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Crônica

Estórias filosóficas

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Possuo um livro, “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes” (Editora Rocco, 2006), de Julio Cabrera, que nos dá uma ideia fantástica: aprender a quase sempre árida filosofia pela quase sempre lúdica sétima arte. E outro dia dei de cara com uma publicação do Book Riot, site especializado em livros e literatura, que propõe coisa semelhante: conhecer a filosofia por meio da literatura ficcional. O título do texto é “20 Great Works of Philosophical Fiction”, de facílima tradução para o nosso bom português.

Mas o que danado é essa tal “ficção filosófica”? O texto referido dá sua resposta. E eu penso parecido, com algumas nuanças. Reconheço que muitas obras ficcionais tratam de temas filosóficos. Personagens discutem ideias; narradores dão os seus pontos de vista sobre os problemas do mundo. Mas esse “filosofar”, na maioria das narrativas, é mais implícito do que explícito. Mais periférico do que central. E não intencional para fins de reflexão do leitor.

Podemos ter aqui uma questão de grau, admito. De círculos, posso dizer. Quanto mais próximos de um “centro” filosófico, mais filosófica a obra é. Aliás, o mesmo se dá com a ficção jurídica, assunto de minha paixão. Mas temos de fazer um corte, para fins de classificação, já que seria possível enxergar em qualquer ficção algo de filosófico ou jurídico (a filosofia e o direito estão em quase tudo), por minimamente que seja. Basicamente, “ficção filosófica” é a ficção que trata da filosofia de forma direta, como um dos seus temas principais, quiçá o principal. A filosofia está em primeiro plano, pelo centro da trama, sendo sobretudo intenção do autor fazer o leitor refletir e discutir as grandes questões da vida.

Essa abordagem proposital pode ter como foco qualquer dos ramos da filosofia: a metafísica, a epistemologia, a lógica, a estética, a ética, a filosofia da religião, a filosofia política e por aí vai. Até a filosofia jurídica, que podemos entender como uma subespécie da filosofia política ou algo a ser tratado autonomamente. A ficção filosófica enrosca essas temáticas nas ferramentas da ficção – enredo, cenário, idas e vindas da cronologia, múltiplos personagens etc. –, tornando o assunto mais acessível, multifacetado e lúdico.

Da lista de vinte livros do Book Riot, vou mencionar apenas alguns títulos para ilustrar a problemática. Registro que tanto a lista do site especializado como as minhas escolhas são movidas por pré-conceitos e estão longe de serem exaustivas.

Começo por “Frankenstein” (1818), de Mary Shelley (1797-1851). Victor Frankenstein “cria” um ser vivo em seu laboratório. Mas as coisas não saem como ele imaginava. E ele tem de lidar com as consequências. Este romance gótico é tido como pioneiro da ficção científica.

Mas ele é muito mais do que isso. É sobretudo uma profunda discussão filosófica sobre ambição, criatividade, ciência, educação, paternidade, natureza, humanidade, vida e morte.

Por falar em vida e morte, cito “O Nome da Rosa” (1980), de Umberto Eco (1932-2016). Aqui a trama está ambientada numa abadia medieval. Seguindo a veia dos romances policiais, os protagonistas Guilherme de Baskerville e Adso de Melk investigam as mortes de sete monges em circunstâncias extraordinárias. Entretanto, “O Nome da Rosa” não é só uma estória de crimes. Ele é um estudo do período medieval, sobretudo da vida religiosa no século XIV e das ideologias – heréticas ou não – no seio da Igreja de então. E é também uma estória sobre livros e sobre o poder infinito das palavras. Registro: talvez este seja o meu romance preferido. Afinal, sempre fui um apaixonado pelos nomes e pelas rosas.

Por fim, menciono “O Mundo de Sofia” (1991), de Jostein Gaarder (1952-), que não esconde sua intenção de ser um “romance filosófico”. É uma história da filosofia contada por meio da ficção. A Sofia do título, de quatorze anos, recebe mensagens misteriosas pelo correio.

Do tipo: “Quem é você?” e “De onde vem o mundo?”. As mensagens se sucedem. Entramos num curso de filosofia por correspondência: sua história, seus principais protagonistas e suas ideias.

Bom, tudo isso, seja através de criaturas, de nomes ou da imaginação adolescente, é muitíssimo lúdico e educativo. E recomendo deveras!

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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Artigo

O bom jardineiro não aumenta o deserto

Por Thiago Medeiros

Certa vez, Rubem Alves escreveu sobre a arte da política e a comparou com a jardinagem. O núcleo central do texto reflete a diferença entre o político por vocação e político por profissão.  Em tempo atual de erupção na política, talvez você se mostre desconfiado sobre esta temática, porém lhe convido ler até o final do texto para compreender nosso caminho e como se liga ao momento vigente.

Que fique bem claro para você leitor é que vocação é diferente de profissão. Na vocação a pessoa encontra a felicidade na própria ação. Na profissão o prazer se encontra não na ação. O prazer está no ganho que dela se deriva. O profissional não ama. Ele ama o dinheiro que recebe dela, ou ainda, o poder que ela oferece.

Resumindo, todas as vocações podem ser transformadas em profissões. O jardineiro por vocação ama o jardim de todos. O jardineiro por profissão usa o jardim de todos para construir seu jardim privado, ainda que, para que isso aconteça, ao seu redor aumente o deserto e o sofrimento.

 E você deve se perguntar o que tem a ver com tudo isso, correto? Pois bem meu nobre, nosso futuro depende dessa luta entre político por vocação e político por profissão. Alguns se sentem retraídos e não entram no mundo da política para lutar por um jardim melhor para todos, por outro lado, alguns entram e quando são picados pela mosca azul, acabam criando jardins paralelos privados, tudo em nome do dinheiro e ou do poder.

Alguns políticos gostam apenas dessa última parte. O poder é seu maior objetivo, por ele se faz qualquer coisa, inclusive pisar, destruir as instituições e a democracia. Eles se alimentam principalmente das vulnerabilidades de parte da população que depositam neles sua esperança. Mal sabem que estão prestando atenção apenas na fumaça, não percebem que servem como escravos trabalhando para um projeto de poder de construção de um jardim privado, onde eles não desfrutarão da sombra após construído. Para parte da sociedade, que tanto já lutou, a pior coisa que poderia acontecer nesse momento é enxergar a verdade, é reconhecer que boa parte do jardim já virou deserto.

Vejam os que surfaram na onda eleitoral de 2018, qual a sua real contribuição para o País? Qual o legado que deixarão? Muitos entraram e sairão de suas cadeiras, não apenas por sua inércia, mas também porque não se atentaram para algo crucial, no sentido mais positivo possível: fazer política. Se preocuparam apenas com seus mandatos, e agora estão aí, correndo e torcendo, fazendo reza para que o Senado aprove a “reforma eleitoral” e a volta das coligações. Essa será a salvação de muitos políticos inclusive no Rio Grande do Norte.

Já alguns que entraram advento do período eleitoral 2018, muito tem feito, porém ao não jogar para a plateia precisam correr para aprender um pouco com aqueles que “agitam” nas redes sociais. A sociedade precisa valorizar mais os políticos vocacionados, que cuidam de um jardim para muitos, que não buscam separar e sim agregar, que fazem a boa política do diálogo e da entrega de resultados.

Lembre-se que o grande ganho para a política não advém da guerra cultural, mas sim da postura que a sociedade terá com seus representantes e o que exigir, cobrar deles. Já vimos que a renovação nem sempre será positiva, isto porque a renovação por si só não resolve nada, estamos lidando com pessoas, capacidades, com a vocação. Muitos ali entraram e simplesmente nada fizeram, bem como muitos ali estão durantes anos e também nada fez. Mas isso não é o motivo para desacreditar na política, pois na hora que isso ocorre, quando nossa mente não respeita a política, o que está em risco é toda nossa estrutura democrática, que na sua base mora em nossas mentes, na crença e na certeza de que ela funciona.

O bom político, ou melhor, o bom jardineiro não aumenta o deserto ao seu redor. Ele não se alimenta do ódio e dor dos outros. Ele não desdenha das classes mais necessitadas. Ele não contribui para desmontar, ou privatizar o jardim construído. Não é a favor do desmatamento. Mas sim, para ele quando as flores do seu jardim adoecem, ele cuida.

Talvez se os políticos por vocação se apossarem do jardim, poderemos começar a traçar um novo destino para nossa nação. Então, ao invés de se criar desertos e jardins privados, teremos um grande jardim para todos, obra de homens que tiveram o amor e a paciência de plantar árvores à cuja sombra nunca se assentariam. Muitas das vezes, não precisaremos buscar esses nomes muito longe, alguns já estão lá e só você ainda não percebeu, outros estão prestes a voltar. Deixo aqui um vento de esperança no coração de todos.

*É Sociólogo e Consultor.

 

 

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Ódio, jornalismo e linguagem

Catarina Rochamonte*

A questão do ódio por motivação política voltou à ordem do dia devido à agressiva reação ao anúncio feito pelo presidente de que seu teste do coronavírus deu positivo, estando uma coluna de Hélio Schwartsman, desta Folha, entre as reações mais polêmicas.

O combate político perpassado pela agressividade no discurso funciona como catarse para alguns, mas pode induzir outros a algo incontrolável.

Cada um de nós que tem a honra de emitir opiniões em veículos de grande circulação ou tem em torno de si seguidores atentos deveria se abster de insuflar ainda mais os ânimos de um povo já tão exaltado.

O leitor espera de nós informação, análise, opinião ponderada, e não o espasmo de emoções mal trabalhadas perpassadas por um amálgama de ideologias confusas disfarçadas sob o manto de tal ou qual filosofia.

Caricatura de Bolsonaro em manifestação contra o governo em Copacabana (Foto: Fernando Souza/AGIF)

Não há que se comparar o ofício do jornalista com o do filósofo, mas não há também que se confundir o leitor com o uso sofismático da filosofia como pano de fundo para emissão de desejos pessoais eivados de preconceito político.

Todos somos responsáveis pelo restabelecimento do caráter elevado do discurso e do decoro no uso público da razão. Quer nos refiramos ao presidente, ao inimigo do presidente, ao colega que contradiz nossas ideias ou àquele que as corrobora, compete-nos o sóbrio linguajar.

O leitor é merecedor do nosso respeito e dos nossos melhores esforços de expressividade, no zelo que dedicamos a cada frase apurada no labor linguístico e peneirada pela sobriedade do intelecto ocupado em contribuir para o progresso real, e não para o recrudescimento social em beligerâncias sem fim.

Não desejo a morte do presidente. Não politizei a minha alma a ponto de esquecer os preceitos cristãos que sustentam minha ética (não consequencialista). Mas, caso desejasse, por ética profissional me absteria de expressar tão rude desejo. Não que expressá-lo seja crime. É que, conforme o apóstolo Paulo, “Tudo me é permitido, mas nem tudo convêm”.

*É doutora em filosofia, autora do livro ‘Um olhar liberal conservador sobre os dias atuais’ e vice-presidente do Instituto Liberal do Nordeste (ILIN).
Texto extraído da Folha de S. Paulo.
Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.
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Olavo de Carvalho e a “ausência que preenche”

Olavo Carvalho é o enfadonho astrólogo autoproclamado filósofo (Foto: reprodução/Youtube)

Por Emerson Linhares*

“Para agir corretamente no governo de um Estado, é preciso ouvir muito e falar pouco.”

CARDEAL DE RICHELIEU

Abrir o computador para escrever sobre o “guru” e filósofo Olavo de Carvalho dá até preguiça. Primeiro porque a gente pensa logo na sombra proporcionada pela árvore de grande porte, de uma longevidade magnífica (pode atingir mais de mil anos de existência) e, de acordo com botânicos e geólogos, é utilizada como um medidor de catástrofes naturais do ambiente. Daí para armar uma redinha no carvalho, sobrenome do brasileiro que mora nos Estados Unidos e se balançar como um bom nordestino, seria um bom começo.

Segundo porque Olavo está se tornando enfadonho, metendo o bedelho onde não é chamado e querendo colocar chifres em cabeça de cavalo.

Mesmo assim o notebook foi acionado porque jornalista quer só um mote para fazer a glosa. Eu achei genial a resposta a uma pergunta feita em entrevista ao senador veterano Álvaro Dias (PODEMOS), ex-candidato a presidente da República ano passado. Álvaro foi indagado sobre como ele avaliava a influência de Olavo de Carvalho no governo e ele foi certeiro, cirúrgico: “Se ele se ausentasse, a ausência dele preencheria uma grande lacuna no governo.”

A frase do político paranaense soou poética, mas entra como um uppercut desferido pelo pugilista Rocky Balboa, personagem antológico de Sylvester Stallone. E não é somente isso: muitas pessoas, perto ou longe do presidente Bolsonaro, sabem que a influência é negativa (e enquanto eu escrevia esse artigo, o governo soltava nota asseverando que as críticas do escritor a militares não contribuem com o governo, apesar de mais adiante afagá-lo ao afirmar que ele tem “espírito patriótico”). Bom, isso eu também tenho!

E enquanto não sai de minha cabeça a frase melódica de Álvaro e que me inspirou a escrever não só este artigo, mas que daria para iniciar uma bela letra de música – a ausência que preenche -, a preguiça vai se esvaindo. E só sei que nessa briga verbal de Olavo com os militares, em especial com o vice-presidente da República Hamilton Mourão, não tem como o “guru” mandar um cabo e um soldado para apear o general do poder, como sugeriu um dos filhos de Bolsonaro em relação ao STF.

Inclusive Mourão, que tem se movimentando muito bem nesse xadrez político em Brasília, um terreno sempre movediço e traiçoeiro em várias circunstâncias, não economiza munição para passar recado: “Olavo deve se limitar à função de astrólogo”. Ou de tarólogo né Mourão? Porque ele quer dar as cartas. Não é isso?

Por fim, parece que vai por água abaixo essa ideia de Olavo de influir de forma incisiva nas decisões, posições e pensamentos do governo Bolsonaro. Se queria ser a reencarnação de Armand Jean du Plessis, o Cardeal de Richelieu, a iminência parda do reinado de Luiz XIII, na França do século 17, ao que tudo indica nem se vivesse mil anos como os frondosos carvalhos ele conseguiria. Já para relinchar é só dobrar a esquina do continente, armar uma rede e aproveitar a sombra de sua inutilidade.

*é bacharel em Direito, pós-graduando em Direito Previdenciário e diretor de Jornalismo e Programação da Rádio Difusora de Mossoró

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Intelectuais de direita descobriram que também podem ser mercadorizáveis

Por Paulo Ghiraldelli Jr*

O Espírito tudo abarca. Hegel assinaria embaixo dessa frase. O modo de produção tudo abarca. Marx assinaria embaixo. Não é difícil para nós sermos hegelianos ou marxistas, uma vez que somos modernos. Interpretar o mundo a partir de uma totalidade nós é bastante natural. Ela, a totalidade, se tornou até mesmo intuitiva para nós. Somos tentados a ver em uma determinada “época” uma teia comum de relações, regradas por um princípio único.

Assim, segundo essa ótica, de certo modo presente na maior parte dos pensadores modernos, a vida antiga foi a vida regrada pela polis, a vida medieval foi regrada pelo cristianismo e, então, nossa vida moderna tem a hegemonia de valores dada pelo trabalho e pela sociedade de mercado, seguida pela sociedade de consumo de massas. Se assim pensamos, ao nos fixarmos sobre a sociedade atual, vemos o mercado como legislando sobre todos os rincões, recantos e práticas da atualidade. Não à toa falamos de mercadorização de tudo, para o “bem e para o mal”.

A intelectualidade do século XX, coisa que permanece verdade para esse século até então, posiciona-se politicamente a partir de sua descrição a respeito da sociedade de mercado. Entre as tantas teorias que falam do mercado, talvez a visão sociológica de Marx seja, de fato, uma das mais devedoras da filosofia, ou mesmo da metafísica. Marx insistiu em ver o mercado capitalista associado ao que chamou de fetichismo da mercadoria, e outros marxistas falaram, então, do contraponto a isso, a reificação do homem. O mercado tudo abarca, torna tudo mercadoria, e esta não é produto, ela é horas de trabalho que podem ser substituídas por número, ou seja, dinheiro – o abstrato. Assim, em um mundo mercadorizável, a abstração adentra a vida de todos. Nada mais é experiência particular, tudo é visto como sob o nome do abstrato, do igual e, portanto, trocável. Essa equalização de tudo permite que a regra do pertencimento perca o sentido. O que vale é o valor de troca, não mais seu valor de uso. Mercadoria para ser mercadoria, para obedecer o mercado capitalista, é sempre valorizada pelo valor de troca. O próprio trabalho é mercadoria e ele também é valorizado pelo seu valor de troca. O que está à margem do mercado porque não é mercadoria, ainda assim respira esse ar, esse clima do espírito ou do modo de produção, e se comporta abstratamente como se fosse o que tem status porque é abstrato, e pode então ser trocado. Então, a poesia e o amor, tanto quanto a peça de teatro, a aula do professor e a consulta do médico, até mesmo o cheiro de uma flor, já não se colocam no âmbito da experiência humana, mas no âmbito do abstrato, do sem rosto, próprio para a troca. Algumas pessoas querem voltar a ter experiências, querem sentir rugas nos rostos de quem beija, querem voltar a sentir cheiro de suor da amada e não o do desodorante íntimo. A gourmetização é negada, para se voltar à vida. Essas pessoas negam o espírito da época ou negam o modo de produção capitalista. Elas podem ser de esquerda ou de direita.

As de direita negam a totalidade vigente no sentido das saudades de uma totalidade que não pode mais ser reconstruída. A direita é conservadora, tende a ser reacionária. A esquerda não quer essa totalidade, pretende construir outra, que não raro possui algumas aspirações postas pela direita. Há muito de romantismo na esquerda que, à primeira vista, pode até ser encontrado na direita. Há muito cientificismo na direita que, enfim, esperaríamos encontrar na esquerda. Essas negações da totalidade podem ser sinceras, mas podem elas próprias não conseguirem sair da totalidade vigente, ficando elas próprias encerradas no espírito de nossa época, o espírito da sociedade de mercado. Ou seja: também nossos sonhos passadistas ou progressistas se tornam horas de trabalho, abstrações, dinheiro e, portanto, são engolidos na lógica do mercado. O mercado tudo abarca. Pode transformar qualquer protesto a ele em mercadoria vendável. Exemplos não faltam. Tudo que é subversivo não demora para ser posto sob a batuta da mercadorização e alimentar a roda capitalista. Aliás, reparem como palestrantes que auto colocam à direita e à esquerda concordam e falam muito a mesma coisa!

A sensação de derrota de esquerdistas e direitistas, nessa roda, pode gerar o fenômeno do “vale a pena apenas ser diferente”. E eis que os intelectuais mais frustrados começam a apelar para todo tipo de discurso, não mais na busca de interpretar a vida, mas simplesmente de serem vencedores no mercado, querem apenas serem vistos e ouvidos. Se tornam tão vedetes quanto a própria mercadoria. É dentro desse fenômeno que está inserida a “nova direita”. Alguns intelectuais se integraram tão bem a esse ritmo de cinismo egocêntrico que pensam apenas numa coisa: preciso conseguir dar uma palestra amanhã, e manter meu público. Checam o número de seguidores que possuem em rede social como se fossem um artista de sertanejo universitário ou uma Anita a mais. Vivem o sufoco de perderem um seguidor e se desesperarem. Gritam: “sou de direita”. Outros exageram: “sou o único de direita!”. Gemem. Precisam despontar e, então, querem ser vendáveis, querem se mercadorizar. Descobriram que este é o sucesso, e não mais a busca do aperfeiçoamento virtuoso do intelecto. Se imaginam mais na condição do Faustão e sonham em ser o Tiago Leifert.

Isso já ocorreu com a esquerda. Mas a direita agora está experimentando essa lama. E está totalmente deslumbrada em ser do contra, em falar mal do capitalismo ou da modernidade do mercado, para obter algumas horas (vários likes) de fama nesse próprio mercado. A universidade ainda é o lugar de profissionais que não cederam a isso, embora alguns desses fazedores de shows de picaretas já estejam, agora, também na universidade. O capitalismo engoliu a esquerda e, agora, engole e glorifica a direita. Tudo é tornado entretenimento. Entertainment.

*É filósofo.

 

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Por que Pondé e outros conservadores adoram falar de Marx sem o terem lido?

Por Paulo Ghiraldelli Jr.*

 

Pondé poderia escrever sobre religião. Mas teima em enveredar pelo que não estudou. A fama lhe subiu a cabeça. Acha que pode falar do que não leu. Já faz um tempo que vem fazendo isso, e dando pitacos sobre marxismo – até de Paulo Freire já falou sem ler e sem entender de fenomenologia, base de vários escritos do educador. Não conhece Hegel e não conhece Marx. Não sabe nada da história do marxismo. Nem o básico sabe. Se leu o Manifesto Comunista, que todo garoto sabido lê no ensino médio, então não entendeu.

Na Folha de S. Paulo (17/09) ele escreve como que fundindo o marxismo ao marxismo-leninismo, e faz acusações à teoria de Marx que cabe na boca de um militante anti-Marx meio tosco, não na de um professor universitário. Eis o que ele faz: “( …) a própria teoria marxista, que tem desprezo pelo vocabulário e imaginário da democracia liberal burguesa”. A teoria marxista “tem desprezo pelo vocabulário e imaginário da democracia liberal burguesa”?  Talvez nem Lênin faça isso todo o tempo. Mas Marx, certamente, não faz. O que Marx faz é oscilar entre a crítica (e não desprezo) por ideias liberais que devem ser abandonados e o endosso de ideias liberais que devem ser realizados e aprofundados. Há momentos que Marx diz que o socialismo é a destruição do mundo liberal. Há momentos que Marx diz que o liberalismo não realizou os ideais de liberdade e igualdade que prometeu, que os abafou pelo peso do dinheiro, e que o que se tem de fazer é fazer acontecer a igualdade e a liberdade. Há escritos em que Marx chega a elencar promessas liberais não realizadas, e que não deveriam ser deixadas de lado.

Marx colocou no horizonte a ideia de homem que os pensadores liberais sonharam em suas utopias mais fecundas, o ser humano como aquele que se livraria do trabalho e do estado, e poderia viver escolhendo suas atividades diárias, todas elas prazerosas. Marx tirou de onde esse paraíso filosófico? De sua leitura dos filósofos do movimento Iluminista. Marx se empanturrou do vocabulário e do imaginário dos burgueses e de sua democracia, mas levada a um grau maior de perfeição. Seu sonho de criar o homem de múltiplas faces e possibilidades cognitivas e morais nunca foi senão a ideia de realização de um homem burguês sem a preocupação com o suor do rosto para o ganha pão.

Essa oscilação de Marx, entre o elogio de aspectos do liberalismo e a sua critica, não é a oscilação de mudança de opinião. Ela, às vezes, aparece na mesma obra, e não raro até na mesma página de seus escritos. É preciso nunca ter lido Marx para achar que ele foi um defensor da “ditadura do proletariado” como um ditadura simples, como qualquer ditadura cubana ou brasileira, e ponto final. Nada disso. O termo “ditadura” em Marx é relativo ao termo “democracia burguesa” que, tendo ficado presa ao poder do dinheiro, não foi adiante e poderia ser chamada de “ditadura burguesa”. Lênin sim, já envolvido com guerra interna na Revolução, contra a direita e contra a esquerda de caráter libertário, radicalizou o aparato repressivo revolucionário e, enfim, quando as coisas caíram nas mãos de Stalin, então a “ditadura do proletariado” perdeu de fato seu caráter relativo e se transformou numa ditadura simples, aliás, simplória.

O debate sobre esse assunto coube na II Internacional que gerou a social democracia, que Pondé pensa ser de gente rica – coisa tola, pois a social democracia européia é de base operária, e os países europeus são ricos agora, não quando fundaram suas centrais operárias que se filiaram à II Internacional. Esse debate sobre o aprofundamento do liberalismo por meio da social democracia na Europa, e pelo New Deal na América, foi feita no Velho Continente sob a ótica do marxismo, e nos Estados Unidos sob a ótica do liberalismo social de John Dewey (na época, chamado também de neoliberalismo, o oposto do neoliberalismo atual). No Brasil, esse debate foi feito dentro do PT e também entre o PT e os velhos partidos comunistas. Os livros de Carlos Nelson Coutinho e de Francisco Weffort deram o tom desse debate nos anos 80, temperados por obras de outros autores, inclusive Florestan Fernandes (um reflexo do debate de Bobbio com os comunistas, na Itália). Só depois que Weffort saiu do PT é que as coisas foram mudando. Aí veio o “mensalão” e o PT perdeu substância teórica e acabou se tornando um grupo de amigos que defendem Lula, uma vez que já não podem mais nada fazer senão tentar manter viva a quadrilha.

Pondé não sabe da história da esquerda europeia e americana. Não sabe da história da esquerda brasileira. Ouviu falar do PT só agora, já nos anos 2000. Pegou o bonde andando e, tendo sido lançado à mídia, acabou acreditando que todo mundo é tonto e que ele pode falar do que não sabe. É horrível isso, esse tipo de presunção. E mais horrível ainda é a deseducação que causa nos mais jovens. A falta de responsabilidade chegou ali e fez eco. Talvez não à toa ele tenha feito um vídeo elogiando o repetente maluco chamado Olavo de Carvalho. Perdeu a medida.

*É filósofo