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Aborto é crime, Sr. Ministro?

Por João Ibaixe Jr.*

O atual ministro da Saúde afirmou que o aborto é crime no Brasil e minimizou as críticas feitas contra o novo guia de assistência sobre o tema lançado por sua pasta há cerca de 15 dias.

O erro de se afirmar com tanta ênfase a criminalidade da situação, colocando em evidência sua perspectiva pecaminoso-religiosa e carregando o debate de ideologia, faz com que sobre o tema não haja uma análise ponderada e necessária à realidade tanto médica quanto penal.

Em primeiro lugar, é preciso delimitar o tipo de aborto que é previsto como crime no direito brasileiro. Como se verá abaixo, dentre as espécies possíveis de aborto, sob a perspectiva penal, apenas um é considerado crime.

Para se compreender isto, deve-se ter em mente que há um conjunto de elementos que compõem um crime, qualquer crime. Sem um destes elementos, a conduta não pode configurar delito. Quais são tais elementos? São tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.

O crime precisa ser típico, isto é, enquadrar-se na descrição da lei; precisa ser antijurídico, ou seja, a conduta não pode estar amparada na lei; e, por fim, deve ser culpável, vale dizer, ser reprovável da perspectiva do agente.

Quando a lei fala em excludente de ilicitude, ela quer exatamente dizer que dada conduta não pode ser crime porque falta o elemento da antijuridicidade, quer dizer, a lei em certo caso permite a prática da conduta e ela não pode ser considerada criminosa.

Exemplo clássico: matar alguém por legítima defesa. A morte ocorreu, há agente praticante da conduta, mas há uma “permissão” legal para esta situação, que é a defesa do próprio agente ou de terceiros. Assim, mesmo tendo ocorrido a morte, a conduta não se tipifica como homicídio e, portanto, não é homicídio.

Com relação ao aborto, sob aspecto legal, existem quatro modalidades: natural; necessário; sentimental e ilícito propriamente dito.

O natural é aquele que ocorre por circunstâncias biofisiológicas involuntárias à gestante, que, na maior parte dos casos, pretendia a continuidade da gravidez. Este caso por óbvio não tipifica crime.

Necessário é o aborto assim chamado quando praticado se não houver outro meio de salvar a vida da gestante, a não ser com o sacrifício do feto. A interrupção da gravidez é realizada visando-se preservar a saúde da gestante, o que hoje implica em condições físicas e psicológicas. Um exemplo disto, dado por interpretação mais ampla da lei na ADPF 54, é o caso do chamado aborto do anencéfalo, cuja justificativa pode ser fundada em tal circunstância. Deste modo, o aborto necessário, denominado ainda terapêutico ou curativo, não configura crime por expressa previsão legal.

O aborto sentimental é aquele que pode ocorrer quando a gravidez tiver origem num ato de violência contra a mulher, vítima neste caso de crime contra sua dignidade sexual, configurado basicamente pelo estupro. A lei penal em consideração a integridade psicológica da mulher permite o aborto, dizendo que ele não é punível. Verifica-se ainda a ausência de antijuridicidade e o fato não é considerado criminoso. É possível também se considerar a justificativa quanto ao dolo, pois a motivação não é a interrupção isolada da gravidez, porém antes, a preservação da estrutura sentimental da gestante, a qual não pode ser submetida, como regra, a um profundo esforço de manutenção de uma vida cuja origem é espúria e indesejável. O aborto sentimental recebe a denominação de humanitário, moral ou ético, em face de tentar diminuir os reflexos negativos da violência à recuperação da mulher. E não constitui crime.

O único tipo ilícito de aborto é aquele provocado pela gestante ou por terceiro, seja médico ou não, com ou sem consentimento, motivado por outra circunstância que não as acima tratadas. Criminoso é o aborto provocado sem finalidade terapêutica ou sentimental, sem visar proteção da vida física ou moral da gestante. Ele é gerado pela insegurança, pelo medo, pela irresponsabilidade, pela falta de informação e pela falta de apoio individual e social. Enfim, sua causa não é natural, terapêutica ou humanitária, mas de natureza socioeconômica.

A gestante, nesta situação, encontra-se isolada, sem amparo, sem perspectivas, sem horizontes, abandonada mesmo pelo companheiro que, em momentos anteriores, sob a proteção da intimidade, prometia-lhe a luz das mais distantes estrelas.

Neste caso, o aborto é praticado justamente por faltarem condições de atendimento à gestante e de amparo social a uma possível futura mãe.

Falta o que todos os governos falsamente dizem que pretendem suprir: atendimento médico e assistência social. Falta o respeito à cidadã, que, na condição de gestante, não tem suporte assistencial algum dos entes públicos, para poder decidir o que fazer de seu futuro, com uma nova vida em seu ventre.

Ausente está uma estrutura de formação que aponte horizontes para a mulher que foi abandonada em sua situação de gravidez. Falta amparo social para demonstrar que existem outros recursos e que o amanhã não será obscuro.

Falta vergonha do governo e da sociedade para estender a mão a quem efetivamente precisa de apoio, duas vidas em jogo num só corpo.

Cercada de todas as condições, a mulher teria efetiva liberdade para tomar decisões ponderadas. Aí haveria a possibilidade do exercício de uma escolha. Então essa mulher seria livre.

Mas a realidade é a do desamparo da qual já se sabe. O que esta realidade implica é, diante de sua implacável força, verificar se ela não configuraria em termos penais uma causa supralegal de excludente de ilicitude.

Seria uma causa de exclusão de ilicitude fundada numa questão social provocada pela desigualdade. A gestante cuja ausência de condições socioeconômicas a premissem ao desespero, teria assim um suporte legal caso viesse a praticar o aborto. É bastante polêmico, deve-se reconhecer, mas permitiria uma justiça mais equilibrada e teria, certamente, também um pano de fundo humanitário. Mas isso exigiria que principalmente um Ministro da Saúde tivesse uma visão mais humanista e menos totalitária.

*É advogado criminalista e ex-delegado de Polícia.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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Crônica

Por entre livros, agradeço e convido

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

 

A mistura do direito com a literatura já me deu muitos presentes. Abriu enormemente meu horizonte cultural. Isso é certo. A imersão diária na literatura melhorou deveras o meu português, inclusive o jurídico. Com textos mais concisos (à moda inglesa). Mais distantes do enfadonho “juridiquês”. Mais gostosos de ler, posso dizer. E, claro, essa interdisciplinaridade tornou o meu aprendizado do direito mais suave e lúdico. Aliás, eu até já disse que, em momentos de dificuldade, a literatura me salvou. As artes, em geral. Os livros, os filmes, seus autores e suas personagens foram frequentemente os meus companheiros. E tornaram a vida menos difícil.

Mais concretamente, na época do meu doutorado no Reino Unido, no King’s College London – KCL, em concomitante colaboração com crônicas/artigos para o jornal Tribuna do Norte, essa mistura direito e literatura, com quase igual intensidade, me rendeu três livros: “Ensaios ingleses” (2011), “Retratos ingleses” (2012) e “Códigos ingleses” (2013).

Recebo agora novíssimos presentes, o conjunto dos quatro livros que estou lançando este ano de 2022, em coedição da Livros de Papel e da Impressão Gráfica e Editor: “Literaturas”, “Entre livros”, “Novos ensaios” e “Pequena filosofia”. Eles, os novos livros/presentes, contam muito do meu passado, retratam razoavelmente o meu presente e profetizam (até onde acreditamos que controlamos o destino) um pouco do meu futuro.

Os livros são fruto de quase dez anos de artigos/crônicas publicadas semanalmente na Tribuna do Norte (de Natal/RN) e, mais recentemente, no Diario de Pernambuco (de Recife/PE). Recolhi apenas textos inéditos em livros. E separei-os em duas grandes temáticas: literatura e filosofia (geral ou do direito).

Eles têm suas qualidades. E têm, também, inúmeros defeitos. Contentemo-nos com o que alcançamos. Sejamos felizes assim. Afinal, já advertia o nosso Vicente de Carvalho (1866-1924), “Essa felicidade que supomos/Árvore milagrosa, que sonhamos/Toda arreada de dourados pomos/Existe, sim: mas nós não a alcançamos/Porque está sempre apenas onde a pomos/E nunca a pomos onde nós estamos”.

De toda sorte, outras pessoas devem ser também debitadas ou creditadas pelos defeitos e pelas qualidades dos presentes que ora recebo.

Institucionalmente, os já citados Tribuna do Norte e Diario de Pernambuco. O King’s College London – KCL, onde essa viagem de escrever começou. O Ministério Público Federal, onde tudo sempre foi. E as Academias Norte-Rio-Grandense de Letras – ANRL e de Letras Jurídicas do Rio Grande do Norte – ALEJURN, onde alegremente me meti.

Cecília Balaban, Tales Guerra, Mário Ivo Cavalcanti, Gustavo Lamartine, Felipe Melo e Avelino Lourenço, que deram arte a estes livros. E Vicente Serejo, Gaudêncio Torquato, Edilson Pereira Nobre Júnior e Luiz Alberto Gurgel de Faria, que me honraram com as apresentações/prefácios das obras.

Os meus pais, José Dias e Maria de Lourdes, sempre. Christyane, companheira frequentemente paciente. O nosso fiel cãopanheiro Capote, este, sim, invariavelmente paciente. O cada vez maior João, que perde o seu papai, todos os dias, para essa qualidade/defeito de escrever diuturnamente.

E o Criador, autor derradeiro de tudo, que permitirá o lançamento de dois dos livros – “Literaturas” e “Entre livros” – na semana que se inicia, no dia 7 de julho de 2022, às 18 horas, na Academia Norte-Riograndense de Letras, na Rua Mipibu, 443, bairro de Petrópolis, Natal/RN.

Bom, como retribuição aos mimos, a partir da colaboração dos futuros leitores, o valor arrecadado com a venda dos livros será integralmente doado para instituições de caridade.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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Crônica

A formação no foro

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Common law (a tradição anglo-americana) e civil law (a tradição romano-germânica ou continental) são as duas grandes famílias jurídicas do Ocidente, cada qual com origem e desenvolvimento próprios. Apesar da progressiva interação entre elas, não se pode ainda negar a realidade de tal dicotomia.

Isso implica um modo diferente de enxergar o direito pelos juristas – e, sobretudo, pelos seus “operadores” – de uma e outra família. Como diz José Luis Vasquez Sotelo (em “A jurisprudência vinculante na common law e na civil law”, que consta do livro “Temas atuais de direito processual ibero-americano”, Forense, 1998), “o direito do common law tem tido sempre para os juristas do continente europeu um aspecto misterioso, por sua falta de Códigos e de grandes leis e por estar baseado na experiência”. Por sua vez, “é conhecida a expressão que alude a que, se um jurista inglês se aventurasse na região da filosofia jurídica do Continente, se acharia como um estrangeiro em um país estranho, com homens que lhe falam um idioma desconhecido (…)”. Há um certo exagero aí, reconheçamos, sobretudo nos dias de hoje, com a globalização e interação digital que vivemos. Mas algumas diferenças eram e ainda o são, em boa medida, curiosas.

Darei dois exemplos quanto ao modo de pensar e à formação dos juristas do common law.

Quanto ao modo de pensar, sobretudo no passado, era bem nítida a distinção entre o operador do direito do common law e o do civil law. Naquele, os operadores do direito (juízes, advogados etc.) consultavam quase que exclusivamente os precedentes judiciais; neste, a legislação. E não há dúvida de que, ainda hoje, o modo de pensar do juiz do common law é diferente do modo de pensar do juiz do civil law. A Inglaterra continua sendo o principal exemplo disso, como expõe Sotelo: “Quando um jurista inglês estuda a solução aplicável consultando metódica e conscientemente as coleções de precedentes, após encontrar a solução, ele se pergunta se aquele ponto de vista terá sido modificado por alguma lei, consultando para isto o conjunto da Legislação. Um jurista de civil law busca, no Código ou na lei, a solução para o caso em questão. Um jurista do common law somente vê, na lei, as possíveis exceções à solução dada pelos precedentes vinculativos. Disso, ademais, resulta uma consequência importante: os statutes ou leis em sentido estrito, já que são regulamentações de exceção, devem ser interpretadas restritivamente”.

E quanto aos EUA, registra Eduard D. Re (em “Stare Decisis”, artigo publicado na Revista Jurídica, n. 198, abr. 1994) que Benjamin N. Cardozo (1870-1938), célebre Justice da Suprema Corte, disse: “a verdade é que muitos de nós, criados nas tradições do common law, encaramos a legislação com uma desconfiança que podemos deplorar, mas não negar”. E que Harlan F. Stone (1872-1946), outrora Chief Justice (Presidente) afirmou, sobre essa desconfiança, que “os tribunais do common law têm dado relativamente pouco reconhecimento à legislação, enquanto ponto de partida para formação de suas decisões, se a compararmos à força que emprestam aos precedentes”.

Outrossim, e até mais curiosamente, os grandes juristas do common law, em regra, tiveram sua formação no foro e não nas universidades. A maior prova disso é que, dentre os “antigos”, os maiores tratadistas do direito inglês foram exatamente os grandes juízes. Basta lembrar Bracton (1210-1268), Edward Coke (1552-1634) e William Blackstone (1723-1780), este sempre reverenciado, quando se fala do common law, por sua obra “Commentaries on the law of England” (1765-1770). Quanto ao direito americano é impossível falar dele sem mencionar juízes como John Marshall (1755-1835), Oliver Wendell Holmes Jr. (1841-1935) e Benjamin Cardozo, entre outros.

Aliás, lembra Sotelo que Roscoe Pound (1870-1965) quis expressar “a contraposição entre os dois sistemas afirmando que, enquanto o Direito anglo-americano é um Direito dos Tribunais, cujos oráculos são os Juízes, o do Continente é um Direito de Universidades, cujos oráculos são os Professores. A diferença metodológica pode ser representada claramente contrapondo-se um ‘Direito de Juízes’ a um ‘Direito de Catedráticos’”.

Bom, vocês poderiam me contrapor citando o próprio Roscoe Pound, que foi um professor. E um gigante. Ou mesmo Lon Fuller (1902-1978), Herbert Hart (1907-1992), Jonh Ralws (1921-2002) ou Ronald Dworkin (1931-2013). Mas esses últimos foram sobretudo filósofos e não “operadores” do direito. E são mais modernos. Quase de hoje. E as coisas mudam, sabiam?

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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O acesso, literalmente

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Como já tive a oportunidade de dizer sobre “O processo” de Franz Kafka (1883-1924), há várias interpretações sobre este romance jurídico inacabado, que é, sem dúvida, uma das obras-primas da literatura alemã e da ficção em prosa do século XX. Sendo o absurdo existencial a tônica da sua narrativa, sendo a trama permeada pela loucura ou pelo absurdo, as interpretações sobre o seu leitmotiv são as mais variadas. Já se disse ser ele uma meditação/análise/crítica sobre a burocracia estatal, sobre o totalitarismo, sobre Deus, sobre estados psicológicos, sobre a desesperança e a alienação do homem moderno, sobre a própria vida de Kafka e por aí vai. Cada uma dessas sacadas destacadamente ou tudo junto e misturado, o que deixa a coisa ainda mais, digamos, “kafkiana” (e me desculpem o gracejo).

Coisa parecida se dá especificamente com a parábola “Diante da Lei”, que está no capítulo 9 de “O processo”, como um dos núcleos do disputado romance, e na qual ao homem do campo é recusada – ou é autorrecusada, quiçá –, nas “portas” da Justiça, a “entrada na Lei”.

Para exemplificar algumas dessas interpretações sobre “Diante da Lei”, cito Modesto Carone em “Lição de Kafka” (Companhia das Letras, 2009): “no caso desse célebre texto de Kafka, a parábola pode sinalizar que o homem conhece seu objetivo, embora não conheça o caminho para ele, pois desvia a atenção dos fins para a existência do obstáculo, que se torna, ele próprio, a meta exclusiva dos seus esforços”. Ademais, uma “outra abertura possível para o núcleo de significado da peça kafkiana é que o homem do campo se sente impelido pelo desejo de chegar à lei ou à justiça. Nesse aspecto, o personagem pode ser concebido como a representação de uma necessidade reprimida ou alienada que, acompanhando a curva da parábola, se vê fadada ao fracasso”. Por fim, de forma mais concreta, “analisando mais de perto a perspectiva histórica do relato, o texto reflete tensões sociais – por exemplo as que existem entre os indivíduos que ‘têm sede de justiça’ e as autoridades que se negam a atendê-los. Por esse prisma, o sarcasmo kafkiano, que é disfarçado mas corrosivo, se dirige contra uma hierarquia de instâncias fechadas típica da burocracia (principalmente a austro-húngara) com a qual Kafka, o advogado das causas trabalhistas, conviveu, e na qual certamente se inspirou. O longo caminho dessa burocracia (que se estruturou no Império pela mão forte da rainha Maria Teresa, descrita como o ‘maior homem da Áustria’) é a manifestação visível de um poder autocrático, que na narrativa impossibilita ao homem do campo exercer o seu direito”.

Tendo a ficar com as interpretações mais “pé no chão”, como a última das citadas acima. Com as menos complexas, trabalhando à moda da “Navalha” de Guilherme de Ockham (1288–1347), para ser chique. “Diante da Lei” seria um libelo poético contra as burocracias policial e judicial e, em especial, uma denúncia sobre a ausência de acesso à justiça e a impotência – autoinfligida, talvez? – do cidadão em relação a essa falta. Um retrato da absurdez dos processos judiciais, agora “kafkiana” desde o nascedouro, porque mostra a interrupção do acesso dos mais vulneráveis à “Lei” ainda na “porta” do aparelho judicial. Mas seria também um panfleto ou, mais ousadamente, um chamamento à ação? Provavelmente. De toda sorte, sob os prismas sociológico e jurídico, tudo mostra um Kafka conhecedor dos caminhos e das agruras dos jurisdicionados de então.

As coisas mudaram bastante desde os tempos de Kafka, é verdade. São cem anos no meio. No Brasil, por exemplo, sobretudo pós Constituição de 1988, tivemos vários avanços no que diz respeito ao acesso à justiça. Os mecanismos de tutela coletiva do tipo ação civil pública, os juizados especiais, a própria gratuidade da justiça para quem não possa arcar com seus custos, o incremento da Defensoria Pública, a mediação e a arbitragem como meios céleres para solução de conflitos de interesses, entre outras coisas, nos deixam sempre animados.

Mas será que o essencial mudou? Mudou suficientemente? O sistema judicial brasileiro – e de resto, dado o hermetismo característico, quase todos os sistemas judiciais – é ainda algo estranho ao povão. Faltam informações e condições materiais para uma litigância de sucesso. E ainda hoje lutamos contra “porteiros” mudos ou insensíveis. Kafka foi vanguardista a seu tempo. E também premonitório de problemas que ainda hoje enfrentamos quanto ao acesso à justiça, sobretudo para os mais necessitados, homens do campo ou da cidade.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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Crônica

Do velho professor

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Desculpem o trocadilho do título, mas não resisti ao escrever sobre Giorgio Del Vecchio (1878-1970). Ele é um velho conhecido desde o tempo do bacharelado. E foi também de um livro dele, as suas famosas “Lições de filosofia do direito” (Arménio Amado Editor, 1979), que colhi uma mui antiga afirmação de Kant (1724-1804) que não canso de repetir: “Ainda procuram os juristas uma definição do seu conceito de Direito”. Mesmo passados tantos anos, ao invés de ficar antiquada, a assertiva mantém o seu valor.

Giorgio Del Vecchio nasceu em Bolonha, a cidade-mãe das nossas universidades (ao menos é o convencionalmente aceito no Ocidente). Crescendo na vida e após estudos na Alemanha, ele foi dando aulas nas universidades de Ferrara, Sassari, Messina, Bolonha e, finalmente, na Università degli Studi di Roma, La Sapienza, de 1920 a 1953. Foi reitor dessa instituição de 1925 a 1927. Aderiu inicialmente ao fascismo (ninguém é perfeito), mas logo se afastou. Caso curioso, Del Vecchio perdeu sua cátedra duas vezes por razões opostas. Em 1938, por ordem dos fascistas, porque era judeu; em 1944, por imposição dos antifascistas, acusado de simpatizar com o fascismo de outrora. Paciência. Sua primeira obra foi “O senso jurídico” (1902). Por uma questão de gosto, recomendo aqui “Lições de filosofia do direito” (1930) e “História da filosofia do direito” (1950). Ele é considerado um neokantiano. Influenciou muita gente, a exemplo de Norberto Bobbio (1909-2004). Del Vecchio faleceu, já nonagenário, na litorânea Genova.

Cabral de Moncada (1888-1974) – português, mas outro gigante da história da filosofia do direito –, em seu prefácio às “Lições de filosofia do direito” (edição acima referida), afirma: “A construção das ideias de Del Vecchio nasceu em 1902, depois de largos estudos na Alemanha, com o seu primeiro trabalho, intitulado Il sentimento giuridico. Aí encontramos em germe todo o seu ulterior sistema de ideias filosóficas, como este veio a desenvolver-se. Nasceu tal sistema sob o signo do Neokantismo, então em plena ascensão. A influência de Marburgo e as afinidades com o pensamento de Stammler são nele inegáveis. Tal qual este, Del Vecchio atribui também à Filosofia do Direito, como objeto próprio das suas investigações, estes dois temas capitais: a determinação do conceito de direito, e a determinação do ideal jurídico. Que é direito? E como dever ser o direito? Eis aí também as duas preocupações máximas iniciais do filósofo italiano”.

Mas o que eu quero aqui ressaltar é outro aspecto da vida/obra de Del Vecchio. Para mim, ele foi sobretudo um professor, pela carreira e pelo didatismo dos seus escritos. Na sua empreitada para estabelecer um conceito de direito (uma aventura de viés positivista), de estudar os seus fenômenos criticamente e, por fim, de estabelecer como o direito “deve ser” (e aqui aproximando direito e justiça), ele foi um educador à moda antiga. Escrevendo bem, sistematicamente e em forma de síntese. Sem fronteiras que limitassem suas lições ao seu país de nascença, a bela Itália. Embora não abrisse mão de pintar “a própria aldeia”, à moda de Tolstói (1828-1910), Del Vecchio foi didaticamente universal, com suas obras recomendadas nas universidades mundo afora.

Peguemos o caso das “Lições”. O livro é originalmente de 1930. Foi sucessivamente reeditado na Itália. Foi traduzido para o espanhol, francês, alemão, turco, japonês e por aí vai. E para o nosso português, claro. Recebeu prêmios e aplausos. Mas, sobretudo, nas palavras do seu tradutor António José Brandão: “o êxito destas Lições deve-se ao facto de nelas o autor ter sabido, com arte consumada, tornar a Filosofia do Direito acessível a todos os juristas, mesmo àqueles destituídos de formação especializada. Todas as questões que ao jurista como tal interessam foram pelo Professor Del Vecchio filosoficamente enfocadas e tratadas”.

De fato, trata-se de um livro interessantíssimo. Quiçá dois livros em um só. Uma primeira parte/livro tratando da história da filosofia do direito, para mim a mais interessante. E uma “Parte sistemática”, que mais se aproxima, pelo caráter didático, a uma introdução ao estudo do direito.

Bom, eu vou xeretar a parte da história da filosofia. Partindo da aldeia do autor: os capítulos sobre a filosofia jurídica na Itália. Tem bastante coisa sobre os escritores “guibelinos”, sobre Maquiavel (1469-1527) e Vico (1678-1744) e por aí vai. E interessou-me sobretudo o capítulo com o título “Resumo da moderna Filosofia do Direito na Itália”. Moderna ao tempo do velho Giorgio, claro. Não acredito que ele já tratasse de Bobbio, que será o tema da nossa próxima conversa. O velho era professor; e não, vidente.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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O naturalista contemporâneo

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

É a John Finnis (1940-) e ao seu livro “Natural Law and Natural Rights” (1980) que se deve, pelo menos no mundo anglo-saxão, a revitalização do que chamamos de “jusnaturalismo”.

John Finnis nasceu na aprazível Adelaide, na costa sul da Austrália. Obteve o bacharelado na universidade da sua cidade natal. Foi estudar na Oxford University, no Reino Unido. Lá concluiu o seu doutorado, em 1965. Por essa época também ele se converteu ao catolicismo. Filósofo e jurista, versado em ciência política e direito constitucional, trabalhou para o governo australiano. Costumava advogar no seu país e no Reino Unido. Foi professor na Oxford University e na faculdade de direito da University of Notre Dame, no estado de Indiana, EUA. É autor de vários livros, entre eles o já citado “Natural Law and Natural Rights”, “Fundamentals of Ethics” (1983), “Moral Absolutes” (1991), “Aquinas: Moral, Political and Legal Theory” (1998), “Collected Essays of John Finnis” (2011, em cinco tomos) e “Judicial Power and the Balance of Our Constitution” (2018). Finnis é, sem dúvida, no mundo anglo-saxão, o mais importante jusnaturalista dos nossos dias.

Na verdade, Finnis não descura da tradição jusfilosófica anglofônica na qual está inserido, uma jurisprudência analítica que vem desde John Austin (1790-1859), chegando às sofisticadas concepções de direito de Herbert Hart (1907-1992) e Joseph Raz (1939-). Mas, dessa base conceptual, parte em busca, em um viés claramente jusnaturalista, do que chamamos “o bem da humanidade”.

Como anota Robert Hockett (em “Little Book of Big Ideas – Law”, A & C Black Publishers Ltd., 2009), segundo Finnis, há coisas ou comportamentos que contribuem para o “florescimento da humanidade”. E a “nossa obrigação mais geral como seres humanos é não agir contra o que ele [Finnis] chama de ‘realização humana integral’ – o florescimento de todas as pessoas e de todas as comunidades de pessoas. Muito dessa visão fundacional está sumarizada no seu Fundamentals of Ethics. A concepção do direito e das obrigações legais de Finnis emerge dessa sua base ética fundamental. Nessa concepção, a responsabilidade principal de qualquer governo é avançar na realização humana integral, e o direito deve ser considerado como um instrumento nesse progresso. Isso coloca limites tanto formais como materiais sobre o que deve ser considerado como direito válido. Os limites formais são aqueles comumente postos sob a proteção da ‘rule of law’. Os limites materiais dizem respeito ao conteúdo das potenciais leis, princípios e demais normas. Presumivelmente, as normas que são inconsistentes com a realização humana integral são fundamentalmente imorais, e assim não são direito válido”.

Um dos aspectos que enxergo como dos mais intrigantes na filosofia de Finnis gira em torno do comportamento que devem ter as autoridades públicas e os cidadãos em relação às leis consideradas “imorais” ou “injustas”. Para as autoridades, segundo Finnis, não resta dúvida de que elas devem corrigir ou mesmo invalidar tais normas. Mas, para os cidadãos, é diferente. Em regra, eles devem cumprir as normas legais, mesmo que supostamente “injustas”, sob pena de descumprimento da própria rule of law e do enfraquecimento (ou mesmo deterioração) do sistema legal como um todo. Somente em “circunstâncias extremas”, quando a própria autoridade pública age injusta e propositalmente em desfavor do cidadão, uma desobediência civil seria permitida e mesmo moralmente recomendada. Bom, saber que circunstâncias extremas são essas, de que lado na linha estamos pisando, esse é o problema.

Por fim, mais uma observação: o citado Robert Hockett afirma que Finnis se fez, sobretudo pelo seu “Natural Law and Natural Rights”, um dos “quatro grandes” na filosofia do direito anglo-americana contemporânea, ao lado de Herbert Hart, Joseph Raz e Ronald Dworkin (1931-2013), sobre os quais, todos eles, teremos um dia conversado aqui. Eu acho apenas que esse número deveria ser aumentado para cinco ou seis, pelo menos. Ou vocês acham Lon Fuller (1902-1978) e Jonh Ralws (1921-2002) tão ultrapassados assim?

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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Crônica

O sistematizador legal

Por Marcelo Alves Dias de Souza

No mundo anglo-saxão, o israelense Joseph Raz (1939-) é, de fato e de direito, o merecido sucessor de H. L. A. Hart (1907-1992) no que chamamos de positivismo jurídico e, mais especificamente, na corrente denominada jurisprudência analítica.

Joseph Raz nasceu no antigo “Mandato Palestino”, num já tumultuado Oriente Médio, em uma família judia. Raz graduou-se na Universidade Hebraica de Jerusalém em 1963. Ainda em Israel, ele conheceu o seu mentor Hart, que fazia conferências por aquelas bandas. A convite deste (Hart), Raz foi fazer doutorado na Universidade de Oxford. Obteve o título em 1967. Voltou à Jerusalém para dar aulas na Universidade Hebraica, em direito e filosofia. Mas sua “casa” espiritual era mesmo Oxford, para onde retornou e lecionou por décadas. Hoje é professor na Columbia University, em Nova York, e no querido King’s College London – KCL.

Raz é autor de vários títulos de sucesso: “The Concept of a Legal System: An Introduction to the Theory of Legal System” (originalmente de 1970, mas com 2ª edição clássica de 1980), “Practical reason and norms” (1975), “The Authority of Law: Essays on Law and Morality” (1979), “The Morality of Freedom” (1986), “Ethics in the Public Domain: Essays in the Morality of Law and Politics” (1994), “Engaging Reason: On the Theory of Value and Action” (1999), “Value, Respect and Attachment” (2001), “The Practice of Value” (2003), “Between Authority and Interpretation: On the Theory of Law and Practical Reason” (2009), “From Normativity to Responsibility” (2011)” e “The Roots of Normativity” (2022), entre outros.

Alguns desses títulos são ainda hoje badalados. “The Morality of Freedom”, que ganhou vários prêmios, é um grande livro sobre democracia, liberalismo, teoria do estado e a ciência política como um todo. Mas acredito que as principais contribuições de Raz para o direito e a filosofia jurídica estejam em “The Concept of a Legal System”. Na tradução da WMF Martins Fontes, “O conceito de sistema jurídico: uma introdução à teoria dos sistemas jurídicos”, de 2012, colhe-se o desiderato do trabalho: “Três problemas são investigados neste estudo: O que significa afirmar ou negar a existência de um sistema jurídico? Como é possível determinar se uma lei pertence a certo sistema jurídico? Que espécie de estrutura têm os sistemas jurídicos, isto é, quais são as relações necessárias que existem entre as suas leis? O exame desses problemas leva a uma nova abordagem de algumas questões jusfilosóficas tradicionais”.

Como anota Robert Hockett (em “Little Book of Big Ideas – Law”, A & C Black Publishers Ltd., 2009), “Raz ampliou o escopo de sofisticada concepção positivista de Hart, focando não somente nas normas legais, mas também nos sistemas nos quais estas estão inseridas. A relação [de Raz] com Hart é perfeitamente revelada na justaposição dos títulos das mais conhecidas monografias dos dois pensadores – O conceito de direito de Hart de um lado, O conceito de sistema jurídico de Raz de outro”.

Duas coisas, entretanto, devem ser esclarecidas. A primeira é que o mentor Herbert Hart não se concentrou apenas nas normas legais, excluindo do seu interesse o estudo dos sistemas jurídicos/legais, até porque tais normas necessariamente fazem parte de um dado sistema jurídico (do Brasil, por exemplo). Apenas Hart tratou dos sistemas para deles sobretudo retirar a validade das normas. Enquanto que Raz direcionou a sua preocupação diretamente para a natureza dos sistemas, dotados de uma imensa variedade de categorias e articulações, nos quais as normas legais estão hospedadas e de onde retiram suas validades.

Doutra banda, registra o mesmo Robert Hockett, “como outros positivistas, Raz tem enfatizado as distinções conceituais entre as normas jurídicas e as normas morais. Na sua concepção, há pouca interdependência entre os dois fenômenos. Isso não quer dizer, entretanto, que inexiste qualquer imperativo moral sobre aqueles encarregados de criar, manter e trabalhar para o desenvolvimento dos sistemas legais. Na verdade, os seus famosos princípios para a rule of law são, em larga extensão, compatíveis com aqueles enunciados por Lon Fuller [1902-1978] como constitutivos da ‘moralidade do direito’”.

Bom, isso tudo é algo com que eu sempre concordei: o positivismo como método para o estudo do direito como ciência autônoma. E um jusnaturalismo moderado, baseado no consenso e na (suposta) razão humana.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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A terceira via

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Quando fui fazer doutorado (PhD) no Reino Unido, em 2008, o jusfilósofo Ronald Dworkin (1931-2013) andava por lá. Era professor no University College London – UCL. Era muito badalado. Recordo-me de haver ido xeretar uma de suas palestras. Ele faleceu na amada

Londres, de complicações de uma leucemia, não muito tempo depois. Uma pena. Dworkin nasceu em Worcester, Massachusetts, nos EUA. Estudou nas universidades de Harvard (bacharelado e doutorado) e de Oxford. Coisa de primeira qualidade. Foi assessor noJudiciário americano. Advogou em Nova York. Foi professor na Yale University. Sucedeu a H. L. A. Hart (1907-1992) na cátedra de filosofia do direito da Oxford University. Pontificou lá por 30 anos. Foi finalmente professor na New York University e no University College London, além de ter dado cursos em outras universidades mundo afora.

Filósofo, jurista e constitucionalista, Dworkin foi muito atuante no debate público no mundo anglo-saxão, em jornais e em publicações especializadas. Mas Dworkin é sobretudo o autor de alguns clássicos da ciência do direito. “Taking Rights Seriously” (1977), “A Matter of Principle” (1985), “Law’s Empire” (1986), “Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality” (2000) e “Justice for Hedgehogs” (2011) são os mais célebres. É fácil encontrá-los, com os títulos “Levando os direitos a sério”, “Uma questão de princípio”, “O império do direito”, “A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade” e “A raposa e o porco-espinho: justiça e valor”, em edições honestas da Martins Fontes.

A obra de Dworkin é variada. É até difícil de compreendê-la e, muito mais, de resumi-la.

Mas podemos apontar dois núcleos.

O primeiro está na sua defesa de uma justiça distributiva, materialmente igualitária, desenvolvendo um veio que vinha de Aristóteles (384-322 a.C.) e chegava no seu conterrâneo John Rawls (1921-2002). Vai longe Dworkin nessa busca de uma igualdade material. De fato, o princípio da igualdade perante a lei, como um dogma político e jurídico, é ouro. Mas ele não pode ficar apenas no plano normativo. Tem seu lugar, talvez o de maior destaque, na solução materialmente igualitária de casos concretos na vida em sociedade.

E assim chegamos ao segundo aspecto da filosofia de Dworkin. Um jusnaturalismo moderado. Ou, como li em “Little Book of Big Ideas – Law” (A & C Black Publishers Ltd., 2009), de Robert Hockett, “uma terceira via”, entre as visões positivistas e jusnaturalistas.

Metodologicamente, Dworkin trabalha sua teoria do direito “como uma teoria acerca de como os juízes decidem os casos concretos”. Para decidir, os juízes devem considerar o que está na lei e nos precedentes judiciais. Parece óbvio e assim o diz Dwokin em “Levando os direitos a sério” (Martins Fontes, 2002): “as teorias da decisão judicial tornaram-se mais sofisticadas, mas as mais conhecidas ainda colocam o julgamento à sombra da legislação. Os contornos principais

dessa história são familiares. Os juízes devem aplicar o direito criado por outras instituições; não devem criar um novo direito”. E aqui temos uma visão positivista do direito.

Se o dito acima é o ideal, ele nem sempre é possível. Dworkin afirma que as regras do direito “são quase sempre vagas e devem ser interpretadas antes de se poder aplicá-las aos novos casos. Além disso, alguns desses casos colocam problemas tão novos que não podem ser decididos nem mesmo se ampliarmos ou reinterpretarmos as regras existentes. Portanto, os juízes devem, às vezes, criar um novo direito, seja essa criação dissimulada ou explícita”. Dwokin fala em buscar a “melhor interpretação moral”, o “melhor para a comunidade” e, ao fazê-lo, os juízes devem agir estabelecendo normas que, “em sua opinião, os legisladores promulgariam caso se vissem diante do problema”. E aí está o seu viés jusnaturalista.

Todavia, para Dwokin (e temos o semipositivista), “é muito comum que o legislador se preocupe apenas com questões fundamentais de moralidade ou de política fundamental ao decidir como vai votar alguma questão específica. Ele não precisa mostrar que seu voto é coerente com os votos de seus colegas do poder legislativo, ou com os de legislaturas passadas”.

Um juiz não deve mostrar esse tipo de independência total. Ele deve associar sua decisão às decisões que outros juízes tomaram no passado. A força da sua decisão deve estar baseada não só na sua “sabedoria”, mas, também, na “equidade” de tratar casos semelhantes do mesmo modo.

E, dito tudo isso, temos um Dworkin tanto terceira via como igualitário. Grande nome.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

 

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O teórico da justiça

Marcelo Alves Dias de Souza*

O norte-americano John Rawls (1921-2002) talvez tenha sido, para o direito, o mais importante filósofo da segunda metade do século XX. Falo “para” o direito porque ele não era bem um jurista, na acepção de alguém com diploma e prática na área, mas, sim, aquilo que chamamos filósofo ou cientista político. Todavia, em larga medida, suas ideias tomaram conta do direito e das concepções modernas de igualdade e de justiça.

Rawls nasceu em Baltimore, Maryland, em 1921. Bacharelou-se em 1943 pela Princeton University. Alistou-se no exército do seu país a tempo de testemunhar o fim e os dias seguintes à 2ª Guerra Mundial com as bombas de Hiroshima e Nagasaki (o que, dizem, influenciou muito sua vida). Voltou à Princeton para obter seu doutorado em filosofia em 1950. Foi estudar na Oxford University, no Reino Unido, sob a influência de H. L. A. Hart (1907-1992) e Isaiah Berlin (1909-1997). Retornou aos EUA para ser professor, seguidamente, na Cornell University e no Massachusetts Institute of Technology – MIT. Em 1962, achou sua “casa” na Harvard University, onde se quedou pelos cerca de 40 anos restantes de sua produtiva vida. E, de lá para o mundo, foi professor e orientou um montão de novos luminares da filosofia política e jurídica.

Entre outros títulos, Rawls publicou “Uma Teoria da Justiça” (“A Theory of Justice”, 1971), “Liberalismo político” (“Political Liberalism”, 1993) e “O direito dos povos” (“The Law of Peoples”, 1999). Mas é sobretudo por “Uma teoria da justiça”, livro seminal de 1971, que ele é celebrado. Nele, Rawls refunda uma espécie de contratualismo em prol de uma justiça política e econômica que se aparta do utilitarismo em voga, desde os tempos de Jeremy Bentham (1748-1832), entre os pensadores políticos anglo-saxões.

Como lembram os autores de “O livro da filosofia” (Editora Globo, 2011), segundo Rawls, “a chave para uma sociedade promissora é um contrato social justo entre o Estado e os indivíduos”. E para esse contrato social ser justo, as necessidades de todos os indivíduos envolvidos devem ser levadas equitativamente em consideração. Essa justiça não deve ser baseada apenas em critérios de moralidade ou merecimento individual. Até porque prévias desigualdades sociais ou econômicas tendem a levar a mais injustiças, em prol de pessoas físicas e jurídicas ricas ou poderosas, sempre em prejuízo dos já desfavorecidos. “Esse desequilíbrio deve ser corrigido pelas regras que governam nossas instituições sociais, como os sistemas de saúde, eleitoral e educacional”, anotam os mesmos autores. Essas instituições devem ser acessíveis a todos e redistribuir meios e riqueza quando for necessário.

Na base da “teoria da justiça” de Rawls está a metodologia de decisão baseada no “véu da ignorância”, para mim a sua grande sacada. Se o dilema é como promover equitativamente os interesses de todos, devemos antes cooperar para estabelecer os próprios critérios de justiça, as regras societárias que teremos. Segundo Rawls, em tal situação, devemos lançar mão do tal “véu da ignorância” sobre os fatos das nossas vidas (onde nascemos, quem somos, nossa raça, credo, classe social, talentos ou o que fazemos) e perquirir que regra funcionaria melhor para nós – e para qualquer um – sem levarmos em conta nossa posição na sociedade ou na vida. Como explicam os autores de “O livro da política” (Editora Globo, 2013): “se não sei qual será meu lugar na sociedade, meu interesse racional me força a escolher um mundo [ou regras] no qual todos são tratados de maneira justa”. Para Rawls, só regras assim racionalmente formuladas funcionariam bem. Ou, pelo menos, funcionariam melhor.

Ademais, assim, mesmo num ambiente de liberalismo econômico, numa democracia (o melhor dos regimes políticos), num mundo plural e multicultural, porque sabedoras as pessoas da existência de uma estrutura jurídica e social justamente estabelecida, teríamos uma sociedade coesa (ao seu modo), satisfeita e promissora.

Por fim, anoto: isso – a excelência da tomada de decisões ou formatação de regras sob o “véu da ignorância” – vale tanto para a sociedade como um todo, como para a dinâmica de pequenos grupos. Já testei a fórmula. Podem testar também. Não vão se decepcionar.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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A finalidade do direito penal é limitar o poder de punir

Por Daniel Pessoa* – Texto resposta**

A pena é nada mais que o exercício do poder, isto é, um ato político, como dizia Tobias Barreto (em “Menores e loucos e fundamentos do direito de punir”, de 1884). O direito penal – como qualquer especialização do direito – tem (ou deveria ter) a principal finalidade de coibir os arbítrios e abusos do poder político (ou de outra esfera). No caso em questão, refrear o poder de punir em face das pessoas que são acusadas ou condenadas por cometerem crimes, com o objetivo de reduzir os danos do poder sobre as pessoas.

Toda justificativa jurídica para a prisão não passa de enganação que as (pessoas) operadoras do direito usam perante a Sociedade para tentarem se diferenciar das ideologias punitivistas e policialescas que as dirigem, a partir dos poderes políticos e econômicos. Ainda mais se a justificativa é por teorias produzidas na Europa, em séculos passados. Porque a ideia de “retribuição” do mal causado (crime) com outro mal (pena de prisão) para “prevenir” que o próprio criminoso ou outras pessoas em geral cometam crimes, mostrou-se desconectada da realidade desde a época em que foi formulada.

A prisão nunca cumpriu a “promessa”, seja aqui ou acolá, ontem ou hoje. Nunca funcionou para reduzir a quantidade de crimes, tampouco para conter a criminalidade – notadamente, a macro e a organizada – ou alguém duvida que os índices só tenham crescido, desde os tempos passados para hoje!? A prisão muito menos se prestou para “ressocializar”, salvo as raras exceções individuais (que, por isso mesmo, não são parâmetros para “justificar”).

Os dados e informações acerca do encarceramento em massa no mundo e no Brasil evidenciam toda a seletividade da política criminal e do direito penal, a fim de aprisionar as pessoas pretas, pobres ou politicamente divergentes, como forma de controle social e de manutenção do estado de coisas. Recomendo, para quem tiver acesso e tempo para isso, os documentários “13ª Emenda” (EUA), “Justiça” e “Juízo” (Brasil). E verificar o que consta nos números do Departamento Penitenciário Nacional (www.depen.gov.br).

As teorias de justificação da pena de prisão também ocultam as origens da proposta de privação de liberdade como punição. A prisão como pena no lugar das punições corporais (suplício, torturas, mutilações e morte) emergiu lá na Europa durante o processo histórico de mudança do feudalismo para o capitalismo. Sua origem é associada à necessidade de mão de obra mais barata e subalterna ou subjugada – coisa que não era possível com a destruição dos corpos, anteriormente –, como nos mostram Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (“Manual de Direito Penal brasileiro”, 2020), Alessandro de Giorgi (“A miséria governada pelo sistema penal”, 2006), Mariel Muraro (“Sistema penitenciário e execução penal”, 2017), dentre outras.

Defender e justificar a prisão desconhecendo a realidade daqueles dados e informações não é só uma mera visão idealizada da pena e do direito penal, mas efetivamente comprometida com todas as ideologias que permeiam aquelas teorias alienantes e coloniais, que buscam negar o que é injustificável pelos números e pela realidade.

Tendo em vista que a prisão é um mecanismo que está (im)posto e que superá-la é algo ainda distante, em razão da hegemonia de poderes em favor dela, é nosso dever lutar para que, por enquanto, a Constituição Federal de 1988 – que é a Lei maior e posterior ao Código Penal e à Lei de Execução Penal – seja concretizada quanto ao seu papel dirigente e normativo acerca das punições criminais, no sentido de que a privação de liberdade seja o único direito afetado das pessoas condenadas por infrações que geram prisão. Que possamos trabalhar para implementação cada vez mais das penas alternativas – que produzem efeitos de redução da reincidência, de fato (a prisão não faz isso). Para substituir as prisões pelas Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC), onde não ocorrem violações de direitos e há redução da reincidência, também. Enfim, que as operadoras de direito no sistema de justiça criminal cumpram com as suas funções de fiscalizar e coibir os arbítrios e abusos de poder nas prisões.

Obviamente, a opinião aqui manifestada, com base nas teorias críticas do Direito e da Criminologia, é uma frente de disputa em face das outras opiniões punitivistas e policialescas que, lamentavelmente, predominam na Sociedade e junto às operadoras de direito. Mas a questão mesmo que se coloca é “quem vigia os vigias?” Arrisco dizer que somos nós, a Sociedade. Como fazer? Aí é outra questão que não dá para tratar agora.

*É professor de Execução Penal na UFERSA.

**Texto em contraponto ao artigo Qual a finalidade?

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.