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A frente ampla em Natal e o jogo de soma zero que gera empilhamento de corpos e crise econômica

Álvaro joga com vidas pensando em 2022 (Foto: Aldair Dantas)

Por Daniel Menezes*

A prefeitura do Natal flexibilizou ontem (19), através de decreto municipal, o que foi estabelecido pelo decreto estadual. Agora serão permitidos eventos com até 100 pessoas, o funcionamento de cinemas e antecipa o retorno das aulas.

Não cabe entrar mais aqui na ilegalidade do decreto já pacificado por diversas ações na justiça – vale o mais restritivo e o do Governo Estadual efetivamente tem tal direcionamento. O próprio Supremo Tribunal Federal foi consultado em diversas situações e tratou também especificamente da disputa entre Prefeitura do Natal e Governo do RN.

Não cabe também mais ingressar na avaliação técnica da flexibilização. Grandes eventos e cinemas estão no topo máximo dos espaços de risco de contágio e, conforme foi noticiado pela imprensa nacional, o Rio Grande do Norte acelerou o crescimento de casos nos últimos dias. Já há filas por UTIs nos hospitais. Não há qualquer fundamentação em liberar geral em tal ambiência se o nosso olhar se dirigir ao controle da pandemia.

Mas há sim uma racionalidade e ela não passa mais pelo controle da pandemia faz tempo. Não há qualquer perspectiva neste sentido estabelecida em Natal. A rivalização política não ajuda a economia, nem muito menos o controle de novos casos de covid-19.

A razão instrumental se volta para o período eleitoral de 2022. Álvaro Dias já percebeu que existe uma frente ampla na cidade e ela é composta por empresários, setores da imprensa e associações médicas. Embora as teses dessa frente ampla tenham sido acolhidas pela justiça estadual, foram, como já dito, derrubadas pelo Supremo.

É esta a base que Álvaro procura agradar com o seu bolsonarismo soft, mas nem por isso menos efetivo. Ele não diz impropérios em público como o presidente, mas joga contra a ciência do mesmo jeito e estabelece uma falsa divisão entre pandemia e economia por mais que a realidade específica do problema mostre o contrário. Em 2018, os candidatos Coronel Hélio e Sérgio Leocádio foram ingênuos, ao acharem que iriam capturar o voto do bolsonarismo com chavões e truculência. Álvaro Dias pegou o eleitor bolsonarista, melando os decretos de isolamento e distribuindo cloroquina e ivermectina.

No momento em que se fala em terceira onda – como se tivéssemos saído da segunda -, conceito importado da Europa nesta pandemia e que não explica a evolução da doença por aqui, Dias atua para agradar essa base e para posicionar o PT da governadora Fátima Bezerra como sinônimo de radicalismo e atraso. É uma forma de se por como representante do desenvolvimento, da economia e situar aquela a quem ele deseja derrotar em 2022 como representante das mortes pela covid-19 – já que ele se esconde quando o seu trabalho traz esse resultado -, do desemprego. Ele é sempre a solução, ela o problema. Quando os óbitos aumentam, são os demais agentes que se manifestam na esfera pública sobre o revés. No dia que passa a valer a maior flexibilização da prefeitura do Natal, por exemplo, o governo e prefeitos da região oeste tentam criar novas ações em prol do controle do problema.

Dias compreendeu bem o espírito da frente ampla instalada em Natal, por um lado, e incentiva a falsa oposição entre pandemia e economia, por outro, vampirizando suas consequências. Essa frente já demonstrou que não liga para o estágio em que se encontra a pandemia, imaginando existir distância entre vírus em circulação descontrolada e normalidade, e a falta de coordenação geral, na prática, só tumultua o enfrentamento do problema. Quando ele estoura de uma forma em que não é mais possível fechar os olhos para o cenário, cria-se uma situação de maior tempo de fechamento e restrições e menor de abertura e relativa normalidade.

A Teoria da Escolha Racional apresenta bons estudos sobre esse comportamento em que a busca pelo desejo individual isolado, sem coordenação, cria a irracionalidade de grupo, operando contra os próprios objetivos dos agentes. O acirramento, as informações desencontradas e a ausência de pactuação geram mais mortes e, na prática, necessidade de fechamentos constantes. Com a vacinação lenta e o aumento de casos escalando, essa frente ampla está jogando contra os seus próprios interesses, ao apoiarem o alheamento com a pandemia – as associações médicas alegando que é possível manter a normalidade com um tratamento ineficaz – as normativas do CRM/RN sobre cloroquina e ivermectina seguem valendo até hoje -, os empresários criando a falsa separação entre pandemia e economia e setores da imprensa, tentando pintar o redondo como quadrado.

Não há como ignorar o empilhamento de corpos – ainda que exista quem trabalhe neste sentido – e achar que a economia vai conseguir funcionar em sua normalidade com isso. Estabelecer opções significar construir um jogo de soma zero em que todos perdem. Não há como dizer que ivermectina previne covid-19, se a maioria dos pacientes graves no RN fez uso desse medicamento de maneira contínua, conforme pesquisa do LAIS/UFRN. Não há como dizer que está tudo bem, não reportar as super lotações nos hospitais e o número de mortos. A informação circula por outros meios.

Sim, sem a atuação do governo federal, detentor da maior fatia do bolo tributário, maior máquina burocrática (ministério da saúde) e o único com capacidade de endividamento, que age como se não tivesse relação com o que ocorre no Brasil, tudo é mais difícil. Estados e municípios atuam numa espécie de salve-se quem puder. Mas o governo estadual também precisa colocar muito claramente para a população as escolhas que ela precisa fazer e as hierarquias que deve estabelecer. Com debate, racionalidade e conjugação de forças a razão eleitoral que hoje domina o planejamento (ou a falta dele) do combate à pandemia em Natal pode tomar outro horizonte.

*É sociólogo e professor da UFRN.

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