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Matrix filosófica

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Eu já afirmei e agora reitero: a ficção científica é o mais profundo dos gêneros literários (e cinematográficos, até por derivação). Cuida de questões eminentemente filosóficas, como as diferenças entre o ser humano e as máquinas, a própria identificação do indivíduo em si, as implicações do presente no futuro da humanidade, o conceito de tempo, os perigos da sacralização da tecnologia e de certos mecanismos de controle social, a possibilidade e os impactos de um contato com seres alienígenas etc. E dou como exemplos “Admirável mundo novo” (1932), de Aldous Huxley, “Fahrenheit 451” (1953), de Ray Bradbury, “1984” (de 1949), de George Orwell, “O Homem do Castelo Alto” (1962), de Philip K. Dick, “2001: Uma odisseia no espaço” (1968), de Arthur C. Clark e a série “Fundação” (iniciada em 1942), de Isaac Asimov. Coisas de craques.

Mas alguém pode objetar que eu fui buscar, para fundamentar minha tese, a crème de la crème da ficção científica e, de resto, obras e autores hoje pouco lidos pela população em geral. Pois, em resposta, vou tratar de uma obra cinematográfica que é sucesso de crítica e público. Assistida por milhões. A série/franquia “Matrix”, criada pelas irmãs Lana e Lilly Wachowski.

Além de outras coisitas (TV, quadrinhos, jogos etc.), são quatro filmes: “Matrix” (1999), o primeiro e o melhor da série, “Matrix Reloaded” (2003), “Matrix Revolutions” (2003) e “Matrix Resurrections” (2021). Com algumas variações, as estórias são protagonizadas por Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss e Hugo Weaving. Maravilha de divertimento.

Vocês devem conhecer a trama, que gira em torno da realidade virtual, criada por máquinas/computadores sencientes de altíssima inteligência artificial, em que vivem aprisionados os humanos. E o fato é que esse mundo ciber distópico de “Matrix” está povoado de complexos temas filosóficos e religiosos. Qualquer pesquisa na Internet vai mostrar relações da Matrix com o “Mito da Caverna” de Platão, com as peripécias de “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll, com os “Simulacros e Simulação” de Jean Baudrillard, com o Budismo e por aí vai.

Vamos aprofundar um pouco a coisa com o apoio de Daniel Shaw e do seu “Film and Philosofy: taking movies seriously” (Wallflower Press, 2008). Segundo Shaw (que, por sua vez, pede ajuda a Carolyn Korsmeyer), “Matrix” invoca “aleatoriamente uma série de problemas clássicos de percepção, para os quais a mais óbvia referência é a Primeira Meditação/Filosofia de Descartes. Os dois principais argumentos céticos de Descartes (a inabilidade de se distinguir sonhos e experiências em vigília e a hipótese do gênio maligno) encontram os seus equivalentes cinemáticos em Matrix, que induz estados de sonho que são indistinguíveis de estados normais de consciência, e assim levando à ilusão da imensa maioria da humanidade sobre tudo o que eles pensam estar experimentando. As máquinas (que tomaram o controle da Terra e usam os seres humanos como suas fontes de energia) são o equivalente do gênio maligno [de Descartes], dirigidas que são pelo plano original do Arquiteto que as criou (como nós ficamos sabendo no fim de Matrix Reloaded, de 2003). O motivo para essa ilusão coletiva era tornar mais fácil subjugar os seres humanos. Estes são levados a acreditar que ainda estão vivendo o ápice da civilização humana (e antes da descoberta da Inteligência Artificial – IA)”. Esse é apenas um exemplo, entre outros tantos, da “filosofia” que podemos encontrar na série. A filosofia e a profundidade das temáticas de “Matrix” são de tal monta que livros são escritos para se tentar entender a coisa, a exemplo de “The Matrix and Philosophy” (2002), organizado por William Irwin.

Por fim, devo registrar que há também várias questões jurídico-filosóficas a serem exploradas em “Matrix”. Por exemplo, a importância da liberdade individual, a escolha individual ou coletiva sobre o tipo/concepção de “humanidade” em que se quer “viver” (ou “sonhar” ou “viver em sonho”) ou mesmo questões de moral/ética como trair/vender seus amigos para voltar a viver na desejada Matrix, algumas delas lembradas pelo já citado Daniel Shaw.

Dito isso, indago: quem se habilita a escrever um livro “A Matrix e o Direito”?

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Altíssima ficção

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Vou seguir tratando da controversa divisão entre “alta” e “baixa” literatura. E, desta feita, vou focar na ficção científica, um dos mais importantes e populares gêneros de literatura. Seus fãs, seus clubes, seus prêmios (sendo o Nebula e o Hugo os mais prestigiados) são muitíssimos.

Suas estórias vendem aos tubos. Invariavelmente, essas estórias vão bater nas telas grande e pequena. Sucesso para além das fronteiras da nossa imaginação. E eu a acho uma literatura estelar.

Embora já existisse alguma produção do tipo desde o Iluminismo – afinal, com as “luzes” focamos na ciência –, convencionalmente, tem-se nas aventuras e na “littérature d’anticipation” de Jules Verne e na “science fiction” de H. G. Wells os precursores do gênero ficção científica.

Como anota Miklós Szabolcsi (em “Literatura universal do século XX: principais correntes”, Editora Universidade de Brasília, 1990), “essa nova corrente inicia-se com Jules Verne, cuja obra ainda mantém em equilíbrio harmônico os elementos históricos, a descrição humana e futurologia técnica, caraterísticas que, com certeza, encerram o segredo de sua influência e de seu sucesso junto aos leitores; Herbert George Wells, por sua vez, apresenta utopias técnicas mais amargas e agourentas, que mostram um futuro distante forrado de pessimismo com relação ao ser humano”.

Sem demérito algum ao autor de “A máquina do tempo” (“The Time Machine”, 1895) e “A Guerra dos Mundos” (“The War of the Worlds”, 1898), devo aqui anotar que sou um fã de Verne, de suas “Viagem ao centro da terra” (“Voyage au centre de la terre”, 1864), “Vinte Mil Léguas Submarinas” (“Vingt mille lieues sous les mers”, 1870), “A volta ao mundo em 80 dias” (“Le tour du monde en quatre-vingts jours”, 1873) e, ao final, do seu conjunto “Viagens Extraordinárias” (“Voyages Extraordinaries”). Como aduz Bruno Blasselle, em “Histoire du livre: le triomphe de l’édition” (Gallimard, 2006, vol. 2), “se existe um autor no qual o progresso científico há inflamado a imaginação das pessoas, este é Jules Verne”, alegadamente o escritor mais traduzido da história.

É necessário registrar que o gênero ficção científica tem fronteiras muito mais amplas do que costumamos imaginar (afinal, onde estão as fronteiras da imaginação?). Aqui quero dizer que nesse gênero estão muito mais do que um “2001: Uma odisseia no espaço” (“2001: A Space Odyssey”, 1968), de Arthur C. Clark, para didaticamente darmos um exemplo marcadamente específico dessa literatura (e do cinema dela decorrente). Por exemplo, no gênero ficção científica entram distopias como “Admirável mundo novo” (“Brave New World”, 1932), de

Aldous Huxley, “Fahrenheit 451” (1953), de Ray Bradbury, “1984” (“Nineteen Eighty-Four”, 1949), de George Orwell e “O Homem do Castelo Alto” (“The Man in the High Castle”, 1962), de Philip K. Dick. Temores do presente projetados num futuro até “próximo”. E, claro, distopias interplanetárias mais que ousadas, baseadas nas descobertas científicas de hoje e suas possibilidades de realização futuras quase infinitas. Este é o caso de Isaac Asimov e sua série, obra-prima da literatura, “Fundação” (“Foundation”, iniciada em 1942). Alguém pode querer literaturas de nível mais elevado do que as proporcionadas pelos autores e livros acima citados?

Doutra banda, é crucial aqui afastar o preconceito, vinculado à confusão entre o gênero ficção científica e um certo tipo de cinema/TV baseado nele, que alguns enxergam como superficial ou mesmo “mentiroso demais”. Pode até existir. Mas é fato já constatado a realização de muitas das “ficções” previstas por aqueles grandes autores “mentirosos”, digo “visionários”.

Para encerrar, ouso vaticinar que a ficção científica é o mais filosófico/profundo dos gêneros literários (e cinematográficos), na esteira do que defende Daniel Shaw, em seu “Film and Philosofy: taking movies seriously” (Wallflower Press, 2008), cujo título parece umaderivação do clássico “Taking Rights Seriously”, de Ronald Dworkin. De fato, cuidadosamente observando, a ficção científica trata de questões eminentemente filosóficas, como as diferenças entre o ser humano e as máquinas, a própria identificação do indivíduo em si, as implicações do presente no futuro da humanidade, o conceito de tempo, os perigos da sacralização da tecnologia e de certos mecanismos de controle social, a possibilidade e os impactos de um contato com seres alienígenas, entre muitos outros. Isso – que reafirmo aqui – não é mentirinha. É fato.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.