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A PEC da imunidade e a ofensa ao rule of law

Por Fernando Rocha*

O rule of law (1) é um princípio constitucional básico que preceitua que todos os cidadãos, sem qualquer distinção, devem se submeter às leis vigentes de um estado. Absolutamente ninguém pode estar acima da Constituição e leis de seu país. A isonomia de tratamento legal e judicial é o que justifica, sob o aspecto ético e pragmático, a proibição de qualquer tipo de privilégios, tendo a nossa Constituição logo em seu art. 3º, I, declarado ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil constituir uma sociedade livre, justa e solidária e o art. 5º, caput, deixa claro que nenhum brasileiro pode ter tratamento legal distinto, posto que todos são iguais perante a lei.

A Constituição Federal, por sua vez, para fazer cumprir outros valores igualmente caros à democracia conferiu garantias a certos ofícios, cargos ou funções cujo livre exercício se destina a dar sustentação à ordem constitucional.  A liberdade de impressa, por exemplo, que é um valor fundamental para democracia constitucional, depende essencialmente que ao jornalista sejam garantidas: a) vedação da censura; b) ampla liberdade de informação e expressão e; c) incolumidade da fonte. Essa prerrogativa especial dada ao jornalista não se caracteriza como privilégio exatamente porque tem como desiderato preservar um outro valor constitucional essencial para democracia, que é a liberdade de imprensa. O que distingui, pois, um privilégio, nocivo ao Estado Democrático de Direito, de uma prerrogativa é a existência ou não de um valor constitucional instrumental subjacente a preservar. Se a vantagem conferida não visa tutelar um bem constitucional, essencial ao estado democrático de direito, se trata de um privilégio, e como tal deve ser rechaçado e reprimido. A prerrogativa, ao revés, conferida a certas categorias de pessoas é um instrumento de fundamental realce para fazer cumprir finalidades constitucionais, essenciais ao estado democrático de direito. A inamovibilidade e o princípio do juiz natural, previstos na Constituição Federal, têm, por exemplo, como objetivo essencial preservar a independência da magistratura contra influências externas odiosas que poderiam levar a remoção de um juiz de sua jurisdição para atender interesses de ocasião. Em uma palavra, as prerrogativas visam proteger a Constituição e o Estado Democrático de Direito, os privilégios jamais. As prerrogativas atendem interesses de funções constitucionais, ao passo que os privilégios preservam interesses de pessoas. Estes, os privilégios, são acintosos exemplos de ofensa à equidade e conduzem ao rompimento do rule of law, conferindo vantagens inconstitucionais a categorias de pessoas em detrimento da Ordem Democrática. Cria supercidadãos que se apresentam acima da lei, imunes ao accountability e à responsabilização por práticas ilegais.

No dia 24 de fevereiro de 2021, sem qualquer debate ou sequer submissão ao crivo da Comissão de Constituição e Justiça, por 304 a 108 votos, a Câmara Federal admitiu o trâmite da Proposta de Emenda Constitucional número 03/2021, que entre outros aspectos, cria de forma notória diversos privilégios aos parlamentares federais, em ofensa evidente à isonomia, aos deveres de accountability (2) e aos preceitos básicos do rule of law. A PEC da imunidade, como está sendo conhecida, passa a permitir somente prisão de parlamentar em caso de flagrante por crimes considerados inafiançáveis pela Constituição Federal. Prevê também a proibição de qualquer medida cautelar conta parlamentar, inibindo seu afastamento do cargo, em clara ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição e da separação de poderes.  Segundo a proposta admitida, na prática, se um parlamentar for flagrado cometendo atos de corrupção, estando, por exemplo, recebendo uma propina de milhões de reais que deveriam ser destinados ao combate à pandemia, é incabível a prisão, exatamente porque a Constituição Federal não prevê como inafiançável qualquer crime contra Administração Pública. Além de impossível a prisão nesses casos, somente quem poderia afastar cautelarmente o parlamentar seria a respectiva casa legislativa, uma vez que estaria absolutamente vedado, doravante, ao judiciário apreciar esse pedido. Um senador, por exemplo, que cometer violência doméstica contra sua companheira e filhas, lesionando-as e ameaçando-as gravemente de morte, jamais poderia ser preso ou se submeter às medidas de proteção previstas na lei, nem muito menos afastado das funções por decisão judicial. Um parlamentar que eventualmente seja surpreendido embriagado ao volante logo após matar culposamente uma família que estava numa parada de ônibus estará imune a qualquer medida que limite sua liberdade. Sequer uma medida judicial de apreensão da CNH poderá ser determinada.

A decisão judicial proferida contra a Deputada Federal Flordelis, em face de quem pesa a acusação de ter matado dolosamente o cônjuge e em razão da qual foi afastada do cargo e obrigada a usar tornozeleira eletrônica, caso a PEC seja aprovada, deverá ser reformada para readmiti-la ao exercício da função, além de excluir o monitoramento. Serão mínimas as chances de algum parlamentar no Brasil vir a ser preso ou afastado, uma vez que a Constituição Federal somente prevê como inafiançáveis os crimes de tortura, o tráfico de entorpecentes, o terrorismo, ação de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e o racismo. A rigor, nem a prática de crimes hediondos cuja tipificação é infralegal poderia conduzir um parlamentar à prisão. A prisão preventiva no Brasil praticamente deixa de ser possível contra um parlamentar pois, segundo a PEC, essa hipótese estaria destinada exclusivamente aos casos de conversão do flagrante por crimes inafiançáveis a ser definida em uma audiência de custódia, após homologação pelo plenário da respectiva casa legislativa. Portanto, segundo a PEC, a lavratura da prisão em flagrante contra um deputado ou senador em face da prática de crime inafiançável, previsto na Constituição Federal, deverá ser homologada pelo plenário da respectiva casa legislativa. Após a homologação, a prisão em flagrante deverá seguir para uma audiência de custódia promovida pelo STF que analisaria se o caso seria de conversão em prisão preventiva. Além de excepcional, a prisão de um parlamentar passou a ser notoriamente burocrática. A par dessas limitações constitucionais, a PEC n 3/2021 traz insuperáveis dificuldade às investigações contra parlamentares, já que impõe ao STF a competência exclusiva para análise das medidas cautelares de busca e apreensão. Portanto, caso um parlamentar esteja sendo investigado por um promotor de justiça diante de possíveis “rachadinhas” (crime de peculato previsto no art. 312, do CP) praticadas antes do exercício da função federal, o eventual pedido de busca e apreensão deverá ser realizado e analisado perante o STF, tornado a investigação muito mais lenta, burocrática e desestimulante.

Está claro que sob o sofisma de defesa da independência parlamentar, a PEC 3/2021 rompe os princípios básicos do rule of law, tornando praticamente impossível a prisão de parlamentares federais no Brasil, além de restringir as atividades dos órgãos de investigação. Cria-se um regime constitucional de exceção, tornando ainda mais distante o foço que há entre o direito penal dos descamisados e os de colarinho branco. Não se está aqui inaugurando ou reforçando prerrogativas parlamentares, mas sim admitindo inacreditáveis privilégios particulares em favor de uma casta política cada vez mais distante dos ditames do rule of law, exatamente porque tais alterações em nada se destinam a preservar valores ou bens de natureza constitucionais. Cuida-se de uma PEC que promove a desigualdade, o desrespeito com o cidadão, quebra os deveres de accountability e estimula, de forma acintosa, ainda mais a prática de crimes e a impunidade no país.

*É procurador da República no RN.

Artigo extraído do Estadão.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

(1)O conceito de rule of law é o princípio de medidas que evitam o arbítrio por parte do poder estatal.

(2)Accountability expressão da língua inglesa relacionada a transparência, responsabilidade e ética nas questões públicas.

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Crime e castigo no mundo da corrupção

CORRUPÇÃO E IMPUNIDADE IMAGEM LEGAL

Por Cláudio Ferraz*

No seu trabalho clássico sobre a “Economia do Crime e Castigo”, publicado há 50 anos, o economista e prêmio Nobel Gary Becker mostrou pela primeira vez como podemos pensar nas decisões criminais como decisões econômicas. Na sua teoria, indivíduos escolhem cometer um crime, não por aspectos psicológicos e comportamentais, mas por decisões racionais comparando custos e benefícios.

O alto grau de corrupção política observado no Brasil pode ser explicado, em grande parte, por esse modelo simples. Até pouco tempo atrás, a percepção de muitos políticos brasileiros era de que a probabilidade de serem pegos roubando era baixa. E, quando pegos, a punição seria mínima. A operação Lava Jato pode ter mudado essa percepção. Pela primeira vez diversos políticos foram flagrados em atividades ilícitas e presos por desvio de recursos e lavagem de dinheiro. Mas será que essas prisões servirão para modificar a percepção de risco para políticos corruptos? Meu trabalho, em coautoria com Eric Avis e Frederico Finan da Universidade da Califórnia em Berkeley, ajuda a pensar nesses efeitos. Em 2003, o governo federal introduziu um programa inovador de luta contra a corrupção, implementado por meio da CGU (Controladoria Geral da União).

O Programa de Fiscalização por Sorteios Públicos selecionava aleatoriamente municípios para fiscalização via loterias públicas. Todos os municípios com uma população de até 500 mil habitantes eram elegíveis. Uma vez escolhidos, equipes de auditores investigam municípios selecionados, inspecionam contas e verificam a entrega de serviços públicos. Depois de concluídas as inspeções, a CGU gera relatórios detalhados descrevendo as irregularidades encontradas. Até 2015, a CGU realizou 2.241 auditorias, abrangendo 1.949 municípios e R$ 22 bilhões em recursos federais. Nós aproveitamos as loterias públicas do programa para estimarmos o impacto das auditorias na corrupção política local.

Usando uma combinação de dados da CGU, dados eleitorais, judiciais e municipais, nós comparamos os níveis de corrupção em municípios que nunca tinham sido auditados antes com aqueles que já tinham sido auditados no passado. Nós encontramos que as auditorias servem como um instrumento efetivo para reduzir a corrupção. Municípios que passaram por uma auditoria anterior tiveram menos atos de corrupção do que aqueles que não foram investigados.

Nos municípios em que os prefeitos passaram por várias auditorias no mesmo prazo, o efeito na redução de corrupção é ainda maior. O BRASIL AINDA TEM UM LONGO CAMINHO PELA FRENTE SE QUISER SAIR DA LAMA EM QUE SE METEU. MAS NESSE CAMINHO NÃO HÁ ATALHOS Para examinar se os resultados estão relacionados com maior punição, nós coletamos informações de operações especiais da Polícia Federal, de prisões de prefeitos, e do Cadastro Nacional de Condenações Cíveis por Ato de Improbidade Administrativa e Inelegibilidade. Nossos resultados mostram que as reduções na corrupção vieram, principalmente, de auditorias que aumentaram os custos legais da corrupção. Os municípios que foram auditados no passado tiveram uma maior probabilidade de enfrentar ações legais – como investigações policiais ou condenações de prefeitos. Essas ações legais modificaram o comportamento de prefeitos que governaram esses municípios no futuro. Se esses resultados puderem ser extrapolados para os níveis estadual e federal, as punições da Lava Jato podem levar a uma modificação do comportamento dos políticos em relação ao desvio de recursos. No entanto, monitoramento e castigo sozinhos não resolverão o problema de corrupção do Brasil.

O efeito das auditorias da CGU nos municípios são positivos, porém não suficientes para acabar ou mesmo reduzir significativamente a corrupção. Diversos exemplos de desvios de merenda escolar, material de saúde e superfaturamento de obras continuam acontecendo pelos municípios brasileiros, mesmo depois de 15 anos do programa de fiscalizações da CGU.

O que mais pode ser feito? Para reduzir a corrupção é importante que a punição também aumente do lado do corruptor. Nesse sentido, a punição de grandes empresários, encarcerados por desvio de recursos e pagamentos de propinas na operação Lava Jato deverá modificar a percepção de risco do lado do setor privado.

Além disso, a nova lei anticorrupção que responsabiliza objetivamente empresas que praticam atos lesivos contra a administração pública tornou empresários responsáveis pelo comportamento de suas empresas, e gerou um aumento significativo de unidades de compliance pelo Brasil. A participação da sociedade civil também é fundamental. Por um lado, o aumento da transparência dos governos e disponibilidade de grandes bases de dados têm permitido um maior monitoramento por parte da população em relação a gastos, contratos e pagamentos do governo.

Com isso a chance de irregularidades serem detectadas aumentou drasticamente nos últimos anos. Por outro lado, corrupção passou a ser um dos principais problemas citados pelo eleitorado, e isso pode fazer com que as pessoas votem em candidatos menos corruptos nas próximas eleições.

Finalmente, novas caras e movimentos estão aparecendo na política,o que pode gerar concorrência e accountability para os partidos políticos. O Brasil ainda tem um longo caminho pela frente se quiser sair da lama em que se meteu. Mas nesse caminho não há atalhos. Políticos oportunistas prometendo soluções milagrosas devem ser mantidos à distância. Precisamos é reduzir a impunidade, aumentar a transparência e a participação da sociedade civil — e atrair pessoas de bem para a política.

*Claudio Ferraz é professor da Cátedra Itaú-Unibanco do Departamento de Economia da PUC-Rio e diretor científico do JPAL (Poverty Action Lab) para a América Latina.