Categorias
Artigo

O livro-espelho (ou O Povo Brasileiro)

Darcy Ribeiro é um dos autores mais importantes do Brasil (Foto: reprodução)

Por Douglas Henrique Antunes Lopes*

Reza a lenda que, nos idos de 1995, ele fugiu da UTI do hospital em Brasília para não ser vítima fatal de um câncer antes de escrever sua obra prima, tratava-se da conclusão de um projeto de três décadas para compreender a composição antropológica do Brasil e da América Latina. Quem tinha esse projeto ambicioso e comprometido com o povo da sua terra foi o Prof. Darcy Ribeiro (1922 – 1997), um dos maiores intelectuais que tivemos a graça de ter.

Seu projeto de compreensão deste complexo cenário em que habitamos começou a ganhar forma com as obras lançadas na coletânea intitulada Antropologia da Civilização, que compreendia os livros intitulados O processo Civilizatório, As Américas e a Civilização, O Dilema da América Latina e Os Brasileiros, o qual é dividido entre Teoria do Brasil e Os Índios e a Civilização. Apesar dessas investigações ousadas já terem sido lançadas, faltava ainda a cereja do bolo, O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil, que seria escrito às pressas e lançado ainda em 1995.

Uma das grandes heranças que Ribeiro nos deixou, foi essa obra monumental, pois o que havia sido produzido de antropologia no Brasil, ou ilustrava a visão dos nossos colonizadores ou era muito fragmentada, de modo que o autor consegue elaborar a primeira grande teoria sobre a formação do povo brasileiro, nos dando chance de não simplesmente repetirmos o que os nossos colonizadores diziam a nosso respeito. A sensação de ler O povo Brasileiro é, portanto, um olhar-se no espelho, uma atitude de auto reconhecimento, o que nem sempre é fácil, se levarmos em consideração a inundação de textos e demais produtos da indústria cultural europeia e norte-americana que sofremos todos os dias. Não se trata de os ignorarmos ou de nos vermos como superiores a eles, mas de podermos perceber os elementos que nos constituem enquanto povo.

Esta obra não nos apresenta uma visão romântica de um Brasil pacífico, mas revela que aqui houve (e há) um “moinho de gente”, como diz o autor. Nossa história é marcada pelo belicismo e pela desconstrução de identidades. As primeiras guerras são entre portugueses e índios, depois, entre portugueses e negros, que foram arrastados do seu continente para servirem aos seus violentos exploradores. A admissão desse passado também revela que nosso modus operandi predatório com as minorias não se alterou até o presente. O Atlas da Violência de 2019 nos mostra que 75% das vítimas de homicídio do país são de pessoas negras. Enquanto isso, as terras indígenas sofrem com cada vez menos proteção, sendo vítimas de ações de invasão, desmatamento e queimadas. De acordo com o G1, em 2019 foram registradas 160 tentativas de invasão a terras indígenas. Assim que tivermos dados concisos acerca das vítimas da pandemia, não nos surpreendamos quando verificarmos que a grande parte dos mortos serão de minorias étnicas e econômicas.

Apesar disso tudo, O Povo Brasileiro, ainda nos indica um horizonte otimista, de modo que quando Darcy Ribeiro falava do livro, costumava nos comparar a uma nova Roma, ou seja, a uma civilização que também nasceu de uma miscigenação conflituosa, mas que tornou-se um império, ao poder contar com uma vasta herança étnica e cultural de vários povos. A miscigenação, portanto, é uma vantagem que nós temos, pois contamos com uma gama vasta de influências que compõe a nossa civilização. Para tanto, temos o desafio de superar a violência e a falta de empatia. Conhecer as matrizes fundantes do nosso povo é reconhecer a nós mesmos, o que ajuda a superar esses obstáculos.

*É mestre em Filosofia e professor.

Categorias
Artigo

Os saberes não tiram férias

Por Cezar Britto

O Brasil escolheu o mês de janeiro para, tradicionalmente, dedicar um espaço no calendário para as férias escolares. Esses encontros anuais, mesmo quando interrompidos nos desgastantes momentos de garimpagem dos caríssimos livros escolares, são aguardados com certa ansiedade. Viajando ou não, os pais e as mães recebem de volta as suas crias, dando uma pausa na terceirização da transmissão dos saberes. Em tese, os educadores originais reencontram, por livres quereres ou impostos deveres, a filharada e reassumem as tarefas antes, em parte, delegada aos professores e às professoras. E assim, como ocorrera no período letivo, as férias escolares servem de aprendizado coletivo e mudança no patamar de relacionamento.

As atuais férias têm sido especiais fontes de conhecimento e mudança. O Brasil, entre discursos, multidões, soltados, armas, gestos e ameaças de sangrar o verde-oliva da bandeira, anotou no Livro de Posses o nome do seu 38º presidente. Neste ato, sob o pesado esquema de segurança, entre gestos de mãos simbolizando tiros, a cidadania brasileira aprendeu, via delicados movimentos emanados da tradicionalíssima figura da primeira-dama, a importância educacional e inclusiva da Linguagem Brasileira de Sinais – Libras. Michelle Bolsonaro divulgara, de forma inédita, a Lei 10.436/2002 e o Decreto 5.626/2005, assinados pelos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, subscritos pelos seus respectivos ministros da Educação Paulo Renato e Fernando Haddad.

A surdez governamental que se prendia modificada, entretanto, não entrou em férias. A notícia da extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, uns dos primeiros atos anunciados pelo atual encarregado da política educacional brasileira, exemplifica o que a estudantada encontrará na volta às aulas. Estranhará, certamente, que os novos livros didáticos não terão mais compromisso com a pluralidade que integra a alma brasileira em suas diversas manifestações culturais, sociais, éticas, étnicas e regionais, tampouco com o combate à violência contra as pessoas vulneráveis. A linha educacional será única: a imposição ideológica do pensamento de que todas ideologias são pecaminosas, salvo a própria ideologia dos governantes.

Daí a razão da verberação contra os livros de História e de Ciência. Afinal, para os “novos ideólogos” não há sentido ensinar que a “terra gira em torno do sol”, que “São Jorge não mora na lua”, que a ciência descobre ou que a evolução da espécie é fenômeno científico natural. Pregam a morte de Caio Prado, Capistrano, Carlos Chagas, Copérnico, Celso Furtado, Oswaldo Cruz, Dante de Alighieri, Darcy Ribeiro, Darwin, Descartes, Diderot, Erasmo de Roterdã, Galileu, Giordano Bruno, Hobbes, Kant, Kepler, Lattes, Locke, Lutz, Milton Santos, Pascal, Paulo Freire, Rousseau, Sêneca, Sócrates, Voltaire, Zerbinie, todos aqueles que têm no saber a melhor forma de ensinar a vida. Pretendem, ao que se percebe, um remasterizado Index Librorum Prohibitorum, Edição MEC 2019.

Mas não apenas no campo dos livros e das disciplinas os estudantes poderão encontrar mudanças no retorno às aulas. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos advertiu que prefere as vestimentas azuis ou rosas, pois entende que deve ser banido para o “Mármore do Inferno” o “pecaminoso pensamento colorido, plural ou simplesmente diferente”. Lembrei-me, entristecido, de Catarina, filha da minha amiga Ana Paula Barreto, que poderá ser convidada a “jogar” na medieval fogueira da “nova ideologia” a camiseta vermelha, o short colorido e a bola de futebol que, orgulhosamente e em pose campeã, exibia em pura força feminina e feminista na foto enviada a mim pela mãe. Aliás, a bola que exibia na foto, mesmo rosinha, será um objeto de museu, pois, segundo os “novos ditames educacionais”, os únicos passatempos permitidos às meninas serão os famosos fogõezinhos, panelinhas, bonequinhas e outros brinquedinhos bonitinhos destinados a transformá-la em uma eficiente dona do lar.

Paulo Freire, um dos condenados a padecer no fogo ministerial, certa vez disse que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”. O mês de janeiro de 2019 começou criando várias dessas possibilidades de ensino, desde aquelas repassadas em família, reveladas nos livros não proibidos, adquiridas dos mestres, vividas em aprendizados próprios ou as conquistadas nos saberes mediatizados pelo mundo. Também trouxe dessaberes já impostos em trevas, destruições de histórias produzidas e desconstruções de conceitos evolutivos. Mas nesta equação de avanços e recuos já esparramada na prancheta do tempo, já aprendemos, precocemente, que quando cessarem as folgas escolares, ressurgindo os matulões estudantis, os saberes seguirão e estarão em disputa, até porque eles nunca tiraram férias.