Categorias
Reportagem

Dom Pedro II, o Nerd

Por Bruno Vaiano

Super Interessante

Em 1784, o camponês Bernardino da Mota Botelho corria atrás de uma vaca fugida às margens do riacho do Bendegó, na zona rural do município de Monte Santo, no sertão da Bahia. Lá, encontrou um pedaço de ferro maciço de 1,5 m de largura e 0,7 m de altura; só um pouco menor que a vaca. Estava apoiado em 22 cm de ferrugem. O rapaz não sabia, mas a coisa de 5.300 kg tinha caído do céu. Era um meteorito – na época, o segundo maior do mundo (hoje, é o 16º, e o maior é um de 60 toneladas, na Namíbia).

O governador baiano, Rodrigo José de Menezes, achou que era história de pescador – não havia registro de uma única jazida de ferro naquela região –, e ordenou a extração imediata do tal “aborto da natureza” para examiná-lo e remeter o minério a Portugal. Faltou combinar com o aborto: puxado por uma dúzia de bois, o meteorito subiu só 180 metros antes de rolar de volta para o leito do riacho. Lá ficou. E põe ficou nisso. O meteorito do Bendegó só voltaria aos holofotes em 1810, pelas mãos de um químico inglês, Aristides Franklin Mornay. Ele era uma das únicas pessoas no Brasil colonial que sabiam que meteoritos existiam (e que eles de fato caíam do céu). Graças a Mornay, a notícia correu.

O Bendegó já era razoavelmente famoso na Europa em 1887, quando D. Pedro II visitou a Academia Francesa de Ciências, do qual foi membro, e alguém lhe perguntou: “E o tal meteorito? Quando vocês vão tirar de lá?”

O imperador, que foi o primeiro astrônomo do Brasil (ele até descobriu uma estrela em seu observatório particular), ordenou a remoção imediata do Bendegó – o que exigiu a construção de um carrinho off road, capaz de rodar tanto em solo quanto em trilhos. Ele foi arrastado por 119 quilômetros e 126 dias até a ferrovia mais próxima, e então rebocado de trem ao porto de Salvador, onde embarcou no vapor Arlindo para o Rio de Janeiro.

Foi assim que Bendegó foi parar na recepção do Museu Nacional. Mas ele não foi a única contribuição de Pedro II à instituição. Na verdade, o Paço de São Cristóvão – prédio em que ficava o museu até o incêndio em setembro de 2018 destruir 92,5% do acervo de 20 milhões de itens – foi a casa e o gabinete de Pedro II até a Proclamação da República, em 1889.

Durante os 49 anos de reinado, o museu, fundado em 1818, naturalmente operou em outro prédio. A transferência só aconteceu depois que Pedro II morreu, por uma questão prática: o imperador doou ao museu toda sua coleção de ciências naturais, que continha minerais, plantas, aves empalhadas, insetos, peles, crânios… (também houve doações para o IHGB e a Biblioteca Nacional). Era tanta coisa que o diretor Ladislau Neto achou mais fácil mudar o museu para a casa dele do que a casa dele para o museu.

Em 1890, o jornal O Paíz publicou um inventário: “Relíquias de Herculano e Pompeia (as cidades que o Vesúvio soterrou). Estatuetas, hermas, caçarolas ou panelas, vasos, trabalhos de cerâmica, de ferro e de bronze. Armas modernas e antigas da Ásia e da África, iatagãs [isto é, facões] recurvados dos ferozes guerreiros sírios e árabes, espadas e punhais de aço legítimo de Damasco, escudos e elmos. A antropologia indígena tem objetos de estudo nas múmias e nas igaçabas [potes de cerâmica], nos corpos e nas cabeças mumificadas ou pelo tempo ou pela arte”.

Seu lado acumulador foi só uma parte do pacote nerd. Pedro II era desengonçado, tinha voz e pernas finas (as panturrilhas eram engrossadas nos retratos). Evitava os jantares da corte; debochava sem dó dos bailes e recepções diplomáticas. Foi um burguês vitoriano entusiasmado com os gadgets de sua época, e que se sentia estranho no papel de monarca. Em 1862, escreveu: “Nasci para consagrar-me às letras e às ciências, e, a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República à de imperador”.

Visitei o arquivo do Museu Imperial em Petrópolis, no Rio de Janeiro, e, com uma ajudinha da historiadora Alessandra Fraguas, vi a correspondência, os diários e os bilhetes do imperador e de sua família – um acervo de dezenas de armários com0 os quais Alessandra trabalhou entre 2008 e 2015. Hoje, ela dá os toques finais em seu mestrado, em que defende que Pedro II foi um autêntico cientista, crítico literário e intelectual – e não só um entusiasta que saía nos retratos segurando um livro para cultivar sua imagem. Conheça os melhores momentos do imperador nerd.

Volta ao mundo em 80 dias

Pau a pau com os EUA: os primeiros telefones da Casa Branca foram instalados no mesmo mês que a invenção chegou ao Paço de São Cristóvão. (Ilustração: Arthur Duarte/ Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

Pedro II gostava de viajar. Fora do País, fazia questão de ser tratado só como Pedro d’Alcântara. Passeava vestindo um sobretudo preto surrado, um cachecol e um chapéu baixo, de aba curta. Em uma mão, carregava um guarda-chuva, na outra, uma maleta de couro. Se virar não era problema: ele falava inglês, alemão, francês, espanhol, italiano e até latim. Lia hebraico, grego, árabe e sânscrito (na Guerra do Paraguai, parou para discutir a linguística do tupi-guarani comum prisioneiro).

Graças à equipe do Arquivo Histórico do Museu Imperial, os diários que ele escreveu nessas viagens foram aceitos pelo projeto Memória do Mundo da Unesco em 2013 – o que equivale a dizer que eles são Patrimônio da Humanidade, só que de papel em vez de tijolo.

A primeira viagem internacional de D. Pedro II, uma turnê de dez meses pela Europa, começou em 12 de junho de 1871, em Lisboa. O rei D. Luís I de Portugal, seu sobrinho, ofereceu hospedagem no palácio; o tio não gostou: “Deixe-me gozar esta liberdade de simples cidadão; estou farto de cerimônias e etiquetas”. Ele exigiu passar o período de quarentena (precaução contra febre amarela) no porto com os demais viajantes, em um edifício-dormitório chamado lazareto. O objetivo – além de evitar privilégios só por sua posição – era escapar da horda de nobres que veio recebê-lo. Até que deu certo: às 11h12 da manhã, fez uma anotação antissocial no diário: “Estou no lazareto. Ufa! Custou-me a desvencilhar-me das cerimônias, mas tudo correu bem”.

Sua viagem mais famosa, a segunda, foi uma meia-volta ao mundo de um ano e seis meses, entre 1876 e 1877. Ele visitou os EUA, a Europa, a Rússia, o Oriente Médio e norte da África. Em folhas de bloquinho avulsas, com o brasão dos hotéis em que se hospedava, D. Pedro II registrava tudo que via com precisão numérica. Num vagão de trem que se aproximava de Salt Lake City, nos EUA, em 1º de maio de 1876, ficou fascinado pelas máquinas que limpavam a neve da ferrovia: “Vi um rompe-neve que puxado por 10 ou 12 locomotivas vai rompendo neve de 6 pés de altura com a rapidez de 33 metros em 50 segundos”. Após vencer o mau tempo, chegou à cidade e bateu papo com um cacique de uma seita poligâmica. Não havia assunto que não o interessasse.

Em três meses, D. Pedro II percorreu 30 dos 50 Estados americanos (mais uma passada em Montreal, no Canadá). Visitou escolas, fábricas, manicômios, prisões, hospitais, bibliotecas, teatros e instituições religiosas. “Quando voltar à pátria”, disse o editorial do jornal Herald, “saberá mais acerca dos EUA que dois terços dos membros do Congresso”. Em Boston, pediu US$ 0,50 ao cocheiro para visitar um monumento à Guerra da Independência. Ele não tinha moedas no bolso. O historiador que deveria acompanhá-lo chegou pouco depois e, estranhando a ausência de uma comitiva, se aproximou de Pedro II e perguntou: “Você viu o imperador do Brasil?”

Outro causo famoso foi na Exposição Universal realizada na cidade de Filadélfia. Em uma área do tamanho de 290 campos de futebol, ela reuniu 60 mil expositores de 37 países em 250 pavilhões. Era um evento para exibir todas as novas tecnologias da época. A cerimônia de abertura foi conduzida pelo presidente Ulysses Grant e… D. Pedro II. E lá ocorreu seu encontro mais famoso com Alexander Graham Bell. Os dois haviam se conhecido duas semanas antes, em Boston (onde Bell havia implantado uma das primeiras escolas de surdos-mudos do mundo). Na exposição, o imperador encontrou o inventor esquecido em um canto. Ele explicou que o tal telefone, a invenção que acabara de patentear, não estava chamando a atenção no meio da máquina de escrever, da máquina de costura e do ketchup Heinz – entre outras novidades.

Para ajudar, o imperador resolveu testar o aparelho. Afastou-se 100 metros de Bell, pôs o cone metálico no ouvido e ouviu a voz do amigo recitar Shakespeare do outro lado. Foi um susto: “Meu Deus, isto fala!” Graham Bell, em 1911, contou o resto da história: “Repentinamente ouvi o estampido de pessoas se aproximando, e lá estava Dom Pedro, correndo de um jeito bem inadequado para um imperador”. Foi aí que o telefone finalmente chamou atenção na feira, de acordo com o próprio inventor.

Um ano depois, já havia telefones ligando a Quinta da Boa Vista às casas dos ministros. Esses aparelhos, os primeiros da América Latina, foram instalados ao mesmo tempo que os da Casa Branca, em novembro de 1877. Em 1880, já estava fundada a Brazilian Telephone Company.

OS CONTATINHOS DO IMPERADOR

Indiana Jones: em 1876, Pedro subiu o Rio Nilo até o Sudão. E reclamou da conservação dos monumentos. Ilustração: Arthur Duarte/ Design: Juliana Krauss/Superinteressante

Pedro II foi um cara teimoso. O escritor francês Victor Hugo, autor de Os Miseráveis e ídolo do imperador, era republicano com uma quedinha pelo socialismo. Ele não era o tipo de cara que se encontraria com um monarca, e de fato negou o convite para vê-lo. Diante do “não”, Pedro II bateu na porta da casa dele às 9 da manhã de um dia de semana, sem aviso prévio. E conseguiu passar uma boa impressão. Eles acabaram tão amigos que, certa vez, o neto de Victor Hugo, no colo do brasileiro, perguntou: “É esse aqui o imperador?” E Pedro II retrucou: “O único imperador aqui é o seu avô”.

O imperador (ou não) também tentou passar na casa de Darwin, mas ele estava viajando. Ganhou um biscoito do naturalista mesmo assim: “O imperador faz tanto pela ciência que todo sábio é obrigado a demonstrar a ele o mais completo respeito.” Foi um dos primeiros a reconhecer o trabalho de Louis Pasteur, e financiou a fundação do Instituto Pasteur. Forneceu centenas de exemplares para o acervo de história natural de Harvard, mantido pelo lendário naturalista Louis Agassiz. Seu atestado de óbito foi assinado pelo neurologista Jean Charcot, inspiração de Freud. No Egito, avisou o quediva Ismail Paxá, o chefe de Estado, que os monumentos estavam mal preservados. Ele, agradecido pela atenção, presenteou o imperador com a múmia de Sha-amun-em-su – que, ironicamente , pegou fogo em 2018.

O imperador também financiou duas mulheres: uma delas, Maria Augusta Generoso Estrela, fez medicina em Nova York. Um de seus bolsistas mais famosos foi o pintor Pedro Américo. A única exigência, além da prestação de contas trimestral, era que os bolsistas voltassem ao Brasil após terminar os cursos.

Pedro II sonhava em tornar o País uma potência técnico-científica e considerava a escravidão uma vergonha. Governou com a mesma dedicação de CDF que fez todo o resto, mas não escondia o cansaço e falta de identificação com o cargo. Quando ele foi deposto pelos republicanos, sentiu, ao mesmo tempo, tristeza e alívio. “O rompimento abrupto com o Brasil foi um sofrimento.

Por outro lado, foi o período da vida em que ele pôde ser ele mesmo”, diz Alessandra Fraguas. De fato: quando a República foi proclamada, em 1889, o imperador fez questão de ser deportado com seu professor de sânscrito.

Pedro de Alcântara, sem títulos, morreu de pneumonia, aos 66 anos (mas com cara e barba de 80) em um quarto de hotel em Paris, lotado de livros até a boca. Era 5 de dezembro de 1891, três dias depois de seu aniversário. Em questão de horas, a recepção recebeu 2,5 mil telegramas e mais de cem coroas de flores. O presidente da república francesa, para irritação dos republicanos brasileiros, velou seu corpo com uniforme de marechal e honras de chefe de Estado.  Um cortejo de 200 mil pessoas percorreu Paris. Ainda bem que ele estava morto, porque, vivo, teria odiado: com 15 anos, após um dia de celebrações nas ruas do Rio, anotou: “Quanto me custa um cortejo! Agora, façam-me o favor de me deixarem dormir”.

Fontes: Livros D. Pedro II: ser ou não ser, de José Murilo de Carvalho; D. Pedro II e o século XIX, de Lídia Besouchet; As Barbas do Imperador, de Lilia Moritz Schwarcz; 1889, de Laurentino Gomes. Documentos originais consultados: AGP-XLVIII-1-03 (s/d), do Arquivo Grão Pará. M.183-DOC.8365, I-DAS 8.6.1891 PII.B.C, do Museu Imperial/Ibram/Ministério da Cidadania. Os diários de Pedro II estão transcritos em BEDIAGA, Begonha. “Diário do Imperador D. Pedro II (1840-1891)”. Petrópolis: Museu Imperial, 1999.

Categorias
Reportagem

Por que a monarquia caiu no Brasil?

Pintura colorizada de Dom Pedro II – Wikimedia Commons

Por Wagner Gutierrez Barreira

Aventuras na História

O vapor Alagoas, que levava a família imperial para o exílio em novembro de 1889, afastava-se do continente sul-americano para o mar aberto, ao largo da costa da Ilha de Fernando de Noronha. Emocionados, dom Pedro e seus parentes resolveram enviar uma última mensagem à pátria.

Apanharam um pombo a bordo e discutiram o conteúdo de seu derradeiro recado em território brasileiro. Escolheram uma única palavra – saudade – e soltaram o bicho, que deveria voar em direção ao país com a homenagem singela.

Mas o pombo não tinha vocação para correio. Suas asas haviam sido aparadas. O resultado: a “saudade” foi ao fundo do oceano com seu portador, a poucos metros do navio.

Talvez a cena da última tentativa de comunicação entre a família imperial e o povo brasileiro funcione como metáfora do que foram os anos da monarquia. As intenções sempre eram as melhores. As atitudes, por vezes desastrosas.

O órfão da nação

O menino tinha apenas 5 anos quando foi arrancado da cama e levado da Quinta da Boa Vista para o Paço Imperial do Rio de Janeiro. Assustado, chorava sem parar, encolhido no banco de trás da carruagem. No caminho, o veículo foi parado por populares, que tiraram os cavalos e se encarregaram de levar eles mesmos a carga preciosa ao seu destino. Havia cheiro de pólvora, vindo de tiros de artilharia.

Uma multidão tomava as ruas. O pequeno Pedro, tornado imperador do Brasil naquela noite de 7 de abril de 1831, ocuparia o lugar do pai, que acabara de abdicar. Sua mãe, Maria Leopoldina, havia morrido quando ele era um bebê. Enquanto o garoto era levado ao paço, Pedro I já estava a bordo da fragata inglesa Warspite. Pai e filho nunca mais se viram outra vez.

A abdicação de D. Pedro I / Wikimedia Commons

Por quase meio século, o chamado “órfão da nação” ocuparia o papel de fiador do império. O golpe que lhe garantiu a maioridade aos 14 anos transformou Pedro de Alcântara no condutor do Segundo Reinado. Enquanto os vizinhos latino-americanos se fragmentavam em pequenas repúblicas, comandadas por caudilhos, o Brasil, grande e unido, era visto pelo resto do mundo como uma ilha de civilização em meio à barbárie.

Pedro foi criado por tutores (o primeiro deles foi o Patriarca da Independência, José Bonifácio) e por funcionários do palácio. Sua formação foi uma só: seus professores trataram de lhe ensinar como ser magnânimo, justo, educado, comprometido e fiel ao Brasil.

Pedro cumpriu à risca o que lhe foi ensinado. Quando morreu no exílio, aos 66 anos, em 1891, seu obituário no jornal The New York Times afirmou que ele “foi o mais ilustrado monarca do século”.

Dom Pedro II foi um escravo de seu país desde a abdicação de seu pai. Seus passos eram vigiados, suas atividades se transformavam em relatórios analisados no Parlamento. O Marquês de Itanhaém, o tutor que sucedeu Bonifácio, preparou um regulamento para o garoto que incluía acordar diariamente às 7 da manhã. A partir daí, cada hora tinha uma atividade específica e até as conversas seguiam um tema definido.

A rubrica “diversão” durava duas horas diárias. O dia acabava às 21h30 e o sono era precedido de mais leituras. O objetivo do tutor, como relata José Murilo de Carvalho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, era criar um paladino.

“Itanhaém queria formar um monarca humano, sábio, justo, honesto, constitucional, pacifista, tolerante”, afirma Carvalho na biografia D. Pedro II. “Isto é, um governante perfeito, dedicado integralmente a suas obrigações, acima das paixões políticas e dos interesses privados.”

A vida pessoal de Pedro, como se vê, não pertencia a Pedro. Visitas de parlamentares para checar in loco a educação do príncipe eram comuns. O Parlamento recebia relatórios sobre os avanços do futuro monarca. O de 1837, por exemplo, dava conta que Pedro falava e escrevia em francês e era capaz de traduzir do inglês.

Mas, como registra José Murilo de Carvalho em seu livro, o deputado Rafael de Carvalho criticava a falta de exercícios e divertimento. “Segundo os observadores, era um menino tímido, ensimesmado e, seguramente, muito carente de afeto”, definiu o historiador.

O jovem Dom pedro II / Crédito: Wikimedia Commons

Imperador na puberdade, dom Pedro logo encontrou uma palavra que o acompanharia ao longo de toda a vida para descrever as cerimônias, rapapés e atividades inerentes ao mandato: “maçada”.

Fez uso dela ao comemorar seu primeiro aniversário na condição de imperador, quando anotou em seu diário, depois de um dia que começou às 7 da manhã e incluiu missa, te-deum, beija-mão e teatro: “Agora, façam-me o favor de me deixarem dormir. Estou muito cansado, não é pequena a maçada”. Diversos diplomatas, ao longo de seu reinado, observaram o tédio que brotava do imperador brasileiro. Sobravam palavras como triste, infeliz e enfadado para descrevê-lo. Para Carvalho, porém, tratava-se de uma máscara. “O laconismo e o aparente enfado eram, sem dúvida, recursos de que o rapaz fazia uso para acobertar a enorme insegurança.”

Talvez o golpe mais duro na vida do jovem imperador tenha sido seu casamento – e a vida em família. Para começo de conversa, encontrar uma noiva foi tarefa complicada. O imperador governava um país distante e atrasado. Não havia no Rio de Janeiro nada que nem de perto lembrasse uma corte (diga-se, os títulos nobiliários do império brasileiro não eram herdados).

A cidade era impraticável no verão – e ainda havia a fama de garanhão do pai de Pedro II. Para piorar, o imperador era um sujeito alto e de lindos olhos azuis, mas sua voz… “Bastava que abrisse a boca para que essa boa imagem inicial rapidamente se esvanecesse: a voz era aflautada, fina e aguda, como em falsete, mais própria de um adolescente em início da puberdade do que de um adulto”, registra o jornalista Laurentino Gomes no recém-lançado 1889.

A princesa carola

O encarregado de encontrar uma princesa para dom Pedro II, Bento da Silva Lisboa, rodou a Europa por dois anos em busca de uma candidata. Acabou por negociar com o rei Fernando, das Duas Sicílias, o casamento do imperador com sua irmã mais nova, Teresa Cristina. O ramo Bourboun de Fernando era uma casa de pouco prestígio na nobreza europeia e o rei tinha fama de déspota. Ainda assim, o noivo gostou do que viu ao receber um retrato da futura imperatriz.

A achou “mui bela”. O casamento foi feito por procuração, e, um século antes da invenção do Photoshop, Pedro não demoraria a se arrepender do comentário. Quando Teresa Cristina chegou ao Rio, em 3 de setembro de 1843, o imperador ficou mui decepcionado.

Ela era quase 4 anos mais velha, baixa, manca e feia. “Enganaram-me, Dadama”, queixou-se à sua aia. Depois, chorou no ombro do mordomo imperial. Do casamento nasceu Afonso, em 1845, que morreu aos 2 anos. No ano seguinte chegou Isabel e, depois, Leopoldina. Em 1848 nasceu Pedro Afonso, que faleceu ainda bebê.

O imperador ofereceu às filhas o mesmo ritmo de estudos a que foi submetido na infância. “A rotina diária de estudos prolongava-se por nove horas e meia, seis dias por semana. Incluía aulas de latim, inglês, francês e alemão, história de Portugal, da França e da Inglaterra, literatura portuguesa e francesa, geografia e geologia, astronomia, química, física, geometria e aritmética, desenho, piano e dança”, escreve Laurentino Gomes. “Mais tarde, passaram a incluir também o italiano e o grego, história da filosofia e economia política. No começo, o imperador encarregava-se pessoalmente das aulas de geometria e astronomia. Chegou a escrever um tratado sobre astronomia para as princesas.”

Tanta cultura assim, porém, acabou fazendo mal às moças. A historiadora Mary del Priore, autora de O Castelo de Papel, sobre Isabel e seu marido, Gastão de Orléans, o Conde d’Eu, afirma que a erudição não deixou marcas na princesa Isabel. “Horas de aulas particulares massivas não significam a justa apreensão da matéria”, diz Mary. “Que o diga a cartinha enviada ao pai quando chegou ao Recife: ‘O que mesmo haviam feito por lá os holandeses?’ Ela não se lembrava mais.” A historiadora vai além: “Suas leituras eram censuradas pelo pai e pelo marido e seus melhores conhecimentos eram focados na vida doméstica”.
O casamento de Isabel, tal como o do pai, foi um grande arranjo. Gastão de Orléans, filho do Duque de Namours, chamava a futura esposa em correspondência com o pai de Negócio nº 1 (o Negócio nº 2, claro, era a princesa Leopoldina, que se casaria com seu primo).

Tal como Pedro, Gastão não gostou da prometida. Em carta à irmã, descreveu a noiva em tom pouco lisonjeiro: “Para que não te surpreendas ao conhecer minha Isabel, aviso-te que ela nada tem de bonito; tem sobretudo uma característica que me chamou a atenção. É que lhe faltam completamente as sobrancelhas. Mas o conjunto de seu porte e de sua pessoa é gracioso”.

Mesmo assim, toda a correspondência e a pesquisa historiográfica posterior mostra que o casal era apaixonado e fiel. Havia apenas um problema – e gravíssimo. Isabel não engravidava. A primeira gestação da princesa ocorreu quase dez anos depois do casamento, e no lugar errado. O casal estava na Europa.

O contrato pré-nupcial obrigava que o herdeiro do trono nascesse no Brasil. Atravessaram o Atlântico e no dia 25 de julho de 1874 Isabel teve as primeiras contrações. “Mãe e filho passaram 50 horas em dores e sofrimento”, relata Mary del Priore. A criança, uma menina, morreu no útero.

Para retirá-la – e salvar a vida da princesa – os ossos da feto, inclusive os do crânio, foram quebrados. O episódio dá início a um triste distanciamento entre Isabel e o pai, a quem ela culpou pela viagem de volta ao Brasil. Isabel e o marido mudaram-se para Petrópolis. A perda do bebê radicalizou a carolice da princesa, que se ligou cada vez mais à família e à religião. O casal teve mais três filhos.

O imperador não gostava do genro, considerado liberal demais. Na Guerra do Paraguai, Gastão se ocupou de perseguir Solano Lopes depois que o futuro Duque de Caxias tomou Assunção. Uma de suas primeiras providências foi abolir a escravidão no país vizinho.

A imprensa, a quem dom Pedro II permitia uma liberdade raramente vista no país, via em Gastão um estrangeiro que tinha os olhos grandes no império brasileiro e manipulava a mulher. Além disso, o culpava de ganhar dinheiro explorando pobres nos cortiços no centro do Rio de Janeiro, que alugava.

Falta de apoio

Nas narrativas tradicionais sobre o Segundo Reinado, cabe a Isabel papel preponderante. Ela era “A Redentora”, responsável pelo grande gesto do fim do século 19, a abolição da escravidão. A Lei Áurea, aliás, é um requinte de minimalismo com seus dois artigos curtos: abole-se a escravidão e revogam-se as disposições em contrário.

Na prática, não foi bem assim. Em 13 de maio de 1888, Isabel perdeu o apoio do último grupo que sustentava a monarquia, os fazendeiros, ainda que, como um canto do cisne, seu gesto tenha levado a monarquia à sua fase mais popular no Brasil. “Vossa alteza redimiu uma raça mas perdeu seu trono”, anteviu o Barão de Cotegipe, um dos últimos chefes de governo do império. A propósito, é de Cotegipe uma das boas frases sobre os estertores da monarquia brasileira: “Não precisamos ir para a República; ela vem para nós”.

 Na prática, Isabel estava isolada. Os jornais a tratavam por carola. O fato de Gastão de Orléans ser francês ajudava os propagandistas do temor de que o Brasil poderia ser governado por um estrangeiro – e a princesa submissa ao marido ajudava na avaliação. Gastão, em sua correspondência com o pai, atestava essa visão: “Ela estava habituada a nunca ter vontade”, escreveu.

“O campo estava livre para exercer todas as audácias de seu caráter.” O próprio dom Pedro II não via na filha a melhor pessoa para assumir o papel de imperatriz. Deixava-a à margem das decisões da política. “A impressão que se tem, ao estudar a história do Segundo Reinado, é que dom Pedro nunca acreditou de fato que a filha pudesse assumir o trono”, afirma Laurentino Gomes.

Quando o imperador se mostrou preocupado com o futuro da monarquia brasileira e perguntou ao seu ministro José Antonio Saraiva o que seria o reino de Isabel, ouviu como resposta: “O reinado de vossa filha não é deste mundo”. Uma óbvia indicação de que a carolice da sucessora não encontrava eco no Brasil do fim do século 19.

De acordo com Mary del Priore, não há nada que indique que dom Pedro tenha intencionalmente alijado Isabel do poder. “Mas não há dúvidas, comprovadas pela correspondência do Conde d’Eu com a França, que ele nunca incentivou o casal a ter envolvimento político maior, quer participando das reuniões ou das entrevistas com o ministério, quer circulando pela cidade para angariar simpatias.” Ao contrário, diz Mary, dom Pedro não se importou quando o casal se afastou da corte para morar em Petrópolis. “Onde cultivaram poucas amizades e contatos, que lhes faltaram no momento do golpe.” Em defesa do imperador, diga-se que Isabel tinha ojeriza à política.

Em carta ao pai, como regente em uma das viagens de dom Pedro ao exterior, Isabel contou como organizara a agenda: “Já marcamos as audiências para as quintas-feiras seguida de despacho; as recepções para as segundas e o corpo diplomático para as primeiras terças dos meses”, registrou. “Por ora, eis meus únicos atos oficiais. Quem me dera não ter nenhum a fazer!!!” Durante suas viagens pelo país, as anotações em seu diário têm pouco espaço para discussões políticas, mas brotam comentários sobre jardins, concertos e jantares.

Contra o Terceiro Reinado nas mãos de Isabel também pesava uma questão pessoal. Desde a regência que substituiu dom Pedro I, havia alternância de poder, ainda que as eleições fossem viciadas. Mas nenhuma mulher podia votar no século 19. Mesmo que Portugal, de onde o Brasil herdou o ordenamento legal da monarquia, permitisse que mulheres assumissem a coroa, uma presença feminina no trono incomodava. “No Brasil, conservador e patriarcal, dom Pedro sabia que o exercício político de Isabel era tarefa difícil”, afirma Laurentino Gomes. “Uma mulher no trono seria um desafio enorme. O imperador manteve a princesa próxima do trono apenas dentro dos limites do protocolo.”

Dom Pedro tinha clareza de que emplacar a filha como sucessora era uma tarefa complicada. E a história mostra que ele não se empenhou muito em mudar esse destino. “Nunca pareceu interessado em preparar um terceiro reinado, para a filha ou para dom Pedro Augusto (acima), o filho mais velho de Leopoldina”, anota José Murilo de Carvalho na biografia do imperador. “Educou Isabel como tinha sido educado, mas não lhe entregou o governo nem mesmo quando já não tinha condições de governar.” Para a historiadora Mary del Priore, o empenho de dom Pedro na sucessão simplesmente não existiu.

“Sem agenda definida para o império, acho difícil imaginar que, tal como outros imperantes, dom Pedro tivesse interesse em organizar a transição. Em coroas europeias, essa era uma preocupação permanente”, afirma Mary. “Mas não consegui identificar, na relação de dom Pedro com o casal D’Eu, nenhum impulso de ajuda ou incentivo nesse sentido.

Imperador republicano

Para complicar ainda mais a aspiração de Isabel, dom Pedro não parecia muito preocupado em perder o trono. Seus momentos de vida mais felizes ocorreram quando ele deixou o peso da farda de imperador para tornar-se apenas o cidadão Pedro de Alcântara, como gostava de ser tratado em suas viagens internacionais. Há evidentes sinais de que, para ele, a República era algo inevitável no Brasil. “Aparentemente, dom Pedro se resignou à marcha da história”, afirma Laurentino Gomes.

De fato, em algumas correspondências, o imperador não esconde que vestiria melhor o figurino republicano. Em seu diário, em 1862, muito antes da explosão do movimento pela República no Brasil, ele anotou: “Nasci para consagrar-me às letras e às ciências, e, a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou de ministro à de imperador”.

Quadro de Benedito Calixto retratando a Proclamação da República / Wikimedia Commons

Quando o golpe que levou à República eclodiu no Rio de Janeiro, dom Pedro estava em Petrópolis. Poderia ter fugido para o interior e comandado a resistência. Poderia ter parlamentado com o marechal Deodoro da Fonseca, seu amigo e, ainda que alçado a líder do movimento, sem grandes pendores republicanos. Mas ele simplesmente se acomodou e aceitou os fatos. “O imperador mantinha-se abúlico e fatalista”, descreve José Murilo de Carvalho em D. Pedro II. “Quando lhe disseram que a República já podia estar proclamada, respondeu: ‘Se for assim, será a minha aposentadoria. Já trabalhei muito e estou cansado. Irei então descansar’.” No dia 16, a princesa Isabel, que na véspera pedira ao pai para que convocasse o Conselho de Estado, simplesmente pôs-se a chorar. Reuniu-se aos filhos e preparou-se para embarcar para o exílio.

Na Europa, pai e filha dedicaram-se ao que realmente gostavam. Pedro de Alcântara aproximou-se ainda mais de cientistas e intelectuais, como Louis Pasteur (a quem, como imperador, angariou doações ao seu hoje célebre instituto).

O médico que assinou seu atestado de óbito, por exemplo, era Jean-Martin Charcot, um dos pioneiros da psiquiatria. Dom Pedro morreu de complicações de uma pneumonia em 1891, mas Charcot havia chegado a outro diagnóstico ao imperador em sua última viagem à Europa como mandatário brasileiro: ele sofria de surmenage, fadiga física e mental. Curiosamente, no filme Augustine, recentemente em cartaz, o médico francês aparece em algumas cenas com um pequeno macaco de estimação, um presente de dom Pedro.

Isabel dedicou-se à família. Seu marido comprou o Castelo d’Eu, na Normandia. Durante a Primeira Guerra, a princesa se ocupou de gerir cozinhas comunitárias e o marido representava a Cruz Vermelha na região. Com uma baioneta, fazia a ronda noturna no vilarejo próximo ao castelo. Isabel morreu em 14 de novembro de 1921. Tal como o pai, sem nunca ter voltado ao Brasil.

Saiba mais sobre Dom Pedro II através das obras abaixo

D. Pedro II, de José Murilo de Carvalho

As viagens de D. Pedro II: Oriente médio e áfrica do norte, 1871 e 1876, de Roberto Khatlab

As Barbas do Imperador, de Liliam Schwarcz

Categorias
Artigo

Dom Pedro II: o mais humilde e culto dos imperadores

Por M.R. TERCI*

Aventuras na História

 21

Desde muito cedo, o imperador Dom Pedro II elegera, como credo pessoal, a filosofia de que quanto maior a grandeza de uma alma, mais profunda deveria se tornar a sua humildade. Assim, muitos historiadores apontam que, entre tantas outras virtudes, seu reinado teve como marca a modéstia e a humildade.

Grande parcela de seus súditos era imensamente mais rica do que ele. Na corte, havia, ainda, residências muito mais confortáveis e luxuosas que a do imperador, destinadas a cientistas, artistas e intelectuais. Dom Pedro II, contudo, não exigia para si mais do que sua escrivaninha e seus livros, gosto que desenvolveu logo cedo.

Tal fato foi documentado por diversas personalidades ao longo de seu reinado, como na ocasião em que um diplomata francês, em visita ao Brasil em 1842, descobriu Pedro, então com 17 anos, mergulhado na leitura de Platão. Em 1847, o escritor português Alexandre Herculano escreveria: “É geralmente sabido que o jovem imperador do Brasil dedica todos os momentos que pode salvar das ocupações materiais de chefe de Estado ao culto das letras.”

Tinha, o imperador, pois, nas ciências e na literatura as mais agradáveis ocupações do trono. Sua bússola moral, sem dúvida, foi a busca pelo conhecimento, com vistas a arrebanhar novas tecnologias para o Brasil, o que colocava em prática sempre que se ausentava do país. Procurava perguntar sobre tudo, mantendo-se informado sobre todos os assuntos.

Nesse requisito, sem dúvida, todas as suas viagens foram coradas pelo mais absoluto sucesso. Na França, procurou pelo cientista Louis Pasteur e o escritor Victor Hugo. Em Roma, após ser recebido pelo Papa Pio IX, foi se encontrar com o romancista Alessandro Manzoni. Sempre tido como o mais acessível e humilde dos líderes, na Europa, os modos simples de Dom Pedro II desgostaram e escandalizaram a aristocracia. Um monarca que valoriza mais a companhia de um ficcionista boêmio à de Sua Santidade?

Todavia, Dom Pedro II seguia firme em seu propósito de travar contato com as mais proeminentes mentes de seu tempo, não importando seu status dentro da sociedade. Em Portugal, abandonou compromissos de Estado para visitar Camilo Castelo Branco, um grande escritor, mas que caíra em desgraça quando o infortúnio o arrastou à sarjeta.

Em 1876, nos Estados Unidos, sua simplicidade fascinou os burgueses práticos e republicanos. O New York Herald, jornal escalado para cobertura de sua viagem, haveria de estampar em suas páginas: “muitos republicanos de Nova York teriam sido mil vezes menos acessíveis que Sua Majestade, o imperador do Brasil.”

De fato, a admiração despertada nos norte-americanos foi tão grande que se apressaram em tomar posse do brilho do personagem, homem prático e empreendedor, alcunhando-o de o Imperador Ianque ou ainda de o nosso Imperador Americano.

Nos artigos da já tradicionalmente crítica imprensa dos Estados Unidos, as palavras sobre Dom Pedro II são só elogios: “Confessamos que nos dá orgulho o nosso imperador americano ao fazer tanta coisa. Viaja sem ruído nem cerimônia. Vai ao fundo de cada questão. Vê tudo o que é possível ver. Não desperdiça tempo com Secretaria de Estado ou títeres de gabinete. Corre para assistir um espetáculo de Shakespeare; daí passa a ver como é feito um grande jornal e, ao amanhecer do dia seguinte, entra na igreja como um bom cristão.” Disse ainda o artigo do New York Times: “Se não fosse rei, daria um grande repórter.”

Mais tarde, escreveria um repórter do Washington Post: “Dom Pedro volta para o Brasil conhecendo os Estados Unidos melhor do que dois terços dos membros do Congresso.”

Uma caricatura da época, que ironiza esse interesse pelos intelectuais, talvez seja a mais autêntica síntese de quem foi Dom Pedro II do Brasil. A ilustração mostra o imperador chegando a um país estrangeiro e imediatamente perguntando ao seu presidente: “Onde estão os seus sábios?”

*É escritor e roteirista; criador de “Imperiais de Gran Abuelo” (2018), romance finalista no Prêmio Cubo de Ouro.