho do artigo 334 do Código Penal. A falta de pagamento dos tributos sobre o rendimento obtido constitui crime contra a ordem tributária, da Lei 8.137, de 1990. O recebimento dos valores cobrados à margem do sistema oficial de câmbio constitui crime contra o Sistema Financeiro, previsto na Lei 7.492, de 1986. A operacionalização dos crimes por diversas pessoas mancomunadas para o mesmo fim, constitui crime de Organização Criminosa da Lei 12.850, de 2013.

A operação internacional com joias pode configurar crime de lavagem de dinheiro, previsto na Lei 9.613, de 1998. Apropriação de bens públicos para proveito próprio ou de terceiros constitui crimes de furto e de peculato, ambos do Código Penal.

Evidentemente que estamos no campo das conjecturas e possibilidades, pois as investigações ainda estão em andamento e não houve nenhum julgamento concluído. No entanto, os fatos noticiados já são demasiadamente graves e, sendo confirmados, suas consequências devem ir muito além de um simples desgaste de imagem ou de reputação pessoal dos agentes envolvidos.

*É auditor fiscal, presidente do Instituto Justiça Fiscal, coordenador da campanha Tributar os Super-Ricos.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Uma situação em que se argui a obediência hierárquica

Por Rogério Tadeu Romano*

Lembro relato apresentado pelo jornal O Globo, em 17.8.23:

Pressionado pelas revelações da Polícia Federal sobre o suposto esquema de desvio de joias para o patrimônio de Jair Bolsonaro, o ex-ajudante de ordens Mauro Cid mudou de estratégia e adotou uma linha de defesa que indica a possível responsabilização do ex-presidente. A formação militar do tenente-coronel, que preza pela “obediência hierárquica”, foi citada pelo criminalista Cezar Bitencourt, que assumiu a defesa ontem, na segunda troca em três meses, como fator preponderante para a atuação de Cid no período em que esteve vinculado à Presidência.

A lei que norteia a atuação das Forças Armadas estabelece que o presidente é o “chefe supremo” de Exército, Marinha e Aeronáutica, “administrando-as por intermédio dos órgãos do Alto Comando”. O advogado de Bolsonaro, Paulo Bueno, ligou para o escritório de Bitencourt ontem para marcar uma conversa. Procurado pelo GLOBO, não quis comentar.”

Foi trazida a tese da obediência hierárquica, que exclui a culpabilidade do agente diante de uma conduta criminosa.

O Código Penal brasileiro, na estrutura da culpabilidade, enumerou três elementos que são: a) a imputabilidade, que é a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento; b) a potencial consciência da ilicitude que é a possibilidade de que o agente tenha o conhecimento do caráter injusto no momento da ação ou omissão; c) a exigibilidade de conduta diversa, que consiste na expectativa de um comportamento diferente daquele que foi adotado pelo agente.

Ensina Miguel Reale Jr. (Teoria do Delito,1988, pág. 86) que a culpabilidade é um juízo de reprovação relativo à formação dessa vontade enquanto que a antijuridicidade é o caráter de comportamento dotado de sentido axiológico negativo, de forma que este deflui da vontade axiológicamente negativa.

As causas excludentes da culpabilidade (exculpantes, dirimentes ou eximentes) devem ser estudadas. As exculpantes, também denominadas de dirimentes ou eximentes, são as causas excludentes da culpabilidade e são, portanto, agrupadas em três, assim como o são os elementos da culpabilidade: causas que excluem a imputabilidade; causas que excluem a consciência da ilicitude; causas que excluem a exigibilidade de conduta diversa.

Com relação a imputabilidade são excludentes: doença mental que é a perturbação mental (esquizofrenia, psicose, paranoia) ou psíquica (álcool, entorpecentes, estimulantes e alucinógenos) de qualquer ordem capaz de eliminar ou afetar a capacidade de entender o caráter criminoso do crime do fato ou a de comandar a vontade de acordo com esse entendimento; desenvolvimento mental incompleto e o desenvolvimento que ainda não se concluiu; desenvolvimento mental retardado; embriaguez acidental completa proveniente de caso fortuito ou força maior.

Fala-se em excludentes da potencial consciência da ilicitude: erro de proibição inevitável, o erro de proibição que exclui a atual consciência da ilicitude; a discriminante putativa, por erro de proibição inevitável.

O último elemento, inexigibilidade de conduta diversa tem como excludentes: coação moral irresistível; a obediência hierárquica; a inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade. Lembre-se que a possibilidade de exigir-se conduta diversa é, segundo a teoria finalista, um dos pressupostos da culpabilidade, da reprovabilidade penal de uma ação ou omissão típica e antijurídica. Isso porque não se pode falar em responsabilidade penal sem liberdade, fundamento daquela.

Ensinou Francisco de Assis Toledo (Princípios Básicos de Direito Penal, 4ª edição, pág. 328) que o princípio da não-exigibilidade foi introduzido e desenvolvido na ciência penal como corolário da concepção normativa da culpabilidade, por Frank, Goldschmidt, Mezger, para citar seus principais autores. Pressuposto deste princípio é a motivação normal. A culpabilidade para configurar-se exige uma certa normalidade de circunstâncias que cercaram e poderiam ter influído sobre o desenvolvimento do ato volitivo do agente. Na medida em que essas circunstâncias apresentam-se significativamente anormais deve-se suspeitar também de anormalidade também no ato volitivo. Assim quando se parte do pressuposto de que um comportamento só é culpável na medida em que um sujeito capaz haja previsto e querido o fato lesivo, deve-se necessariamente admitir que tal comportamento já não possa considerar-se culpável todas as vezes em que, por causa de uma circunstância fática, o processo psíquico de representação e de motivação se tenha formado de modo anormal.

Interessa-nos no presente estudo a coação irresistível e a obediência hierárquica trazidas no artigo 22 do Código Penal como causas excludentes de culpabilidade. Assim se tem:

Art. 22 – Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Na lição de Miguel Reale Júnior (Parte Geral do Código Penal, 1988, pág. 105) a situação de coação tem como fato elementar constitutivo o constrangimento à prática de um delito, sob ameaça de um mal. São dois males, restando o agente na alternativa de sofrer o mal ameaçado ou de praticar o crime. Para ele, constrói-se o tipo da dirimente, com a seguinte estrutura: não é punível o fato cometido sob ameaça de sofrer ofensa certa, iminente e grave a direito seu, ou de alguém ligado por laços de afeição, não sendo razoável exigir-se conduta diversa. Pune-se o autor da ameaça.

Estudando o artigo 22 do Código Penal, Celso Delmanto e outros (Código Penal Comentado, 6ª edição, pág. 42) lecionaram: “Coação é a utilização de força física (coação física) ou grave ameaça (coação moral) contra alguém a fim de que esse faça ou deixe de fazer alguma coisa. O artigo 22 do CP cuida de coação moral, pois a coação física irresistível retira a própria voluntariedade do comportamento, deixando de haver conduta (vontade mais manifestação da vontade). Assim deve tratar-se de coação moral irresistível, que leva a não exigibilidade de conduta diversa. Se for resistível somente beneficiária o agente como atenuante (Código Penal, artigo 65, III, c, primeira parte). Tem-se que a não exigibilidade de conduta diversa encerra um juízo de valor sobre a formação de querer do agente. Assim avalia-se se a opção feita contra o direito, naquela situação, presentes os elementos objetivos são válidos, por não ser exigível conduta diversa, levando-se em conta as circunstâncias pessoais do agente. Sendo assim a não exigibilidade de conduta diversa é valor a iluminar o juízo de censura ou não da ação.

Analisando a coação física irresistível, Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, Parte Geral, 4ª edição, pág. 215) aduz que nessa hipótese há inexistência do próprio fato típico.

Para que se possa falar em coação é mister que exista uma terceira pessoa (o coator), além do coagido e da vítima.

O coator deve responder pelo crime de forma especialmente agravada (artigo 62, II, do Código Penal). Mas não deve haver aplicação do concurso formal com o crime de constrangimento ilegal (artigo 146 do Código Penal) sob pena de resultar em dupla punição.

São, portanto, requisitos:

  1. a) Irreversibilidade da coação, isso porque o coagido não pode vencê-la, por ter havido a supressão da liberdade de agir, em sentido oposto à liberdade do coator;
  2. b) Existência de três pessoas, coator; coato e vítima;

É irresistível a coação moral quando não pode ser superada senão com uma energia extraordinária e, portanto, juridicamente, inexigível (RT 501/382, 488/382).

Discute-se com relação a utilização da hipnose na coação. Ora, a hipnose elimina a própria vontade do sujeito, inexistindo a própria conduta. Há entendimento de que o artigo 22 do Código Penal se refere apenas á coação física ou moral e não a coação meramente psíquica (RT 380/310).

A culpabilidade ainda pode ser afastada pela obediência hierárquica.

Se o superior dá a ordem, nos limites de sua respectiva competência, revestindo-se ela das formalidades legais necessárias, o subalterno ou presume a licitude da ordem (erro de fato) ou se sente impossibilitado de desobedecer o funcionário de onde a ordem emanou (inexibilidade de outra conduta). De uma forma ou de outra é incensurável o proceder do inferior hierárquico e, por essa razão, o fato praticado não é punível em relação a ele, como ensinou José Frederico Marques (Tratado de Direito Penal, volume II/235, 1965). No entanto, a conduta do agente torna-se culpável, se a ilegalidade da ordem era sabida pelo agente, ou se ele podia ter ciência dessa ilegalidade.

Julio Fabbrini Mirabete (Manual de Direito Penal, volume I, 7ª edição, pág. 200) assim ensinou:

“A dirimente exige que a ordem não seja manifestadamente ilegal uma vez que, se flagrante a ilicitude do comando da determinação superior, o sujeito não deve agir. É possível ao subordinado a apreciação do caráter da ordem, inclusive quando de crime militar (art. 38, § 2º, do CPM). Assim, deve desobedecê-la se tem conhecimento da ilicitude do fato. Tem-se entendido que, na dúvida, o agente deve abster-se de praticar o fato sob a pena de responder pelo ilícito, mas o mais correto, diante da lei brasileira, é verificar, no caso concreto, se podia ou não desconhecer a ilegalidade, havendo culpabilidade na segunda hipótese. Como bem acentua Damásio de Jesus, se há potencial consciência da ilicitude da ordem, o subordinado responde pelo delito.”

Como já expôs o TJDFT, o Código Penal Militar (Decreto-Lei n. 1.001, de 1969) regula de modo diverso referida excludente. Segundo a legislação castrense, o subordinado (militar) estará isento de pena mesmo que a ilegalidade seja manifesta. Anote-se que este, além de não poder discutir a conveniência ou oportunidade de uma ordem (do mesmo modo quanto o civil), não pode questionar sua legalidade (diversamente do civil), sob pena de responder pelo crime de insubordinação (CPM, art. 163). Ao militar, somente não é dado cumprir ordens manifestamente criminosas. Portanto, se, apesar de flagrantemente ilegal, a ordem não for manifestamente criminosa, o subordinado estará isento de pena (CPM, art. 38, § 2º).

Ainda nos alertou Mirabete, naquela obra:

“Não sendo a ordem manifestadamente ilegal, se o agente não tem condições de se opor a ela em decorrência das consequências que podem advir no sistema de hierarquia e disciplina a que está submetido inexistirá a culpabilidade pela coação moral irresistível estando a ameaça implícita na ordem legal. Em vez de erro de proibição, há inexigibilidade de conduta diversa.”

Pode ocorrer a chamada obediência hierárquica putativa. Ainda Damásio de Jesus (Direito Penal, 8ª edição, 1983, volume I, páginas 446 e 447):

“Pode ocorrer que a ordem seja ilegal, sendo que o subordinado pratica o fato típico por erro de proibição, na crença firme de tratar-se de ordem legal. Cuida-se, então, de obediência hierárquica putativa”. O agente supôs, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima (estrito cumprimento do dever legal), aplicando-se o disposto no artigo 20, § 1, º.

Uma inovação da Lei nº 7.209, como lembrou Mirabete (Obra citada, pág. 201), foi estabelecer como atenuante genérico o fato de ter o agente cometido o crime “em cumprimento de ordem de autoridade superior”(art. 65, III, c, segunda parte). Não se exclui a culpabilidade quando o agente pratica o crime sabendo ou podendo saber que se trata de ordem de autoridade superior normalmente acarreta consequências em desfavor do subordinado, a reprovabilidade da conduta é diminuída e a pena deverá ser atenuada.

Embora não se refira de forma expressa à hierarquia, a lei tem em vista esta ao referir-se à ordem de autoridade superior. A expressão, como ensinou Mirabete, implica subordinação hierárquica do agente ao autor da ordem que, evidentemente, responderá também pelo ilícito penal em decorrência da participação no fato.

Para tanto, são requisitos:

  1. a) Relação de subordinação fundada no direito administrativo;
  2. b) Ordem não manifestamente ilegal, de sorte que ela será manifestamente ilegal quando dada por funcionário incompetente, quando sua execução não se enquadre nas atribuições legais de quem a recebe; quando não se reveste de forma legal; quando evidentemente constitui crime;
  3. c) Estrita obediência da ordem, de sorte que deve a execução limitar-se à estrita observância da ordem, não podendo o subordinado exceder-se na execução da ordem, sob pena de responder pelo excesso, como mencionou Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, volume I, pág. 22).

Tem-se da doutrina do TJDFT:

“”Estabelece o art. 22 do Código Penal: ‘Se o fato é cometido (…) em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor (…) da ordem’.

(…)

Obediência hierárquica é a causa de exclusão da culpabilidade, fundada na inexigibilidade de conduta diversa, que ocorre quando um funcionário público subalterno pratica uma infração penal em decorrência do cumprimento de ordem, não manifestamente ilegal, emitida pelo superior hierárquico.

(…)

Essa regra se fundamenta em dois pilares:

(1) impossibilidade, no caso concreto, de conhecer a ilegalidade da ordem; e

(2) inexigibilidade de conduta diversa.”

O artigo 22 do Código Penal não alcança outras subordinações, como a empregatícia, familiar, religiosa e a ordem deve provir de funcionário competente para determiná-la. A ordem não pode ser manifestadamente ilegal.

Já entendeu o TJDFT:

“4 O artigo 22 do Código Penal determina que a obediência hierárquica, como causa de exclusão da culpabilidade, se restringe às relações de Direito Público, sendo inaplicáveis nas relações de direito privado (…).”

Acórdão 1084797, 20120110759867APR, Relator: GEORGE LOPES, Primeira Turma Criminal, data de julgamento: 15/3/2018, publicado no DJE: 27/3/2018.

Tem-se que (TJDFT):

“A propósito, dispõe o art. 38, § 2.º, do Código Penal Militar: ‘Se a ordem do superior tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso, ou há excesso nos atos ou na forma de execução, é punível também o inferior’.

(…)

O estrito cumprimento de ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico exclui a culpabilidade do executor subalterno, com fulcro na inexigibilidade de conduta diversa. O fato, contudo, não permanece impune, pois por ele responde o autor da ordem.”

Para que o subordinado cumpra a ordem e se exclua a responsabilidade, é, portanto, necessário que aquela: seja emanada da autoridade competente; tenha o agente atribuições para a prática do ato e não seja a ordem manifestadamente ilegal.

Assim a ordem deve ser emanada de superior hierárquico (autoridade pública) e só isenta o agente se não for manifestamente ilegal (RT 579/393).

Registre-se que é punido sempre, segundo o artigo 22 do Código Penal, o autor da ordem legal. Trata-se, ainda, de autoria mediata quando o subordinado desconhece a ilegitimidade da ordem não manifestadamente ilegal.

Ao militar, somente não é dado cumprir ordens manifestamente criminosas.

Ora, uma ordem dada a militar para que este cometa crimes de falsidade ideológica envolvendo comprovantes falsos de vacinação, ou ainda seja coautor em crimes de peculato e lavagem de dinheiro, não exclui a culpabilidade do agente. Ademais, se o militar praticou delito penal, no exercício de atividade privada, não pode arguir essa dirimente aqui enfocada, pois tal situação não implica subordinação hierárquica.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.