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O amigo americano: medo do comunismo fez EUA criarem clã político do Rio Grande do Norte durante a Guerra Fria

Ilustração: Gustavo Magalhães para o The Intercept Brasi

Por Paulo Nascimento

The Intercept

O presidente americano John F. Kennedy ligou o sistema de gravação instalado no Salão Oval da Casa Branca na manhã daquela segunda-feira, 30 de julho de 1962. A fita registrou a conversa entre o presidente e Lincoln Gordon, embaixador dos EUA no Brasil. Ao longo de 28 minutos, eles trataram do presidente João Goulart, de um possível golpe militar e de quantos milhões de dólares os EUA estavam dispostos a torrar para interferir na política brasileira.

Na conversa, um nome chama a atenção. Trata-se de Aluízio Alves, à época governador do Rio Grande do Norte. O centenário de nascimento dele será lembrado na quarta, 11 de agosto. Alves é citado por Gordon como uma figura que merece apoio naquele Brasil tumultuado e polarizado. Aquela conversa ratificaria o estado governado pelo político potiguar como destinatário de uma bolada de milhões de dólares que os EUA passariam a negar a Goulart.

Lincoln Gordon: Um dos projetos, [no] Nordeste, por exemplo, acho que deveríamos fazer avançar. Existem alguns governadores: governador do Rio Grande do Norte. . . Eu não acho que ele encontrou você, Aluízio Alves, mas ele viu todo mundo na cidade. Ele esteve aqui há cerca de três semanas. É um grande companheiro.

John F. Kennedy: Este é o Vicento… não é o Rio, é?

Gordon: Rio Grande do Norte.

Kennedy: Este é o Rio?

Gordon: É um pequeno estado no Nordeste.

Kennedy: Oh, entendo. Não, eu não o vi.

Gordon: É um pequeno estado no Nordeste. É um cara de 40 anos, enérgico como pode ser, não é um demagogo, honesto. Ele é…

Kennedy: Quão fortes são os comunistas lá?

Gordon: Como tal, o partido é fraco.

Segundos depois, Gordon voltou a insistir com o chefe sobre quão importante Alves poderia se tornar para os Estados Unidos:

Kennedy: Existe um grande desânimo no Brasil [entre] todos os moderados?

Gordon: Ah, eles não estão desanimados a ponto de desistir. Eles estão muito infelizes. A forma como esta crise política foi tratada foi extremamente ruim. Não, um sujeito como Aluízio Alves quer organizar um centro forte, ligeiramente à esquerda. E, eu acho, devemos apoiar isso absolutamente, ao máximo.

O apoio chegou, e em tal quantidade que ajudaria a cimentar um novo clã político no estado. Alves recebeu dos americanos, em pouco mais de três anos, um montante superior à receita do estado para um ano todo. Durante a Segunda Guerra Mundial, dez mil americanos viveram no Rio Grande do Norte e deixaram ali uma marca cultural histórica. Décadas depois, o dinheiro de Washington ajudou a moldar o futuro político do estado.

Os americanos relatam que o Rio Grande do Norte recebeu, em 30 repasses, 3,46 bilhões de cruzeiros entre outubro de 1962 e janeiro de 1966. A soma está em um documento enviado pela diplomacia americana à ditadura brasileira em novembro de 1969. Tratou-se de dinheiro a fundo perdido, entregue ao governo do estado como doação direta. Para efeitos de comparação, em mensagem à Assembleia Legislativa em 1963, o governo potiguar informou que a receita geral do estado no ano anterior havia sido de 2,5 bilhões de cruzeiros.

Eu corrigi a soma pela inflação, usando uma ferramenta disponível no site do Banco Central. Em valores atuais, a bolada doada pelos EUA equivale a R$ 179,1 milhões.

Cálculos de desembolsos – Aliança8 pages

Graças ao dinheiro dos EUA, as estruturas estaduais de saúde, educação, abastecimento de água, habitação, malha viária e assistência social cresceram a olhos vistos. A ideia era apresentar o estado como um modelo do que o capitalismo poderia fazer pelo Brasil. Assim foi, e a Casa Branca acompanhou cada passo dado por Alves, como registram mais de 70 documentos da Biblioteca JFK, da Universidade Brown e do Arquivo Público do Estado do RN, analisados por mim.

O dinheiro americano permitiu a construção de uma estrada de 51 quilômetros de extensão que liga a cidade de São José de Mipibu à fronteira com a Paraíba – sozinha, a obra consumiu 1 milhão de dólares. Uma outra fonte de recursos, um programa assistencialista dos EUA chamado Food for Peace, ou Comida pela Paz, fez jorrar doações estimadas em 950 mil dólares entre 1963 e 1965 nos cofres do governo Alves.

O resultado não intencional e mais duradouro da dinheirama foi sedimentar Aluízio Alves e seus descendentes na política. O clã produziu três ministros, um presidente da Câmara dos Deputados e outro do Senado Federal. Seu representante mais conhecido, atualmente, é o advogado Henrique Eduardo Alves, deputado federal por 11 mandatos, ex-presidente da Câmara e ex-ministro do Turismo que terminou preso nos desdobramentos da operação Lava Jato – Henrique foi liberado da prisão em julho de 2018.

No auge, os Alves estenderam seu poder para além da política. Foram donos de empresas de comunicação – inclusive das emissoras afiliadas à Rede Globo no estado, como a TV Cabugi e a Rádio Cabugi, além do jornal impresso Tribuna do Norte.

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Ilustração: Gustavo Magalhães para o The Intercept Brasil

Aliança para o Progresso

Boa parte da montanha de dólares que inundou o Rio Grande do Norte tem uma mesma origem: o programa Aliança para o Progresso. Ele foi moldado pelo governo Kennedy como instrumento de apoio ao desenvolvimento e combate à influência comunista na América Latina. No Brasil, não demorou a virar ferramenta política.

O professor Felipe Pereira Loureiro, da Universidade de São Paulo, a USP, detalha esse viés político no livro “A Aliança para o Progresso e o governo João Goulart (1961-1964)”. A obra apresenta um índice montado pela embaixada dos EUA para classificar os governadores brasileiros e selecionar os que seriam beneficiados.

O extinto estado da Guanabara, que corresponde ao que hoje é o município do Rio de Janeiro, governado por Carlos Lacerda, principal opositor de João Goulart e do seu mentor, Getúlio Vargas, ficou com a maior fatia do bolo. Mas o Rio Grande do Norte foi escolhido com carinho para ser o contraponto ao Pernambuco do “extremista” Miguel Arraes. “O Rio Grande do Norte foi claramente privilegiado. Os documentos americanos mostram que Aluízio era o político modelo, que deveria receber apoio por ser um democrata reformista e anticomunista”, me disse Loureiro.

“Os Estados Unidos estavam apavorados com o Nordeste. O semiárido nordestino era uma das áreas mais pobres da América Latina, e a pobreza era vista pelos norte-americanos como campo fértil para a proliferação de ideias ditas contra a ordem, pois um povo na miséria absoluta não teria nada a perder. Nesse contexto, o Rio Grande do Norte foi escolhido para ser a principal ‘Ilha de Sanidade’ da região, recebendo a maior quantidade de recursos per capita da Aliança”, avaliou o professor Henrique Alonso, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a UFRN, pesquisador e autor de artigos e livros sobre as relações entre EUA e Brasil.

“Ilha de Sanidade” é um conceito criado pelo embaixador Lincoln Gordon, um dos formuladores da Aliança. Economista e professor da Universidade de Harvard, ele atuou no Plano Marshall, gestado por Washington para financiar a reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial. Gordon acreditava que as tais ilhas deveriam ser vitrines do poder americano e contrapontos ao mundo socialista.

“O primeiro beneficiário da política das Ilhas [de Sanidade] foi Aluízio Alves, o governador pró-EUA do Rio Grande do Norte. Ele estava entre os governadores de estado mais ambiciosos no desenvolvimento de planos de desenvolvimento econômico e social e em cortejar os formuladores de políticas dos EUA envolvidos na tomada de decisões de financiamento da Aliança para o Progresso”, corroborou Jeffrey F. Taffet, autor do livro “Foreign aid as foreign policy – The Alliance for Progress in Latin America” (“Ajuda externa como política externa: a Aliança para o Progresso na América Latina”, em tradução livre).

O medo de que a situação nordestina descambasse numa revolução como a cubana era forte na Casa Branca. Em julho de 1961, um ano antes da conversa que selou o destino de Alves, Kennedy recebeu Celso Furtado, que chefiava a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, a Sudene, em Washington. O presidente dos EUA não fez rodeios ao dizer que a região despertava grande interesse de seu governo, segundo o memorando do Departamento de Estado que registrou a reunião.

Em abril do ano seguinte, Brasil e EUA assinariam um acordo milionário de ajuda para o Nordeste. A primeira parte do plano levaria, imediatamente, 33 milhões de dólares à região. E, a médio e longo prazo, mais 98 milhões de dólares para obras de saneamento, saúde, energia, educação, abastecimento de água e fomento da agricultura.

‘Porta-voz dos governadores’

Tanto dinheiro assim não seria entregue sem que o uso fosse vigiado de perto por Washington. Mais um trunfo para Alves: na visão de Gordon, ele inspirava confiança. Em informações enviadas para municiar Kennedy em uma visita que ele faria ao Brasil, o embaixador aponta o governador potiguar como um “tipo que devemos encorajar”. Alves se esforçou para merecer o apoio. Em julho de 1963, entregou a João Goulart um manifesto assinado por quase todos os governadores nordestinos e intitulado “Resposta ao desafio do Nordeste”. Nele, cobrava-se uma definição do governo federal a respeito da Aliança para o Progresso. Para Alves, Brasília colocava entraves e impedia que o dinheiro de Washington chegasse ao seu destino.

Um resumo do texto foi encaminhado da embaixada dos EUA em Recife para Washington, indo parar em um relatório especial da Agência Central de Inteligência, a CIA. Nos bastidores do governo Goulart, dizia-se que o manifesto era obra dos americanos. Na Casa Branca, ele soou como música. “O articulado governador do Rio Grande do Norte Aluízio Alves parece, ultimamente, estar despontando como porta-voz para os governadores nordestinos em questões regionais”, resume o telegrama diplomático.

Relatório especial da Agência Central de Inteligência (CIA)9 pages

Autor do livro “The Politics of Foreign Aid in the Brazilian Northeast” (“As políticas de ajuda externa no Nordeste brasileiro”, em tradução livre), publicado em 1973, Riordan Roett, professor e diretor emérito da Universidade Johns Hopkins, entrevistou Alves e outros governadores ainda durante o funcionamento da Aliança. “Eu perguntei se ele acreditava que existia uma ameaça vermelha. Ele nunca respondeu a questão diretamente, mas falou sobre Fidel Castro, Miguel Arraes, o governo Goulart, etc. Charmoso de um jeito nordestino, desconfiado, ele quis enviar sua mensagem de que era uma ‘Ilha de Sanidade’ confiável”, lembrou o professor, em conversa comigo.

John F. Kennedy Seated in rocking Chair

Foto: © CORBIS/Corbis via Getty Images

Siga o dinheiro

Aluízio Alves foi eleito governador em 1960, após quatro mandatos consecutivos na Câmara dos Deputados, onde foi vice-líder da oposição e secretário-geral da UDN, a União Democrática Nacional, partido de direita da época. Montou uma coalizão que tinha de integralistas e setores conservadores da Igreja Católica a comunistas e sindicalistas, a Cruzada da Esperança. Com ela, derrotou Djalma Marinho, avô do hoje ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, com uma diferença de mais de 10% dos votos.

Mas o sucesso eleitoral não assegurou um início de governo tranquilo. Entronado no Palácio Potengi, que em seu mandato passou a ser chamado de Palácio da Esperança, Alves encontrou os cofres praticamente vazios, pagamentos em atraso e uma Assembleia Legislativa oposicionista e hostil. O governador montou uma equipe de jovens formados pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, a Cepal. Reunidos no Conselho Estadual de Desenvolvimento, esses assessores planejaram a modernização do estado com projetos de eletrificação, redes de telefonia, poços e açudes no semiárido, moradia popular e infraestrutura.

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Foto: Reprodução/Arquivo

Faltava o principal: dinheiro. Sem conseguir os dólares em casa, Alves resolveu ir bater à porta dos americanos e desembarcou em Washington no fim de junho de 1962. Sentou-se para conversas com diplomatas e assessores da Aliança, dos quais ouviu que não havia acordo possível sem a Sudene envolvida. Tentando uma cartada final, visitou o embaixador brasileiro, o economista liberal Roberto Campos. Foi a decisão certa.

Apesar de Kennedy afirmar ao embaixador Lincoln Gordon que não encontrou Alves, o governador potiguar escreveu em suas memórias que Campos conseguiu que o presidente americano saísse de uma agenda política interna no interior dos EUA apenas para atendê-los. Acompanhado da esposa, Jacqueline Kennedy, o presidente recebeu os brasileiros na sede do Departamento de Estado. De acordo com as lembranças de Alves, o encontro teve o seguinte diálogo:

Kennedy: Como vai a Aliança para o Progresso?

Alves: Presidente, falando francamente, só existe nos jornais. Nem uma providência foi dada, além da assinatura de um convênio, guardado na gaveta da Sudene.

A partir daí, Alves daria sua versão – obviamente interessada – da situação, que incluiu as Ligas Camponesas e a já conturbada situação política do Brasil. Jânio Quadros já havia chegado à metade do que seria seu mandato, abreviado pela renúncia que levaria João Goulart à presidência. JFK então disse que na manhã seguinte o chefe da Aliança estaria em Washington pronto para ouvi-lo, pois havia ordenado o retorno dele das férias.

Ao final, Alves voou para casa com a promessa de 20 milhões de dólares em investimentos. A quantia, segundo reportagem do Diário de Natal, era “alucinante”. Em 12 de agosto, Teodoro Moscoso, coordenador-geral da Aliança, e mais sete assessores desembarcaram em Natal para tratar da parceria.

Com o dinheiro americano, o governo Alves fez obras como o Sistema Jiqui, responsável pelo abastecimento de água de parte da zona sul de Natal até hoje, o Instituto de Educação Superior Presidente Kennedy, o IFESP, para formação de professores, inaugurado com a presença do senador Robert Kennedy, e a Cidade da Esperança, o primeiro programa habitacional do estado destinado ao público de baixa renda que construiu 400 casas, financiadas pela Aliança, e deu origem a um bairro na zona oeste da capital.

Se Carlos Lacerda homenageou os financiadores americanos ao batizar os conjuntos habitacionais construídos na Guanabara com os nomes de Vila Aliança e Vila Kennedy, Aluízio resolveu colocar a sua marca. “A Cidade da Esperança foi entregue já no fechamento do governo. O nome foi ideia dele, ligando a Cruzada da Esperança, o Governo da Esperança”, relembrou o deputado estadual José Dias, hoje no PSDB, que presidia a fundação habitacional.

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O pedagogo Paulo Freire: odiado pela extrema direita até hoje, o projeto de alfabetização dele foi financiado por Washington nos anos 1960.

Foto: Bel Pedrosa/Folha Press

Paulo Freire alfabetiza – e com dinheiro dos EUA

O maior e mais caro dos projetos financiados pela Aliança para o Progresso no Rio Grande do Norte foi para a educação. Não à toa. O censo de 1960 do IBGE apontava que 61,64% dos potiguares acima dos 5 anos de idade não sabiam ler e escrever, um contingente de 586.688 pessoas. Em junho de 1961, uma missão americana apontou o estado como a melhor vitrine para seu primeiro projeto educacional no Nordeste.

Assim, Washington concordou em entregar 2,5 bilhões de cruzeiros ao Rio Grande do Norte. Em sua mensagem especial ao Congresso em 2 de abril de 1963, JFK citou a parceria: “No problemático Nordeste do Brasil, em acordo com o estado do Rio Grande do Norte, está em andamento um programa para treinar três mil professores, construir mil salas de aula, dez escolas vocacionais, oito escolas normais e quatro centros de treinamento de professores”.

O acerto feito diretamente entre os potiguares e os americanos incomodou o governo brasileiro, mas terminou aprovado e assinado em dezembro de 1962.

Se o analfabetismo era o grande problema, era necessário enfrentá-lo com coragem. Ainda antes da verba americana, Aluízio Alves e seus assessores ouviram falar de um professor da Universidade Federal de Pernambuco, que inventara um método rápido e barato para ensinar a ler e escrever. Era Paulo Freire.

O governo acertou com Freire um convênio para um projeto-piloto, que se bem-sucedido, seria ampliado para todo o estado para alfabetizar pelo menos 100 mil pessoas em três anos. Faltava dinheiro até a Aliança para o Progresso aparecer. A contradição em receber financiamento americano não passou ao largo das discussões do grupo que executaria o programa.

“O clima era duro. Mas, no fim das contas, não tivemos medo da contradição, pois tínhamos convicções arraigadas”, relembrou o advogado Marcos Guerra, então um jovem estudante que coordenaria a ação. O educador pernambucano foi quem bateu o martelo. “Eu não tenho medo da Aliança, ela que tenha medo de mim”, disse Freire, em uma das reuniões preparatórias.

“Paulo Freire encontrou aqui, como não encontrou mais em nenhum outro local, o apoio para colocar em prática, em larga escala, sua tese”, resumiu o jornalista Cassiano Arruda Câmara, que era repórter à época.

A escolha pelo município de Angicos não foi gratuita: era a terra natal dos Alves. Aluízio queria mostrar que, se a emancipadora experiência de alfabetização – numa época em que analfabetos não votavam –  fosse feita na sua cidade, poderia ser levada a qualquer lugar. Ainda no fim de 1962, o grupo chega ao município para não só alfabetizar, mas conscientizar 300 pessoas sobre seus direitos. Era a experiência que ficou conhecida como As 40 Horas de Angicos.

As aulas de janelas e portas abertas, lembra Guerra, eram sempre assistidas por pessoas não identificadas. Em dia de visita dos consultores da Aliança, tudo parava: dava-se folga aos professores, e as aulas eram suspensas. Mas a experiência foi bem-sucedida e começou a se espalhar pelo estado. Em uma mensagem enviada aos deputados estaduais, o governo de Alves defendeu o Método Paulo Freire por habilitar “ao exercício da cidadania, como eleitor, como membro de uma nação livre e como participante ativo do regime democrático”.

A aula de encerramento, em 2 de abril de 1963, atraiu o presidente João Goulart, que assistiria ao recém-alfabetizado Antônio Ferreira ler um discurso escrito de próprio punho: “Em outra hora, nós era massa, hoje já não somos massa, estamos sendo povo”. Ali, Jango anunciou que o Ministério da Educação levaria o método para todo o Brasil.

Após uma visita ao Rio Grande do Norte em maio de 1963, Lincoln Gordon recomendou que outros governadores copiassem o modelo. Três meses depois, o secretário de Educação Calazans Fernandes seria recebido na Casa Branca pelo presidente JFK.

Um episódio, porém, dava o tom da mudança que viria. Ao fim da solenidade, o general Castelo Branco, que comandava o 4º Exército, atual Comando Militar do Nordeste, no Recife, abordou Calazans Fernandes. “Meu jovem, você está engordando cascavéis nesses sertões”, disse o futuro ditador. “Depende do calcanhar onde elas mordam, general”, retrucou o secretário. Exatamente um ano depois, o golpe militar desmantelaria a experiência. Paulo Freire e Marcos Guerra, entre outros envolvidos, seriam presos por “subversão”.

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Aluízio e Henrique Alves, um dos herdeiros do clã político.

Foto: Reprodução

Nasce um clã

Aluízio Alves não foi primeiro político da família – o patriarca Manoel Alves foi prefeito de Angicos no início da década de 1930. Mas foi Aluízio quem sedimentou o clã na política potiguar.

“Aluízio sabia que não tinha recursos e teve a inteligência de perceber a realidade. Teve a compreensão do governo de Kennedy, do embaixador Gordon e se aproveitou muito bem”, afirmou o deputado estadual José Dias.

“Pode gostar-se ou não, mas Aluízio fez um governo inovador em um estado que era uma merda, onde o primeiro escândalo que gerou manchetes de jornal foi a compra de um ar condicionado para o gabinete do governador. Ele pegou carona na Aliança para o Progresso e virou um dos melhores exemplos do programa que terminou sendo um fracasso”, avaliou Cassiano Arruda.

Entre 1960 e 2018, cada episódio político local teve um Alves ou um aliado como protagonistas. Já em 1962, o grupo fez maioria no legislativo estadual, cinco das sete cadeiras da Câmara, e só não levou as duas do Senado por falta de 7,6 mil votos. Naquele mesmo ano, o governador, que já possuía a Tribuna do Norte, comprou a Rádio Cabugi. Dez anos depois, viria a Rádio Difusora, em Mossoró, e, em 1987, a TV Cabugi, retransmissora da TV Globo.

Em 1965, nova vitória. Aluízio fez governador o Monsenhor Walfredo Gurgel, senador e ex-vice-governador. Também elegeu prefeito de Natal o irmão, Agnelo Alves.

Em 1966, quatro irmãos Alves estavam na política: Agnelo era prefeito de Natal; Garibaldi, deputado estadual; Expedito, prefeito de Angicos; e Aluízio, o líder, governador. Mas o poder lhes seria tomado pela ditadura militar.

O governador não era bem quisto entre os militares, mesmo tendo emplacado o almirante Tertius Rebelo, membro do seu governo, no lugar de Djalma Maranhão, prefeito deposto de Natal, lançado uma comissão estadual de investigação da “subversão” no Rio Grande do Norte e escolhido a Arena, partido dos ditadores, para se abrigar. Os fardados gostavam era do senador Dinarte Mariz, ex-padrinho e então maior rival de Aluízio.

Um telegrama do Departamento de Estado dos EUA, de 1967, era sombrio sobre o futuro de Alves. “Por sua cordialidade com João Goulart, uma relação de trabalho de longa data com Carlos Lacerda e sua reputação de vigarista, a estrutura de poder pós-Revolução passou a encarar Aluízio com desconfiança”.

Em fevereiro de 1969, Aluízio e o irmão Garibaldi Alves foram cassados. Três meses depois, Agnelo perdeu o cargo de prefeito e foi preso. Escaparia apenas Expedito, assassinado em 1983 quando exercia o terceiro mandato como prefeito de Angicos.

Os irmãos Alves acabariam absolvidos. Mesmo com os direitos políticos suspensos, trocaram a Arena pelo MDB. Em 1970, Aluízio e Garibaldi lançam os filhos na política. Henrique Eduardo foi eleito deputado federal, e Garibaldi Alves Filho, estadual. Pelos 15 anos seguintes, os Alves ficariam distantes do poder central, ocupado por governadores indicados pelos militares.

A dupla da terceira geração seria responsável por alçar os maiores voos políticos do clã após Aluízio. Henrique comandou a Câmara dos Deputados e foi ministro do Turismo nos governos Dilma Rousseff  e Michel Temer, sendo alijado pelas acusações da operação Lava Jato.

Já Garibaldi Filho, além de ser governador do Rio Grande do Norte por dois mandatos, foi senador por 20 anos, comandou o Senado por dois anos e foi ministro da Previdência Social de Dilma entre 2011 e 2015. Mas o primeiro dos Alves na Esplanada foi o velho Aluízio, ministro da Administração de José Sarney e da Integração Regional de Itamar Franco. Àquela altura, o veterano ainda teve ânimo para disputar e vencer a última eleição em 1990, quando ganhou o sexto mandato de deputado federal.

Graças à notoriedade garantida pelos dólares da Aliança para o Progresso, os Alves saíram do sertão potiguar para transitar com desenvoltura pelos corredores de Brasília. Herdeiros de um patrimônio modesto, chegaram a comandar parte substancial da comunicação potiguar e vivem confortavelmente em apartamentos de alto padrão em bairros nobres da capital.

A dinheirama dos americanos chegou a Natal para combater uma ameaça comunista imaginária no Nordeste brasileiro. Ironicamente, mas de forma alguma surpreendentemente, ela terminou por ajudar a concentrar poder nas mãos de um clã que até hoje influencia os rumos políticos do Rio Grande do Norte, assim como fazem outras dinastias espalhadas pelo Brasil.

E, se hoje os Alves andam afastados dos palácios, a reinvenção ao longo dos anos diz que nunca é bom desconfiar da capacidade de um grupo político tradicional farejar as oportunidades de retomar o poder.

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O RN no golpe de 1964

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Reportagem especial

O Golpe Militar no RN: quem aderiu, quem resistiu e as consequências políticas

Por Bruno Barreto

A madrugada que separou os dias 31 de março e 1º de abril de 1964 foi marcada pela ruptura do Estado Democrático de Direito no Brasil levando o país a 21 anos de ditadura militar.

Tudo isso há exatamente 55 anos.

Entre historiadores renomados é unanime que foi um Golpe de Estado com direito a tanques nas ruas, inclusive.

No Rio Grande do Norte os efeitos da ruptura com a democracia foram sentidos de forma imediata. O Estado vinha de uma eleição acirrada e marcada pelo radicalismo em 1960 quando Aluízio Alves, após romper com Dinarte Mariz, derrotou Djalma Marinho e se tornou governador do Estado.

Aluízio deu apoio ao golpe e foi um aliado de primeira hora dos militares.

O prefeito de Natal era Djalma Maranhão, político abertamente de esquerda que atuava como terceira via entre as oligarquias comandadas por Aluízio e Dinarte. Djalma possui fortes divergências públicas com Aluízio.

Maranhão entraria para história também por ter feito a campanha de alfabetização “Pé no Chão Também se Aprende a Ler”, baseada nos métodos do pedagogo Paulo Freire.

Com deflagração do golpe, ele faria da Prefeitura de Natal o principal foco de resistência no Rio Grande do Norte. O Palácio Felipe Camarão se tornaria o “QG da Legalidade e da Resistência”. No entanto, o entorno de Maranhã era frágil por se limitar a lideranças sindicais, estudantes e assessores.

Enquanto isso, Aluízio publicava na Tribuna do Norte uma nota em que pedia ao povo potiguar para se conservar calmo evitando manifestações que aprofundem divisões.

Apesar do discurso apaziguador caberia ao governador encaminhar as primeiras ações de repressão política no Rio Grande do Norte perseguindo lideranças sindicais e políticos adversários.

Djalma foi deposto do cargo em 2 de abril de 1964 quando tropa militares invadiram o Palácio Felipe Camarão e o prenderam enviando para o 16º Regimento de Infantaria, o conhecido 16 RI.  Os militares ainda propuseram que ele renunciasse ao mandato conquistado nas urnas em 1962, mas o prefeito preferiu resistir.

Mas não seria Maranhão o primeiro preso político do novo regime. Durante as negociações para tirar o prefeito do poder o líder sindical Evlim Medeiros (Sindicato da Construção Civil de Natal) seria preso após ser reconhecido por um oficial do exército sendo levado para o 16 RI antes do desfecho que culminou com a prisão do líder da resistência ao golpe no RN.

Após ser posto em liberdade, Djalma Maranhão se exilou em Montevidéu onde morreu em 30 de julho de 1971, segundo seu companheiro de exílio Darcy Ribeiro, a causa teria sido saudade.

Aluízio que comandava as perseguições logo seria convertido de vilão a vítima.

Os dias seguintes ao Golpe seriam marcados no Rio Grande do Norte pelo fechamento de sindicatos e prisões de lideranças políticas.

Enquanto isso, o golpe reunia formalmente ferrenhos adversários. Aluízio e Dinarte estaria alinhados dentro do sistema governista e fundariam juntos a Arena no Rio Grande do Norte em 1965 embora a convivência não fosse boa.

Mossoró no contexto do Golpe

Cesário Clementino: resistência em Mossoró

 

Na época do Golpe Militar Mossoró era administrada por Raimundo Soares, aliado da família Rosado, que comandava a política local.

Os principais líderes políticos da cidade, Vingt e Dix-huit Rosado, logo aderiram ao regime e fariam parte das articulações alinhados à liderança de Dinarte Mariz.

Em Mossoró não há muitos estudos sobre o que aconteceu na cidade na madrugada entre 31 de março e 1° de abril.

O único político mossoroense a organizar alguma forma de resistência foi o deputado estadual eleito em 1958 Cesário Clementino que fora líder sindical dos ferroviários. Em 1964 ele era suplente, mas teve esta condição política cassada pelo regime.

O período militar foi de hegemonia rosadista e de disputas pelo comando do Palácio da Resistência. A única quebra dessa sequência aconteceu em 1968 quando o ex-aliado dos Rosados Antônio Rodrigues de Carvalho derrotou Vingt-un por 98 votos.

O relatório Veras

 

Nos primeiros dias pós-Golpe, Aluízio Alves mandou buscar em Recife os delegados da Polícia Federal José Domingos da Silva e Carlos Moura de Moraes Veras que produziriam o “Relatório Veras” identificando os “subversivos” do Estado.

Eles produziram um trabalho de 67 páginas em que apontaram cujos alvos preferidos eram servidores da rede ferroviária, da Prefeitura de Natal, estudantes, artistas e sindicalistas.

Na lista constam o professor Moacyr de Góes, o médico Vulpiano Cavalcanti, o jornalista Ubirajara de Macedo e o pastor José Fernandes Machado. Além de, claro, Dajalma Maranhão.

No mesmo período, Aluízio Alves efetuou a demissão de 82 servidores públicos estaduais acusados de “subversão”.

A política no RN durante a Ditadura Militar

 

Aluízio Alves acabou punido pela ditadura que ajudou a instalar (Foto: reprodução/Youtube)

Nos primeiros dias pós-Golpe o processo de união das oligarquias Alves e Mariz se deu no campo formal com os dois grupos organizando a Aliança Renovadora Nacional (ARENA).

No campo político o confronto entre os dois continuava ainda que estivessem alinhados com o regime. Apoiado por Aluízio, Walfredo Gurgel foi eleito governador derrotando Dinarte. O troco foi dado no ano seguinte quando Dinarte conseguiu vetar a candidatura de Aluízio ao Senado. Foi feito um acordo entre a Arena Verde e a Arena Vermelha que fez do mossoroense Duarte Filho senador. Isso não garantiu a pacificação do partido.

Estava claro que a força eleitoral de Alves não seria forte o suficiente diante de Mariz no plano nacional. Isso se materializou em 1969 quando uma articulação de Dinarte Mariz junto ao presidente Costa e Silva resultou na cassação do mandato dos direitos políticos de Aluízio Alves que ficaria dez anos impedido de candidatar-se.

Isso definiria os rumos da política potiguar nos anos seguintes com Aluízio se alinhando ao MDB e lançado o filho Henrique Alves e o sobrinho Garibaldi Alves Filho na política.

A partir de 1970, os governadores de todo o Brasil passariam a ser escolhidos de forma indireta e com influência dos ditadores de plantão. Nas escolhas de 1970, 74 e 78, mesmo no ostracismo Aluízio mantinha a popularidade e consultado em todas as definições dos governadores.

Assim, foram escolhidos governadores pela ordem: Cortez Pereira, Tarcísio Maia e Lavoisier Maia. Nas três disputas o mossoroense Dix-huit Rosado tentou sem sucesso se tornar governador do Estado, mas sempre fora preterido.

A escolha mais dramática aconteceu em 1974 quando estava tudo acertado para que o empresário Osmundo Faria (pai do ex-governador Robinson Faria) seria anunciado e na madrugada do dia que seria feito o anúncio, o padrinho político da escolha, o general Dale Coutinho sofreu um infarto e morreu. A fatalidade zerou as articulações levando Tarcísio Maia a ser escolhido.

PAZ PÚBLICA

Na eleição de 1978 foi forjada a primeira aliança entre as oligarquias Alves e Maia por meio da paz pública quando Aluízio Alves e Tarcísio Maia se juntaram em torno da candidatura ao Senado de Jessé Freire, da Arena. Aluízio chegou a indicar nomes no Governo de Lavoisier Maia.

A tal paz se desfez com o processo eleitoral de 1982 quando os estados voltaram a eleger seus governadores. Aluízio seria derrotado por 106 mil votos de diferença para o jovem ex-prefeito de Natal José Agripino.

Os perseguidos políticos e desaparecidos no RN

Anatália de Melo Alves morreu torturada (Foto: reprodução)

Após os primeiros dias do regime como já citado nesta reportagem a repressão voltou a se intensificar no Estado a partir do Ato Institucional número 5.

Em 1968, foram presos os estudantes Ivaldo Cartano, José Bezerra Marinho e Jaime de Araújo Sobrinho. O padre marista Emanuel Bezerra.

Gileno Guanabara também foi preso.

Um dos primeiros potiguares assassinados pela repressão foi Emmanuel Bezerra dos Santos, líder estudantil e liderança do Partido Comunista Revolucionário (PCR).

No Governo Médice, a repressão ainda foi mais intensa.

Um dos casos mais marcantes envolveu o casal mossoronse Luiz Alves e Anatália de Melo Alves. Ele foi preso e torturado, inclusive ouvindo gemidos de dor enquanto sua esposa também era seviciada.

Ela não resistiu e morreu em 22 de janeiro de 1972 após sessão de tortura em Recife se tornando uma mártir da resistência ao regime no Rio Grande do Norte. Os militares tentaram abafar o caso por meio de censura, mas os testemunhos de outros presos ajudaram a provar que ela foi executada por torturadores.

Em 17 de janeiro de 1973, outro potiguar  atingindo pelo regime foi José Silton Pinheiro dos Santos foi outro potiguar assassinado pelo regime. Ele era estudante de pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e membro do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).

SEQUESTRO

Um dos momentos mais tensos da ditadura militar foi quando os grupos de esquerda que aderiram a lutar MR8 e ALN sequestraram o embaixador americano Burker Ellbrick em 4 de setembro de 1969.

A ação contou com a participação do potiguar Virgílio Gomes da ALN que seria morto após espancamento por parte de membros da Operação Bandeirantes em 29 de setembro daquele mesmo ano.

Vítima do “Cabo Anselmo”

Uma das figuras mais controversas da ditadura militar foi José Anselmo dos Santos, conhecido como “Cabo Anselmo” que se infiltrou dentro das organizações paramilitares de esquerda como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).

Neste agrupamento ele encontrou o potiguar Edson Neves Quaresma que foi assassinado após delação do “Cabo Anselmo”.

Bibliografia consultada

O golpe militar no Rio Grande do Norte e os norte-riograndenses mortos e desaparecidos: 1969-1973.

Autor: Luciano Fábio Dantas Capistrano

1964: Aconteceu em abril.

Autora: Mailde Pinto Galvão

Como se Fazia Governador Durante o Regime Militar: o ciclo biônico no Rio Grande do Norte.

Autor: João Batista Machado.

História do Rio Grande do Norte

Autor: Sérgio Luiz Bezerra Trindade

 

Subversão no Rio Grande do Norte: relatórios dos inquéritos realizados por José Domingos da Silva e Carlos Moura de Moraes Veras a mando do governo Aluízio Alves.

 

Autor: Comitê Estadual pela Verdade/RN.

 

Bastidores do Poder: memórias de um repórter.

Autor: João Batista Machado.