Categorias
Artigo

Como preservar a democracia da vontade do povo e das elites

Por Reinaldo Azevedo*

Pesquisa CNI-Ibope aponta recorde de popularidade do governo Bolsonaro. Acham seu governo ótimo ou bom 40% dos entrevistados. Apenas 29% dizem ser ruim ou péssimo. Estou com a minoria dos 29%. “Que é, Reinaldo, vai discordar da maioria do povo?” Já fiz isso muitas vezes.

Em 2006, no auge de embates com esquerdistas, escrevi um texto que me rendeu uma tempestade de insultos. Lá se lia: “Fico aqui queimando as pestanas, tentando achar um jeito de eliminar o povo da democracia. Ainda não consegui. Quando encontrar, darei sumiço no dito-cujo em silêncio. Ninguém nem vai perceber…”.

Um amigo me censura pelo emprego, que considera excessivo, da ironia. Talvez tenha razão. Não costumo explicá-la. Com nota de rodapé, ela vira capim. Esquerdistas me mandaram para o “paredón” moral por aquele artigo. Direitistas aplaudiram. Corria o ano da graça de 2006, e Lula seria reeleito três meses depois, um ano após o mensalão.

Após anunciar projeto de construção de uma ponte em Eldorado Paulista, cidade onde cresceu, Bolsonaro toma refrigerante no Bar do Juca, estabelecimento vizinho à casa de sua mãe. Presidente estava com o ministro da Justiça, André Mendonça, o filho Eduardo, o irmão Renato e sobrinhos Adriano Vizoni – 3.set.2020/Folhapress

Eu fazia uma citação coberta do Artigo 10, de “O Federalista”, de Madison, que trata da necessidade de preservar a “Assembleia” das paixões do que ele chama “facções” —sejam majoritárias ou minoritárias. E daí se pode supor que o que ele entende por “República”, que nós chamamos “democracia”, é mais do que a vontade da maioria.

O governo era então de esquerda. Hoje, somos governados pela extrema direita, com um estoque de agressões à ordem constitucional e legal que supera, em um ano e nove meses, os 13 e poucos de gestões petistas. E eis-me aqui de novo a negar capim a ruminantes.

Nesta sexta, o país vai superar a marca dos 141 mil mortos por Covid-19. Estamos à frente dos EUA em óbitos por 100 mil e lideramos o ranking tétrico do G-20. As praias e os bares indicam que parte considerável dos brasileiros faz a sua própria leitura de “Os Lusíadas”, de Camões. Entregam-se esses à urgência embriagada “e se vão da lei da morte libertando”, ainda que possam efetivamente matar e morrer em suas obras nada valorosas.

Há um desprezo épico pelo saber testado e firmado, do tamanho das línguas de fogo que devastam o Pantanal e parte da Amazônia. Os investimentos estrangeiros despencam e fogem, levados pelos fumos da irresponsabilidade oficial e da morte. Jamais me acusem de ter dito um dia que a voz do povo é a voz de Deus. Já escrevi que, mais de uma vez, foi o capeta que soprou as escolhas aos ouvidos das massas.

“Tá tristinho, Reinaldo, com a vontade do povo?” Reproduzo pergunta que um petista fez em 2006 na área de comentários do blog quando escrevi o tal artigo. Nessas coisas, não sou alegre nem triste. Aponto o que vejo. Reservo os sentimentos para meus amores e meus amigos.

O auxílio emergencial, obra do Congresso, não de Bolsonaro, e a caça a governadores que combateram o vírus, com ou sem roubalheira, explicam parte do resultado da pesquisa. Há, pois, fatos que elucidam os números. Mas não era e não sou paternalista: a avaliação traduz agora, como traduziu no passado, escolhas que são também morais e éticas.

Homem de máscara caminha na praça do Patriarca, no centro de São Paulo, e banner da prefeitura sobre o novo coronavírus está no fundo. Mathilde Missioneiro/Folhapress

Todo o cuidado é pouco. A culpa não é só do povo, claro! Há a das elites, ainda mais importante, conforme também se depreende do citado Artigo 10. Escrevemos nosso próprio roteiro de “Como as Democracias Morrem”. No livro, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt observam que uma das “normas cruciais” para a sobrevivência da democracia é a “reserva institucional”.

Entende-se por isso “o ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito”, pois tal ação “pode pôr em perigo o sistema existente”. Ministério Público e Judiciário, nos últimos seis anos, têm mandado a autocontenção às favas e destruído o ambiente da “reserva institucional”, pretextando o cumprimento da lei —o que, de resto, é falso.

A democracia, que é mais do que um sistema de escolha de governantes, está, sim, em perigo. Seja porque a paixão das facções chega às decisões de Estado, seja porque a elite do aparato investigativo-judicial perdeu a noção da importância que tem a “reserva institucional” na defesa de um regime de liberdades.

Pronto. O achincalhe pode começar, como em 2006, agora por novos autores.

*É jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

Categorias
Artigo

Cancelamento está mais próximo do fascismo que da democracia

Por João Pereira Coutinho*

Folha de S. Paulo

1. “Cultura do cancelamento”: será que existe? E será que, existindo, é uma ameaça para a liberdade de expressão?

Estou confuso. Sobretudo depois de ler o texto confuso que Milly Lacombe escreveu para esta Folha. Que nos diz a autora?

Basicamente, que a “cultura do cancelamento” existe (oba!, já é um progresso). Mas não é uma ameaça à liberdade de expressão porque o objetivo é “cancelar” ideias e atitudes, não pessoas.

Lamento, Milly, não é o que tenho visto. Quando falamos em “cultura do cancelamento”, não estamos apenas a “cancelar” ideias ou atitudes (“apenas” uma ova: se fosse só isso, já seria aberrante). “Cancelamos” pessoas, sim, destruindo reputações e carreiras. E por quê?

Ilustração de homem sendo entrevistado, várias mãos com microfones segurando em direção a ele
Angelo Abu

Porque os “cancelados” revelaram em público ideias ou atitudes que não agradam à fúria irracional das redes sociais. Eis como, partindo de ideias e atitudes, chegamos facilmente às pessoas.

Mas o texto de Milly Lacombe assenta num erro mais básico: na própria definição de liberdade de expressão. Diz a autora que liberdade de expressão exige prudência, disciplina, respeito pelo outro. Porque as palavras podem ferir ou até matar.

Não duvido. É por isso, aliás, que existem tribunais: para punir abusos da liberdade de expressão, de acordo com a lei. Eu sei disso, até na qualidade de ex-condenado.

O problema é que as redes sociais não são tribunais nem atuam de acordo com a lei; são hordas anônimas que destroem à margem da lei, sem garantir ao acusado nenhum direito de defesa.

Para usarmos a palavra fatal, a “cultura do cancelamento” está mais próxima do fascismo do que da democracia propriamente dita.

Claro que essa conversa sobre a lei e o estado de direito pode parecer trivial para quem participa dos linchamentos virtuais. Também era trivial para os fascistas.

Mas basta imaginar o mundo do avesso para valorizarmos imediatamente essas relíquias: o que diria Milly Lacombe se a “cultura do cancelamento”, que hoje cancela posições mais conservadoras, desatasse a cancelar com a mesma fúria qualquer posição progressista?

Será que a autora diria, com a mesma leveza, que “o que foi hoje cancelado pode ser descancelado — porque a vida é movimento”?

Ou gostaria que a lei pudesse defender quem é atacado selvática e injustamente só porque tem ideias ou atitudes diferentes da norma?

Esse é o problema de aprisionarmos a liberdade de expressão a um imperativo do respeito. Todos temos concepções diferentes de “respeito”: o que para mim pode ser uma verdade necessária é para o meu parceiro a violação de um tabu.

Para respeitar todo mundo, a humanidade ainda estaria nas cavernas. Para evitar ofender, nenhum preconceito seria criticado; nenhuma concessão desumana seria banida; nenhum abuso seria corrigido.

Bem sei que a autora não deseja esse mundo, que no limite seria o suicídio da sua arte e até da sua vontade de contestar “um modo de vida que nos desautoriza e deslegitima enquanto sujeitos”.

Mas até para contestar esse modo de vida é preciso mais liberdade de expressão, não menos. O que significa mais discussão e menos “cancelamento”.

2. Sempre que alguém defende a “cultura do cancelamento” no Ocidente, penso em Joshua Wong. Quem é Wong?

Um dos rostos da luta pela democracia em Hong Kong e autor de “Unfree Speech: The Threat to Global Democracy and Why We Must Act, Now” (da editora Penguin, 288 págs.), uma espécie de autobiografia política.

Parece piada escrever uma autobiografia aos 23 anos. Mas quando lutamos pela liberdade a partir dos 12; quando somos presos pela primeira vez aos 17; quando passamos uma longa temporada no cárcere aos 20; e quando, aos 23, somos impedidos de concorrer às eleições legislativas de Hong Kong porque a ditadura de Pequim nos considera inimigos do regime, percebemos que a idade é um pormenor.

O livro de Wong, que também inclui o seu diário na prisão, é uma defesa dramática de certos direitos ou princípios que as sociedades ocidentais dão por adquiridos —eleições livres, liberdade de expressão, Judiciário independente etc.—, mas que se tornaram artigos ainda mais raros depois de a China aprovar a nova lei de segurança nacional.

Eis um retrato do mundo: em Hong Kong, jovens como Wong sacrificam tudo pelas liberdades mais básicas. No Ocidente, o sacrifício do momento é mandar calar a boca de quem não pensa como nós.

*É escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
Este artigo não representa a mesma opinião do blog. Se não concordar, faça um rebatendo que publique como uma segunda opinião sobre o tema.
Categorias
Artigo

O Brasil começa a colocar Bolsonaro de joelhos?

Manifestante participa de protesto 'Stop Bolsonaro' em Lisboa, no último domingo.
Manifestante participa de protesto ‘Stop Bolsonaro’ em Lisboa, no último domingo (MIGUEL A. LOPES / EFE)

Por Juan Arias

Às vezes, a luz chega antes do amanhecer. Com Bolsonaro o Brasil começou a entrar no túnel escuro das ameaças à democracia. De repente, quase em um passe de mágica, o presidente que era como um novo ditador, esmurrando a cada instante os valores da democracia, zombando dela, parece ter se convertido em um pacífico Francisco de Assis.

Cálculo? Medo? Cansado de ser encurralado dentro e fora do país? Não importa. A verdade é que os presságios que se adensavam sobre a morte da democracia parecem ter se dissipado por um momento. Bolsonaro, pela primeira vez, fala de diálogo, de reconciliação e defende, assustem-se, a democracia.

Ainda não sabemos se essa aparente conversão de Bolsonaro será apenas um parêntese para recuperar forças e voltar à carga com suas armas de morte. Uma coisa é certa. Bolsonaro, neste momento, se viu de repente posto duplamente de joelhos. Pelos militares que parecem ter conseguido refrear seus ímpetos golpistas ameaçando sair do Governo e deixá-lo sozinho, e pela importante pesquisa do Datafolha, segundo a qual 75% dos brasileiros apostam hoje na democracia, enquanto esmagadores 91% consideram a política das fake news, tão queridas, usadas e abusadas pelas hostes de Bolsonaro, como contrárias e ofensivas à democracia.

Revelam também o desejo de derrotar o autoritarismo do presidente os diferentes e importantes movimentos a favor da democracia que, na linha das Diretas Já, estão aparecendo entre pessoas de todas as categorias culturais e sociais. E a isso se une ainda o medo de Bolsonaro dos fantasmas que assombram e ameaçam toda a sua família, desde o assassinato de Marielle até a recente prisão de Queiroz, aquele que guarda tantos segredos que devem estar tirando o seu sono.

Ao que parece, Bolsonaro teria confidenciado recentemente a alguns amigos que estava começando a se cansar de tantas brigas. Não sabemos se se trata de cansaço ou de medo. Dá na mesma. Não acredito realmente em uma conversão de um presidente incapaz de arrependimentos, pois seus delírios de autoritarismo e suas nostalgias de velhas ditaduras e práticas abomináveis de tortura ainda estão vivos nele. O importante é que parece que os astros estão se unindo para deter o braço suicida de suas loucuras de rupturas democráticas e que está pedindo diálogo até mesmo a seu inimigo mortal, o Supremo Tribunal Federal.

Os movimentos de resistência à barbárie e a união de todas as forças democráticas contra obscurantismos políticos, culturais e sociais foram muitas vezes vitoriosos na conturbada história da humanidade. E com todos os horrores e ameaças de hoje à democracia, o mundo está melhor do que ontem. É mentira o dito de que “os tempos passados eram melhores”. Pelo contrário, sempre foram piores do que hoje, embora nos custe admitir isso. Se não, digam o que eram os direitos das mulheres apenas 100 anos atrás. O que era a defesa dos direitos humanos, as guerras que assolavam a Europa, a miséria da maior parte do mundo, a pobreza da medicina e as mortes por fome e desnutrição.

Se o mundo de hoje ainda nos horroriza, é porque perdemos a memória do que foi a história. Isso não justifica a pobreza, a violência nem as violações dos direitos humanos ainda vivos em tantos lugares do mundo. Mas, na sua totalidade, o mundo é hoje, como nos lembram cientistas e sociólogos, mil vezes mais habitável do que no passado.

É verdade que a humanidade sempre caminhou aos tropeções entre luzes e trevas, mas nunca houve uma consciência maior do que hoje em favor das liberdades e dos direitos humanos. Não estamos no céu, mas também não estamos no inferno que um dia foi a Humanidade.

Tomara que o novo pesadelo que vive o Brasil, de ser governado por um presidente com nostalgia de um passado de horrores que queremos esquecer, acabe logo, e que este país possa retomar o caminho de paz que havia conquistado e que era aplaudido pelos países mais avançados. Tomara que os jovens brasileiros que não conheceram a barbárie das ditaduras, que no Brasil são milhões e que hoje apostam na democracia, sejam o novo fermento de esperança contra o obscurantismo em que o país tinha começado a entrar.

Demasiado otimista? Talvez, mas minha idade me permite sonhar para que meus netos possam desfrutar do Brasil que merecem e que ninguém tem o direito de lhes roubar. Deixem-me sonhar uma vez com as estrelas. Vivi quando criança uma terrível guerra civil e depois uma cruel ditadura de 40 anos. Deixem-me sonhar para as crianças e jovens brasileiros o que a vida me negou.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

Categorias
Artigo

A solidez da nossa democracia

Por General Girão*

Em 24 de maio de 2020 Artigo recentemente publicado em um jornal de São Paulo, de autoria de um pouco conhecido cientista político, analisa a História brasileira nas últimas três décadas e meia para concluir, como título, que a “forte presença militar no Estado reflete fragilidade da democracia no Brasil”. O texto começa discorrendo sobre a posse de José Sarney, em 1985, bem como do papel do então Ministro do Exército e das próprias Forças Armadas na transição e, em seguida, na elaboração da Constituição Federal de 1988. À época no posto de Capitão, vivi e acompanhei, pelo noticiário, cada citado episódio e posso assegurar que há ilações pouco consistentes em diversos pontos. É descabida, por exemplo, a “presença marcante” do General Leônidas na redação da Carta Magna, especialmente no que se refere à Polícias Militares.

Insiste o analista que as Polícias Militares permanecem subordinadas ao Exército, o que é absolutamente falso, uma vez que reportam-se, para todos os fins e efeitos, aos respectivos governadores das Unidades da Federação, conforme preconizado por todo o arcabouço vigente. A visão do autor sobre o artigo 142 da Constituição Federal, que refere-se diretamente às Forças Armadas, demonstra mais uma série de equívocos, examinando se podem ou não os militares intervir para garantir os poderes constitucionais. Nesse ponto, é válido lembrar o poema de Charles M. Province (1970), indicando que “É graças aos soldados, e não aos sacerdotes, que podemos ter a religião que desejamos. É graças aos soldados, e não aos jornalistas, que temos liberdade de imprensa (….) É graças aos soldados, e não aos políticos, que podemos votar”. Em qualquer país do mundo, quando ocorre a falência das instituições, ou as Forças Armadas atuam para restaurar o regime ou instala-se o caos, a guerra civil ou invasões estrangeiras.

Depois, afirmando que “as Forças Armadas deixaram o governo, mas não o poder”, o artigo salta para os tempos atuais. Deduzo que ou o autor é deve ter vivido fora do Brasil nas últimas décadas, porque todo cidadão medianamente informado sabe que os militares foram mantidos — e mantiveram-se — totalmente afastados dos principais centros do Poder Executivo e ausentes do Poder Legislativo, em decorrência de leis aprovadas durante o próprio Regime Militar. Sobre o alegado “bunker” do Governo Bolsonaro, nomeando militares para cargos de confiança, é preciso enfatizar que trata-se de militares da reserva ou afastados do serviço ativo, uma vez que a Marinha, o Exército e a Força Aérea permanecem voltados para suas missões constitucionais.

Por outro lado, os militares são reconhecidos como excelentes gestores públicos e conhecedores dos meandros da complexa burocracia estatal, o que os credencia para exercer cargos de confiança. Nunca é demais lembrar que, em recentes governos anteriores, muitos desses cargos foram ocupados por comunistas, ex-guerrilheiros e ex-terroristas, configurando verdadeiras quadrilhas que assaltaram os cofres públicos como “nunca antes na História deste País”. Finalizando, uma leitura acurada da matéria permite afirmar que a verdadeira fragilidade não é característica da democracia brasileira e sim da capacidade de análise do autor.

*É deputado federal pelo Rio Grande do Norte.

Categorias
Artigo

A força de uma democracia

Por General Girão*

O art. 1o da Constituição Federal de 1988 preconiza que:

“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:

a soberania;

a cidadania;

a dignidade da pessoa humana;

os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Com base na nossa Carta Magna, devemos nos debruçar sobre onde repousa a força dessa democracia: nos gabinetes dos eleitos ou na efetiva vontade popular?

Realizadas as eleições, temos o Poder Legislativo redesenhado, com os representantes do povo aptos a desenvolverem estudos e debates para a aprovação das regras de convivência, ou seja, as Leis que vão reger esse Estado Democrático de Direito.

No âmbito federal, os Deputados são eleitos para um mandato de quatro anos e os Senadores para oito anos, pressupondo que a sociedade deve aguardar esses períodos para renovação de seus representantes, mesmo que sejam identificados parlamentares que não estejam correspondendo ao que os eleitores esperavam. São raros os casos de perda do mandato, seja pela complexidade da justiça brasileira, seja por um corporativismo entre os pares.

No atual conjuntura, estamos a presenciar uma crise mundial em função de uma pandemia creditada ao novo coronavírus (COVID-19). Essa situação tem exigido decisões dos gestores da União, Estados e Municípios, gerando diferentes interpretações dos problemas e soluções por vezes desencontradas. Todavia, em meio a esse complexo panorama, o Legislativo Federal tem sido pródigo em aprovar proposições de grande impacto social e econômico, sem que sejam realizados adequados estudos de base e sem que as discussões possam aperfeiçoar os textos legais.

Vivemos há cerca de três décadas com o chamado “Presidencialismo de Coalisão” — fruto de uma Constituição Federal parlamentarista (1988) e de um sistema de governo presidencialista, como resultado do plebiscito de 1993. Esse modelo “ornitorrinco”, único no mundo, está comprovadamente falido, porque dá ao Congresso poderes que deveriam ser do Presidente da República, ao tempo em que atribui a este as responsabilidades por todos os fracassos porventura decorrentes da execução.

Críticos alegam que o Presidente da República deve saber “negociar” com o Congresso, de modo a aprovar as medidas necessárias para implementar o Programa de Governo aprovado pela maioria, em eleições gerais. Mas nossa História recente mostra dois “impeachments” e diversos escândalos de compra e venda de votos parlamentares, com destaque para o Mensalão e o Petrolão, ambos do PT, comprovando o quão falho é esse modelo.

Assim, temos uma situação em que os integrantes da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, por vezes eleitos com pouco mais de 0,1% dos votos do Presidente da República, têm poderes para articular a aprovação de medidas que contrariam frontalmente o Executivo, desprezando a vontade popular. Isso enfraquece a democracia, por negar ao povo o direito de reagir aos enganos ou ilusionismos praticados contra si.

Fica, portanto, a pergunta: onde mesmo está o poder de uma democracia? Nas ruas ou nos gabinetes legislativos de uns poucos eleitos?

“O fim do Governo é o bem dos homens” John Locke

 

*É Deputado Federal pelo Rio Grande do Norte.

Categorias
Artigo

Tempo adiado ou populismo enfurecido

Por Cláudia Costin

Uma das mais importantes poetas em língua alemã do século 20, uma austríaca Ingeborg Bachman, foi testemunha da invasão nazista de sua cidade quando tinha apenas 11 anos. Não por acaso, passou a vida a ter o retorno de idéias associadas ao fascismo, que julgava estar presente na sociedade, mesmo que de forma mascarada.

Em 1953, publicou um poema magnético com o título “Tempo Adiado”. Na boa tradução de Claudia Cavalcanti, alertava: “Vêm ai dias piores / O tempo adiado na nova ordem surge no horizonte”.

Uma forca desses versos nos remete, sem vida, ao que vivemos hoje no mundo. Sim, vivemos tempos de grandes avanços, incluindo crianças e jovens na escola, redução de violações vítimas de guerras e crimes, queda de mortes de crianças e mães e democracias sósias em boa parte do mundo. Mas uma percepção popular não é essa, embora a pobreza venha diminuindo, uma desigualdade social e o sentimento de exclusão que aumenta, o que não é prenuncia tempos tranquilos.

O cientista político inglês David Runciman comentou, em livro recente, uma situação curiosa em que vivemos no planeta. Segundo ele, embora a democracia se mostre consolidada em países em desenvolvimento e golpes militares sejam improváveis, ele será descontentado na sociedade frente a falta de representatividade ou de pertencimento que caminha junto com as conseqüências do que convencionar chamar de Revolução. o 4.0.

O cientista político britânico David Runciman – AFP

Os funcionários do nacionalismo e dos princípios unificadores épicos de guerra de clamam também contra as “burocracias transnacionais” e políticas políticas que destroem as economias e as receitas, criando como bases para uma ascensão de grupos populacionais que coloquem como instituições em risco, sem precisar derrubar presidentes. A partir de uma litania contra uma grande imprensa, o Judiciário e o Legislativo – que separa as ruas reais ou virtuais – promove o chamador de “engrandecimento executivo” (ou agigantamento do Executivo, em tradução tradicional) o livre).

Para isso, é necessário mobilizar um ex-candidato a seguidores – quem não é o candidato a quem se coloca como voz dos que sentem representados pela ordem anterior -, quem pede a lealdade acrílica, o que permite evitar o difícil trabalho de implementar políticas públicas ou cumprir direitos autorais. Nesse sentido, a democracia segue funcionando, mas corresponde ao risco de se equiparar.

Mas, como afirmou Churchill, um sistema democrático de democracia, para todos os outros, e a destruição por desfiguração desse tipo de governo, traz consigo uma preservação de sociedades prósperas e danos. Por agora, fica o tempo suspenso ou adiado.

Categorias
Artigo

Decadência democrática

Por Homero Costa*

Em 2017 Richard Wike, Katie Simmons, Bruce Stokes e Janell Fetterolf publicaram o artigo “Many Unhappy with Current Political Systems” (Pew Reseach Center), resultado de uma pesquisa na qual afirmam que o público, em todo mundo, está, em geral, insatisfeito com o funcionamento dos sistemas políticos das suas nações e que mais de 50% dos norte-americanos estavam insatisfeitos com a sua democracia, “tal como a maioria dos cidadãos no sul da Europa, do Médio Oriente e na América Latina”.

Esses dados são também constatados com outras pesquisas, como as do Instituto V-Dem (Instituto de pesquisa independente, criado em 2014 e com sede  no Departamento de Ciência Política da Universidade de Gotemburgo, na Suécia) que na pesquisa V-Dem: Padrões Globais, Conhecimento Local, analisa o que chamam de Variedades da democracia (V-Dem),  uma nova abordagem para conceituar e medir a democracia. Fornecendo um conjunto de dados multidimensional e desagregado afirma que a democracia  vai além da realização de eleições periódicas. Na pesquisa, foram definidos cinco tipos  de democracia: eleitoral, liberal, participativa, deliberativa e igualitária e constatou-se o que os autores chamaram de decadência democrática. Ao medir empiricamente a qualidade de democracias no mundo, constata que houve em alguns países, o Brasil incluído, “preocupantes refluxos democráticos”.

Segundo a pesquisa, o mundo está enfrentando um processo de autocratização. Os atributos do regime democrático liberal foram se corroendo gradualmente em 24 países nos últimos dez anos. Na maioria desses países os populistas de direita levaram seus países à “direção mais autocrática”. E os atores fazem uma pergunta relevante: as forças pró-democracia serão bem-sucedidas em recuperar forças ou estamos em uma onda de autocratização em longo prazo?

Uma expressiva bibliografia tem sido produzida no momento para tentar compreender a decadência democrática, ou seja, a degradação das estruturas e da substância da democracia constitucional liberal.

Entre outros podemos citar o livro Como as democracias morrem de Steve Levitsky e Daniel Ziblat (Editora Zahar, 2018) o qual, em que pese reduções simplificadoras como colocar na mesma categoria Hugo Chávez e Adolf Hitler (p.15 e 16) fazem uma análise sobre a estrutura das democracias constitucionais atuais e suas “normas implícitas”. Para eles, o desprezo pela tolerância mútua e pelo que chamam de “parcimônia institucional”, provocam sérios danos as democracias, sem que seja necessário apelar para afrontas mais explícitas ao sistema constitucional.

São complexos e amplos os perigos para a democracia no atual cenário mundial. Vão desde manipulações eleitorais, retrocessos autoritários, com o enfraquecimento ou eliminação de instituições que são base de sustentação das democracias.

Larry Diamond no livro O espírito da democracia (Editora Atuação, 2015) se refere à existência de uma recessão democrática, um aprofundamento do autoritarismo no mundo, inclusive em democracias mais consolidadas.

No livro O povo contra a democracia; por que nossa liberdade corre risco e como salvá-la de Yascha Mounk (Editora Companhia das Letras, 2019), afirma que a democracia liberal “mistura única de direitos individuais e soberania popular que há muito tempo caracteriza a maioria dos governos da América do norte e da Europa Ocidental” está se desmanchando.

O entendimento do autor é que a democracia liberal como um sistema político ao mesmo tempo liberal e democrático, protege os direitos individuais e traduz a opinião popular em políticas públicas. Mas que pode se desvirtuar de duas formas: podem ser iliberais, onde há uma subordinação das instituições aos caprichos do executivo ou por restringir os direitos das minorias que a desagradam e que a regimes liberais podem ser antidemocráticos, a despeito de contarem com eleições regulares e competitivas e que Isso tende a acontecer sobretudo em lugares onde o sistema político favorece de tal forma a elite que as eleições raramente servem para traduzira opinião popular em políticas púbicas.

Para ele, esta cola está perdendo aderência, e que duas formas de regime estão ganhando projeção: a democracia iliberal – que ele entende como democracia sem direitos (o que é uma contradição) e o liberalismo antidemocrático, ou direito sem democracia.

Michael Löwy no artigo Neofascismo: um fenômeno planetário. O caso Bolsonaro inicia afirmando que se constata nos últimos anos “uma espetacular ascensão da extrema direita reacionária, autoritária e/ou “neofascista”, que já governa metade dos países em escala planetária: um fenômeno sem precedente desde os anos 1930. Alguns dos exemplos mais conhecidos: Trump (USA), Modi (Índia), Urban (Hungria), Erdogan (Turquia), ISIS (o Estado Islâmico), Duterte (Filipinas), e agora Bolsonaro (Brasil). Mas em vários outros países temos governos próximos desta tendência, mesmo que sem uma definição tão explicita: Rússia (Putin), Israel (Netanyahu), Japão, (Shinzo Abe), Áustria, Polônia, Birmânia, Colômbia, etc.”.

Mas também destaca algumas diferenças importantes.  Como o fato de que “Enquanto boa parte da extrema direita, em particular na Europa, denuncia a globalização neoliberal, em nome do protecionismo, do nacionalismo econômico e do combate à “finança internacional”, no caso do Brasil, se “propõe um programa econômico ultraliberal, com mais globalização, mais mercado, mais privatizações, além de um completo alinhamento com o Império norte-americano”.

No Brasil, não faltam sinais e atos que indicam o caminho em direção à decadência democrática. Um governo que não cessa de levar adiante uma “guerra ideológica” contra seus adversários, considerados como inimigos, com o uso desmedido de decretos, medidas provisórias, ataques aos direitos sociais etc., que não tem sido respondido com eficiência pelos demais poderes. Foi assim em relação aos decretos sobre posse e porte de armas, reformulados ao sabor de reações legislativas.  O que parece é não haver disposição para se enfrentar o projeto neoliberal e suas consequências.

Em relação à justiça, o que se espera do Poder Judiciário é que impeça qualquer arroubo autoritário em defesa do constitucionalismo de perfil social estruturado pela Constituição de 1988 e na sociedade civil como defende Michel Lowy há a necessidade imperiosa de construir amplas Frentes Únicas Democráticas e/ou Antifascistas para combater o que ele chama de “onda da Peste Marrom”. Mas, salienta “não podemos deixar de levar em conta que o sistema capitalista, sobretudo nos períodos de crise, produz e reproduz constantemente fenômenos como o fascismo, o racismo, os golpes de estado e as ditaduras militares. A raiz desses fenômenos é sistêmica e seu combate só pode ser também sistêmico (radical e antissistêmica). Um grande e inadiável desafio.

*Artigo extraído da Revista Nossa Ciência.

Categorias
Artigo

Polarização e o jornalismo despolitizado

Cresci acompanhando disputas polarizadas entre Alves e Maias no Rio Grande do Norte. Iniciei a carreira jornalística acompanhando a polarização Rosado x Rosado em Mossoró.

Durante 20 anos PT e PSDB polarizaram as disputas políticas no Brasil.

A polarização no Rio Grande do Norte se quebrou quando Wilma de Faria venceu no histórico pleito de 2002 e se tornou nossa primeira governadora. Em pouco tempo ela passou a polarizar com Alves e Maias que se uniram para enfrenta-la em 2006 e 2010. Hoje a política potiguar caminha para uma polarização esquerda x direita.

Em Mossoró, os Rosados, outrora divididos, estão unidos em seus dois núcleos mais tradicionais. A polarização de 2020 será no mesmo sentido de 2016 com Rosado x Não-Rosado. Até outubro do ano que vem alguém vai ocupar este espaço da alternativa de poder sem o sobrenome tradicional.

No Brasil, o PSDB foi substituído pelo bolsonarismo na polarização com o PT.

Como o leitor pode perceber com o que mostrei até aqui que a  polarização é um elemento do processo político. Ela pode ser mais ou menos radical, mas não existem disputas eleitorais sem isso.

A imprensa, de modo geral, explora muito mal o tema. Trata como algo novo ou ruim. Não é nenhuma coisa nem outra. A polarização é natural nos regimes democráticos e sempre existirá.

O que existe é um discurso para incluir quem está de fora dentro da polarização, mas está doido para entrar nesse embate que traz protagonismo aos envolvidos.

A mídia nacional insiste em tentar despolitizar a política porque ainda não aprendeu as lições do estrago que esse tipo de posição fez ao país.

O problema não é a polarização em si, mas o tipo que temos em curso. Daí quando o jornalismo contribui para despolitizar a política presta um desserviço.

 

Categorias
Entrevista

Para cientista político ‘Nós ou eles’ enfraqueceu a democracia e afastou as classes médias do debate político

Para Moisés, é preciso uma frente democrática (Foto: FELIPE RAU/ESTADÃO)

Por Gabriel Manzano

Estadão

A polarização política, implantada com o “nós ou eles” do PT e reafirmada, no extremo oposto, pelo bolsonarismo, significou o adeus à moderação e ao consenso na política brasileira e afastou do debate público largos setores de classe média. A isso se juntou “uma crise de lideranças que levou a uma perda de conteúdo da democracia liberal”.

A advertência é de um dos mais experientes analistas da cena brasileira dos últimos 40 anos, José Álvaro Moisés. De um lado, Moisés aponta a radicalização no debate sobre segurança e corrupção. De outro, uma perda de conteúdo dos partidos do centro, em especial PSDB e MDB. E deixa, nesta entrevista a Gabriel Manzano, uma ideia para se tirar a sociedade do impasse: a formação “de uma frente democrática, envolvendo as diferentes forças independentemente de elas estarem um pouco à esquerda, ou à direita. O momento está exigindo isso.”

À parte tarefas imediatas dessa frente, como aprovar o voto distrital misto e redefinir os limites que a sociedade aceita para financiar campanhas, “temos de deixar claro que defender a democracia é mais importante do que atacar o outro lado”. É preciso, conclui, “de novo impor a moderação como marca do debate social e político”. A seguir, os principais trechos da conversa.

O Brasil vive, há tempos, uma polarização alimentada pelo “nós ou eles” de Lula e depois pela “nova política” de Bolsonaro, e no meio uma imensa classe média órfã de representação nesse debate. Como analisa isso?

O que temos é uma crise de liderança política e econômica desde 2013. Ali ficou clara a rejeição de parte importante da classe média em relação ao mundo político. Em 2018 a classe média identificou o PT como responsável pela sua perda de renda com a recessão e votou contra ele. Acabou aceitando os termos da polarização. Não estou dizendo que não tivessem razão ao criticar, especialmente na questão da corrupção. Mas, sem dúvida, isso afastou do diálogo político a moderação, levou a classe média a conviver com uma posição mais extrema.

As recentes pesquisas apontam uma queda no prestígio do atual governo. Isso significaria que o atual cenário pode ser mudado?

Ele está começando a mudar. É visível a decepção com o governo, que não está entregando o que prometeu. A classe média começa a perceber e vai para uma posição mais crítica, já detectada nessas pesquisas. Mas ainda faltam, a meu juízo, novas lideranças que sejam capazes de aglutinar esses segmentos insatisfeitos. O fato é que temos, ao lado da crise econômica, uma crise dos partidos políticos, especialmente os de centro, centro-esquerda e centro-direita. Refiro-me especificamente ao PSDB, ao MDB, que perderam seu conteúdo programático e não foram capazes, desde então, de renovar as lideranças.

O que poderiam ter feito e não fizeram?

Se você olhar em relação aos protestos de 2013, ninguém, nenhuma liderança, mesmo, disse uma única palavra de empatia, de identificação com a rejeição que aqueles segmentos afirmaram nas ruas, em relação ao modo de funcionamento da política. Eles se afastaram.

O que seria essa empatia?

Os atos de 2013 tornaram visível a rejeição de um segmento muito importante da sociedade quanto ao modo de funcionamento da política. O que estava em questão era o esvaziamento dos partidos, a desconexão entre representados e representantes. E há também um funcionamento ruim das instituições, com resultado negativo nas políticas públicas. Essa rejeição apareceu com clareza em inúmeras pesquisas. Inclusive nas que eu conduzi na USP que apontaram altos índices de desconfiança com relação a partidos, Congresso, Judiciário. Veja o papel das lideranças na campanha presidencial. Alckmin, Meirelles, Ciro Gomes, Marina, nenhum desses líderes foi capaz de responder àquela crise.

Isso apareceu também nos níveis de rejeição aos candidatos nas urnas em 2018.

Exato, um alto nível de rejeição. Faltou aos líderes se mostrarem solidários com o sofrimento de uma parte importante da sociedade brasileira. Gente que, ao perder renda, perder emprego, ficou numa situação crítica. Não se estabeleceu nenhuma conexão.

Ficou um espaço vazio.

Sim, um espaço que foi ocupado por Bolsonaro e por uma posição de ultradireita que radicalizou o debate sobre segurança e sobre corrupção. Cabe perguntar: por que outros setores, democráticos, não tomaram uma posição clara em relação à corrupção? E os partidos? Não poderiam fazer uma autocrítica, admitir que cometeram erros, e que assumiriam o compromisso de se corrigir?

Pode-se dizer que 2018 ‘se esqueceu” de 2013, não?

Num certo sentido, de fato, 2018 foi uma consequência de esses líderes e partidos terem virado as costas para 2013, para o que ele representava. Nem o PT fez sua autocrítica. No caso do PSDB, o Tasso Jereissati, que ocupava a presidência interina, fez uma tentativa de autocrítica, inclusive com um programa de TV no qual se admitia que o partido cometeu erros, mas os estava corrigindo.

Mas a causa não avançou.

Sim, isso não foi aceito pela grande maioria do partido. Morreu ali. O que traz à tona outra questão fundamental: a crise de lideranças no País, que teve como consequência uma perda de conteúdo da democracia liberal.

De que forma?

Porque permitiu que se organizasse um ataque da extrema direita em relação aos direitos fundamentais da democracia, em relação às minorias. Tivemos um bom exemplo disso agora, quando Bolsonaro, na ONU, abordou a questão indígena falando em “um indigenismo ultrapassado”. E houve outros ataques a outras minorias, como sabemos. A meu ver isso é responsabilidade das lideranças chamadas democráticas, que de algum modo representavam uma alternativa para as classes médias, mas não se apresentaram.

Como imagina que isso vai ser resolvido?

Temos de saber se esses efeitos negativos podem desencadear uma reação. Se novas lideranças conseguirão reafirmar posições mais moderadas. Acredito que estamos diante de um desafio: a formação de uma frente democrática, envolvendo as diferentes forças independentemente de elas estarem um pouco mais à esquerda, ou à direita. O momento está exigindo isso. Mas não pode ser, como alguns já acenam, uma frente de esquerda, que de novo leve ao isolamento.

Teria de ser uma frente obrigatoriamente ampla…

Não precisamos de isolamento neste momento. Precisamos de unificação de todos os segmentos que tenham algum compromisso com a democracia. Isso significa, por exemplo, chamar os liberais, eu até diria os liberais conservadores, que não são a ultradireita. Setores que não concordam com o governo Bolsonaro.

Quais seriam as tarefas práticas dessa frente?

Ela deve reiterar os compromissos da democracia, os direitos fundamentais envolvendo minorias – destaco os índios e os afrodescendentes. Vamos entender aqui: as políticas de segurança não estão respondendo ao fato de que as maiores vítimas da criminalidade e da insegurança continuam sendo os jovens negros. Em especial se moram nas periferias, nas favelas. Este é outro item quando eu digo que o governo não está entregando o que prometeu. O caso do Rio de Janeiro é dramático, mas não é só no Rio que isso ocorre.

Isso ajudaria a romper a polarização do “nós” contra “eles”?

Essa frente precisaria combater a sério essa bipolarização. Deixar claro que defender a democracia é mais importante do que atacar o outro lado. Isso é essencial para trazer essa parcela da sociedade de volta a um papel proativo na política. Significa de novo impor a moderação como marca do debate social e político. E uma forma de antecipar essa meta é a qualificação desses segmentos para propor nomes novos já nesta eleição para prefeitos em 2020.

Já tem gente se dedicando a formar novas lideranças. O RenovaBR, o Raps e o Agora qualificam pessoas para os partidos.

Acho extremamente positivo, é por aí. Selecionar e estimular novas lideranças é tarefa das instituições da sociedade civil, como as que você citou. Mas é também tarefa da universidade. Ela precisa… não digo lançar líderes, mas preparar uma camada de profissionais com conhecimento dos problemas do País e que se disponham a atuar na política com outra perspectiva.

Qual perspectiva?

A democrática e republicana. Porque, vamos nos entender, nem sempre a democracia reivindica os princípios republicanos. E nem sempre os princípios republicanos são realizados em contexto democrático. Essa é uma grande questão, na formação de novos líderes: a junção dessas duas perspectivas. Democracia com probidade administrativa e respeito ao interesse público.

A universidade, de modo geral, acha isso importante?

Há uma preocupação com esse tema no Instituto de Estudos Avançados da USP. Ali se faz um esforço nessa direção. Mas precisamos fazer mais do que o que tem sido feito até agora, avançar esse empenho em formar novos líderes.

Voltemos à ideia de uma frente. Imagina para ela um programa prioritário?

Um primeiro passo seria em relação às eleições de 2020, preparar candidaturas pensando nesse objetivo. E o segundo, preparar também lideranças para 2022. E tem aí também uma estratégia essencial, a de criar lideranças para disputar o Legislativo. Construir uma conexão entre os dois poderes, formar uma base de apoio político. Independentemente de partido A ou B, tem de focar em renovar a política.

Renovar em que direção?

Enfrentar os estrangulamentos do sistema político. Em primeiro lugar, caminhar logo para o voto distrital misto. Em segundo, focar a questão do financiamento das campanhas, definindo qual o nível que a sociedade aceita de recursos para financiar a democracia. Está claro que ela precisa, sim, ser financiada, mas não por atores privados porque isso já significa distorcer resultados eleitorais. Qual o grau que é aceitável? E isso leva à ideia de que as campanhas precisam ser mais baratas.

E o terceiro ponto?

Resolver, numa reforma política, a assimetria que hoje temos entre Executivo e Legislativo. Hoje é o Executivo que tem todos os poderes para definir a agenda política no País. Citaria no mínimo duas questões: limitar as medidas provisórias do Executivo e sua prerrogativa de montar e propor o Orçamento anual do governo. É o Orçamento que define as prioridades das políticas públicas, e isso não pode ficar nas mãos só do Executivo.

Categorias
Análise

Por que os latino-americanos estão desencantados com a democracia

Manifestação de apoio ao jornalista Glenn Greenwald na quarta-feira, em São Paulo.

Por Jorge Galindo

El País

A democracia, outrora um farol com o qual o Ocidente pretendia iluminar o mundo, está perdendo adeptos. E a América Latina não é exceção. Não falamos (somente) dos líderes autoritários que florescem no continente assim como no resto do mundo, mas também daqueles que decidiram segui-los em seu desapego. O último Latinobarômetro delimitou a extensão do desencantamento: o apoio à democracia não chega à metade dos cidadãos do continente.

O complementar Barômetro das Américas confirma o panorama: na última década, o percentual de pessoas que têm certeza de que a democracia não é o melhor sistema de governo possível aumentou, mas também, e principalmente, cresceu o número daqueles com posições mais indeterminadas. O dado desagregado por países confirma que é aí, na indiferença, onde a maioria está instalada, com poucas exceções (Argentina, Uruguai, Costa Rica). As nações mais populosas do continente, Brasil e México, abrigam milhões de habitantes que se movimentam no amplo espectro do desencanto. Não surpreende que ambos tenham escolhido recentemente presidentes dispostos a atacar consensos e instituições para consolidar seu poder e o dos seus. No Brasil, 16% da população discorda que a democracia seja o melhor sistema político, e 50% está em cima do muro.

A avaliação da democracia se instala assim na ambiguidade, mais do que na rejeição visceral. Os protagonistas do desencanto são principalmente jovens e de pouco poder aquisitivo. Ambos os grupos mostram uma probabilidade substancialmente menor de manter uma clara preferência pela democracia do que seus pares mais velhos e em melhor situação econômica.

No entanto, são precisamente as classes mais abastadas que estão perdendo mais entusiasmo pela democracia. Também os millennials (nascidos depois de 1980, incluindo os primeiros centennials de meados da década de noventa).

Essas quedas são particularmente alarmantes porque abrigam a capacidade de mudar o ponto de encontro entre oferta e demanda eleitoral. As elites econômicas têm maior capacidade de definir a agenda e moldar o futuro de nossas instituições. Para moldar, em resumo, a oferta política. Por seu lado, aqueles que são jovens hoje se tornarão o centro da demanda amanhã, decidindo com seus votos se desejam um modelo alternativo ao da democracia pluralista.

Podemos representar as opiniões daqueles que estão desencantados com a democracia: respeitam menos essas mesmas instituições, principalmente os partidos políticos, veem mais corruptos entre os líderes do que no resto dos cidadãos e carregam certo viés autoritário, conservador.

Mas, embora os críticos com democracia nascidos depois de 1980 mantenham todas essas características, existem outros que são menos proeminentes entre eles e questionam alguns mitos.

Não se apreciam expectativas econômicas piores do que entre o conjunto dos democéticos. Mesmo a ausência de interesse político, embora estruturalmente presente, é menor nas novas gerações de desconfiados do que nas velhas. Algo semelhante acontece com as classes mais abastadas.

O que está acontecendo, então, para que se instale o desencanto sistêmico entre as novas gerações? Para os cientistas políticos Yascha Mounk e Roberto Roa, que trabalharam a questão da erosão dos valores democráticos como poucos em sua disciplina, talvez estejamos diante de uma visão incompleta devido à ausência de referências: já que essas gerações têm menos experiência com regimes autoritários do que as anteriores, não valorizam na mesma medida as vantagens de viver sob uma democracia. Se isso for verdade, deveríamos observar um maior diferencial de desencanto ou ambiguidade entre os nascidos antes e depois de 1980 nos países com transições mais antigas.

Existe, de fato, certa correlação entre o tempo que cada nação tem de eleições livres ininterruptas e o plus de ceticismo com a democracia demonstrado pelas novas gerações. A fragilidade da relação sugere, no entanto, que tem de haver algo mais.

Esse “algo mais” não parece ser uma radicalização das posições: segundo os dados do próprio Barômetro, os nascidos de 1980 em diante têm opiniões menos extremas sobre o aborto, o casamento igualitário e inclusive a luta contra a desigualdade do que essa mesma geração em 2012.

Mas talvez o que esteja acontecendo seja um pouco menos espetacular, mas potencialmente tão perigoso quanto. O descontentamento com a falta de resposta do sistema às demandas não incorporadas sempre esteve presente na América Latina, um continente onde o presidencialismo elitista e a desigualdade produziram democracias pouco inclusivas, de acesso restrito. Essa pulsão não desapareceu, mas talvez a ela tenha se juntado outra, aparentemente contraditória: uma espécie de preferência pela ordem sobre o conflito.

O Barômetro das Américas pergunta aos entrevistados sobre até que ponto estão de acordo com algo tão básico quanto conceder o direito de voto àqueles que são críticos do sistema de governo. Essa questão permite medir o grau de tolerância que cada indivíduo tem em relação à crítica extrema.

Acontece que aqueles que demonstram um maior desencanto com a ideia explícita de democracia também são mais favoráveis à manutenção dos direitos de voto dos críticos. Provavelmente porque eles se veem como parte desse grupo. Esses “democratas paradoxais”, que desconfiam da democracia atual, entrariam na categoria do descontentamento perene, inevitável até que os regimes se tornem mais inclusivos. Também estão aqui os segmentos de autoritarismo puro: aqueles que rejeitam a democracia em termos abstratos e concretos, que disputam o direito de voto da oposição. É impossível para eles incorporá-los à alternância de poder, porque apenas aspiram a suprimi-la. Mas é o grupo intermediário que mostra um comportamento mais sugestivo e consistente: indiferentes à democracia como conceito e indiferentes também com o direito de voto dos críticos extremos. Para uma maioria relativa de latino-americanos, a possibilidade de canalizar o conflito não é uma prioridade. O mais preocupante é, novamente, a coincidência desse padrão entre as novas gerações e as classes mais abastadas.

Porque, e se estamos assistindo ao nascimento de uma geração que anseia por ordem, funcionalidade? O autoritarismo seria então um subproduto, mais do que uma reivindicação central. O modelo chinês vem à mente: uma ditadura que, aos olhos do mundo, foi capaz de criar bem-estar para a maioria, embora em troca de um (enorme) custo para as minorias. Talvez seja esse o tipo de espelho em que os desencantados se refletem: uma ‘morte doce’ do pluralismo. ‘Doce’, é claro, apenas na aparência, e apenas para aqueles segmentos da população dispostos a consolidar sua boa posição diante da supressão do conflito formalizado. O continente tem vasta experiência com líderes que oferecem melhorias para a maioria em troca de que a população renuncie ao direito de votar contra. Videla, Pinochet, Chávez, Fujimori e Castro, entre muitos outros, fizeram carreira com essa ideia. Não faria mal, à luz desses dados, refrescar a memória com o que acaba acontecendo quando um ditador promete harmonia.