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Decacampeão

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

A elaboração de listas – do tipo “Os 10 maiores”, “Os 100 melhores”, “Os mais vendidos” – é uma moda que já vem de algum tempo. E só cresce. No que toca especificamente à literatura, no mundo multitudinário em que vivemos, é uma ferramenta que direciona de modo eficaz o nosso interesse. Eu mesmo adoro xeretar essas listas. Sobre qualquer coisa, aliás. Possuo até um livrão, de quase mil páginas, intitulado “10.000 Things You Need to Know: The Big Book of Lists”, edição de Elspeth Beidas e publicado pela Universe Publishing em 2016. Vivo folheando-o. É uma delícia.

Dia desses, xeretando o Twitter da revista Bula, topei com uma lista elaborada de forma deveras interessante: “O livro mais vendido no ano em que você nasceu”. Segundo ali consta: “Os nossos primeiros anos costumam ser marcados por lembranças fragmentadas: as personalidades mais notáveis, os filmes que dominavam as telonas, os principais acontecimentos políticos e as músicas que tocavam incessantemente. Agora, um novo elemento pode ser adicionado a essa composição: o livro mais vendido no ano do seu nascimento. A revista americana ‘Publishers Weekly’ organizou uma lista detalhada que engloba somente obras de ficção. Nós, aqui na Bula, refinamos essa lista para incluir os best-sellers traduzidos para o português entre 1950 e 2010. O panorama literário muda ao longo das décadas: nos primeiros anos, uma variedade de autores se destaca, contudo, as décadas de 1960 e 70 são dominadas pelos romances de James A. Michener, enquanto os anos 1980 trouxeram à tona nomes como Stephen King e Tom Clancy. Entre 1990 e 2010, John Grisham torna-se uma presença constante. Richard Bach conseguiu um feito notável, seu livro ‘Fernão Capelo Gaivota’ conquistou o primeiro lugar em vendas por dois anos consecutivos, 1972 e 1973”.

Estava na casa do meu pai quando essa lista caiu em minhas mãos, isto é, apareceu na tela do meu celular. E tentamos consultar primeiro o ano de nascimento dele, 1939. Decepção, já que a coisa começa por 1950. Etarismo? Quanto a mim, estava lá o ano de 1972, com destaque, já que o bicampeão Richard Bach (1936-), com seu “Fernão Capelo Gaivota” (no original, “Jonathan Livingston Seagull”), arrebata o primeiro lugar tanto nesse ano especial (pelo menos para mim) como no seguinte de 1973. Nunca li o exitoso livro de Bach. Quem sabe? Vejam aí a utilidade prática das listas.

De toda sorte, o que mais nos chamou a atenção na lista da revista Bula foi o “caso” John Grisham (1995-). Espantosamente decacampeão (como o meu ABC de Natal) com: “A Confissão” em 1994, “O Homem que Fazia Chover” em 1995, “O Júri” em 1996, “O Sócio” em 1997, “O Advogado” em 1998, “O Testamento” em 1999, “A Confraria” em 2002, “A Intimação” em 2002, “O Corretor” em 2005 e “O Recurso” em 2008. Estórias que foram bater, quase todas elas, com enorme sucesso, no cinema e na TV.

E essencialmente Grisham, romancista e roteirista, nos seus inúmeros best-sellers, fazendo uso da sua formação jurídica e da sua experiência como advogado e homem público, trabalha – e muito bem – a relação direito/literatura/cinema. A grande maioria dos seus livros e filmes (refiro-me aos filmes com roteiros adaptados dos seus livros) são, portanto, pertencentes às categorias das “legal novels” e dos “legal films”, isto é, dos romances e filmes cujos enredos têm considerável ligação com o direito (mas nem todas as obras dele, é importante deixar isso claro).

Sobre Grisham e o seu decacampeonato, as palavras de meu pai foram: “Esse homem deve ter ganho muito dinheiro, deve ser muito rico”. As minhas foram: “Com certeza. E abandonou o direito (e falo da pura e enfadonha prática jurídica) para fazer literatura, que suponho ser o que ele mais gosta”.

“Maravilha”, completo agora. Não sem um quê de desavergonhada inveja.

*É Procurador Regional da República é Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Escritor potiguar participa da Bienal Internacional do Livro, no Rio de Janeiro

O escritor Antenor Mario, potiguar da cidade de Jundiá,  participará da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro entre os dias 1° a 10 de setembro.

Antenor participa da antologia “O Reino dos Sonhos” que será publicada durante a Bienal, obra organizada pela Lura Editorial, Editora Paulista. Em seu conto, há uma homenagem ao Pastor Antônio Gilberto.

O escritor também participará de bate-papo com escritores e encontros com os profissionais do setor.

“Eu, Antenor Mario sinto feliz em participar deste momento, pois a gente percebe a grande importância de encontros assim, e damos valor por causa das trocas de experiências e as emoções que só sabem quem vive a bienal. Estou indo na expectativa de ajudar as pessoas, conhecer histórias e criar relações de amizades com pessoas de todo o Brasil”, disse Antenor.

A Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro é um evento literário brasileiro organizado no Rio de Janeiro desde 1983. Sua primeira edição foi realizada nos salões do hotel Copacabana Palace, com o evento ocupando atualmente o Riocentro

Sobre Antenor Mario

É ator e escritor. Estreou na literatura com o livro de poemas “A imagem da arte: Poemas da minha vida”, que conta com mais de 70 escritos poéticos de sua autoria, feitos desde seus 8 (oito) anos de idade. Também é autor dos livros, “As Confissões de Alexander: Escrevendo o diário”, “O senhor e a confusão dos bichos”, “Olha a cidade!”, “Pequenas gotas de poesias” e “Look at the city!”.

Antenor é Sócio Efetivo da Academia de Letras e Artes do Agreste Potiguar – ALAAP/ RN, titular da Cadeira nº 23, tendo como Patrona, Brasilina Augusta de Freitas, primeira professora de Jundiá /RN. Também faz parte da Sociedade dos Poetas e Afins do Rio Grande do Norte e da Academia Internacional de Literatura Brasileiro (AILB). Sua estreia no teatro foi através da “Encenação da Paixão de Cristo” realizado em sua comunidade residente, Santa Fé, também participou da peça, “Um zé qualquer”, realizada para Mostra Cultural da Escola Estadual João Bernardo.

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Crônica

Categorizando

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Sigamos na trilha aberta na semana passada para usufruir mais um pouco das sugestões do Goodreads – aquele que se intitula “o maior site do mundo para leitores e recomendações de livros” – sobre os queridíssimos romances de suspense e mistério.

Desta feita, façamos uso de uma outra publicação do Goodreads, que também me chegou via e-mail: “96 Mystery and Thriller Recommendations by Mood and Setting”. Nessa publicação talvez o mais legal seja a categorização dos títulos de uma forma muito curiosa, fugindo do “lugar-comum” (aqui já vai um trocadilho). Afinal, “uma das coisas divertidas” que os criadores do site afirmam haver descoberto ao longo dos anos “é que existem muitas, muitas, muitas maneiras de embaralhar e categorizar livros”. As categorizações tradicionais são úteis, mas se você se enfronha um pouco mais nelas, novas “conexões interessantes naturalmente vão se apresentando”.

O Goodreads nos mostra algumas dessas conexões, a partir de uma curiosa classificação dos livros em binômios – aliás, um tipo de sistematização muito comum na ciência jurídica, com coisas como direito objetivo v. direito subjetivo, direito público v. direito privado, direito penal v. direito civil etc. Dos binômios apresentados pelo site, eis os que eu achei mais interessantes: mistérios/suspense no trabalho (work) v. no lazer (play); mistérios históricos (historical) v. no futuro (future); e mistérios em igrejas (church) v. mistérios no governo (state).

Vou citar/recomendar alguns desses títulos, seja porque já os li, seja porque já assisti a adaptações deles para o cinema/TV, ou, melhor ainda, porque irão entrar na minha lista de mistérios a ser desvendados num futuro mais do que próximo.

Na categoria mistérios no trabalho, seleciono “The Firm” (1991), de John Grisham (1955-), que foi o primeiro best-seller do autor. Foi bater no cinema em 1993, dirigido por Sydney Pollack, com um elenco do balacobaco: Tom Cruise, a belezinha Jeanne Tripplehorn, Gene Hackman, Ed Harris, Holly Hunter e por aí vai. E sugiro também “Murder Must Advertise” (1955), um romance detetivesco inglês clássico, de Dorothy L. Sayers (1893-1957), talvez obra-prima da autora, que é considerada uma das rivais de Agatha Christie (e isso basta para mostrar sua grandeza). Doutra banda, como suspense no lazer, vou citar “The Talented Mr. Ripley” (1955), de outra mui talentosa “dama do crime”, Patricia Highsmith (1921-1995). E aqui temos também uma adaptação famosa, de 1999, com Matt Damon, Jude Law, Philip Seymour Hoffman e as belíssimas Gwyneth Paltrow e Cate Blanchett. Acho que foi desse filme que surgiu minha paixão pela Gwyneth.

Já na categoria de mistérios históricos, vou de “The Bangalore Detectives Club” (2022), de Harini Nagendra (1972-). Este livro faz “o relógio voltar um século e é um deleite para os amantes de mistérios históricos que procuram uma nova série para saborear (ou devorar)”, é afirmado no The New York Times Book Review. Aqui se misturam a história e o exotismo da Índia. E quem não gosta dessa mistura? Já quanto a crimes no futuro – sim, é possível misturar romance policial com ficção científica –, seleciono “The Paradox Hotel” (2022), de Rob Hart (1982-). O Goodreads resume o livro: “Um crime impossível. Um detetive à beira da loucura. O futuro da viagem no tempo em jogo”. Bom, gosto de hotéis, gosto de desvelar paradoxos e, sobretudo, tenho fé de um dia voltar ao tempo em que “festejavam o dia dos meus anos”.

Agora eu chego na minha praia (ficcional, que fique claro): crimes em igrejas. Esse cenário é sensacional. E, da lista do Goodreads – pondo de lado “Il nome della rosa” (1980), de Umberto Eco (1932-2006), que é hors-concours –, cito “Father Brown: The Complete Collection” (1935), do enorme G.K. Chesterton (1874-1936) e “A Morbid Taste for Bones” (1977), de Ellis Peters, pseudônimo de Edith Pargeter (1913-1995), a primeira estória/investigação do Brother Cadfael. Essas estórias de padre são sinistras. Já como mistério no “governo”, vou de “Tinker, Tailor, Soldier, Spy” (1974), de John le Carré (1931-2000). Quem não gosta de uma boa espionagem? Ainda mais se imaginada por um espião, o próprio le Carré, que sabia escrever muito bem.

Embora a categorização do Goodreads seja sui generis, ela tem de tudo, como vocês podem ver. Clássicos do gênero e títulos recentes. Autores novos, ainda pouco conhecidos, mas também os suspeitos habituais – Chesterton, Sayers, le Carré, Highsmith, Grisham. Por mim, parodiando as demais classificações da Goodreads, afirmo que vocês podem ler os livros sugeridos tanto num quarto fechado como ao ar livre, no frio ou no calor, numa cidadezinha pitoresca ou numa grande metrópole, no ar ou no mar, embora eu recomende mesmo ler em terra redonda, boa e firme.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Crônica

Direito em Cervantes

Marcelo Alves Dias de Souza*

O direito – a Justiça, sobretudo – é um tema recorrente na obra dos grandes escritores. Não seria diferente com Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), no seu “Dom Quixote” e nos seus títulos menores. Isso é percebido pelos experts cervantinos. Na verdade, como aduz Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares, em “Atmósfera universitaria em Cervantes” (Ediciones Universidad Salamanca, 2006), “as considerações sobre o direito são abundantes no Quixote, declarando-se até que o fim deste é justamente ‘a justiça distributiva e dar a cada um o que é seu’. É por isso que as menções à justiça e ao direito possibilitaram tantos trabalhos especializados”.

Eu mesmo possuo um pequeno grande livro intitulado “El ideal de Justicia de Don Quijote de la Mancha”, por um certo D. Adolfo Pons y Umbert, resultado do seu discurso de posse na Real Academia de Jurisprudencia y Legislación de España. Minha edição, deste século, da Thompson/Aranzi/Civitis, é um fac-símile de uma edição de 1922 da tradicional Editorial Reus, que se afirma “a mais antiga editora jurídica em língua castelhana” (deve ser, por supuesto). Embora denso e duro de se ler, dada a forma de palestra, não ajudada pelo castelhano de então, trata-se de um livro raro, que já disponibilizei, a pedido, para alguns amigos queridos.

Mas é sobretudo com base em “Atmósfera universitaria em Cervantes” que ora apresento alguns aspectos da temática jurídica em Cervantes.

De início, reitero o fascínio de Cervantes com os estudos jurídicos. No próprio “Quixote” é anotado ser o “estudo das Leis” – o estudo universitário do direito – o propósito de muitos pais para a promoção de seus filhos, devido às muitas oportunidades e favores daí decorrentes.

Grandes jurisconsultos são citados nas obras de Cervantes, anota o autor de “Atmósfera universitaria em Cervantes”. Por exemplo, “o nome de Justiniano é referido pela boca da personagem Redondo na comédia Pedro de Urdemalas, ainda que de forma grosseira. O mesmo se dá com os importantes juristas medievais Bartolo ou Baldo”. Em “La elección de los Alcaldes de Daganzo”, uma farsa, “num coro de músicos e ciganos, faz-se referência a Bartolo”. Há também “uma menção aos juristas Bartolo e Baldo em La tía fingida, atribuída por um tempo a Cervantes”.

O direito, a legislação e, sobretudo, as fórmulas legais de então estão muito presentes no “Quixote”. Especialistas apontam vários episódios na narrativa que trazem problemas jurídicos ali bem “resolvidos” à luz da legislação da época. Termos legais, forenses e notariais, suas locuções e fórmulas, são mesmo abundantes na obra. Mais do que um estudo formal do direito, essa terminologia mostra a familiaridade de Cervantes com os processos judiciais, os serviços notariais e as funções administrativas de então, até por haver ele trabalhado como comissário de suprimentos e cobrador de impostos na Administração. São expressões como “salvo melhor parecer”, “sem prejuízo de terceiros” etc., que, por sinal, até hoje ainda usamos.

Questões de filosofia do direito, para além da “lei” em si, abundam no “Quixote”. Como anotado por Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares: “As leis divinas e humanas asseguram o direito de defesa”; “Pela lei natural é obrigatório favorecer os cavaleiros andantes”; “O cavaleiro andante deve ser jurista e saber as leis da Justiça distributiva e comutativa”; “É lei natural e divina defender a vida”; “As leis vão aonde querem os reis”; “O excessivo rigor da lei não deve pesar sobre o delinquente”; “Muitas leis não devem ser feitas, e as feitas devem ser cumpridas”; e por aí vai.

Mas é sobretudo “o ideal de Justiça” o grande “objetivo jurídico” do Quixote. É algo recorrente na obra, em busca de uma Justiça da “Idade de Ouro”, plena, imperturbável a favores ou interesses. E o próprio D. Quixote oferece conselhos a Sancho Pança para o governo de sua ínsula, que podem ser resumidos na ideia de que a compaixão é sempre melhor do que o rigor. Todavia, como lembra Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares, “José María Maravall destacou que a defesa da Justiça e da paz de Dom Quixote, e sua defesa da Idade de Ouro, não pode ser separada de sua figura ridícula e anacrônica. A justiça de seu tempo não era mais uma questão de esforços individuais ou do estilo natural daquela Idade de Ouro rural, mas das engrenagens administrativas e militares dos novos Estados renascentistas”. A Justiça de D. Quixote não pode ser tida como solução estatal, mas apenas como um modo de conduta particular, dirigida aos outros de forma pessoal. A restauração de uma sociedade cavalheiresca e virtuosa já não era mais imaginável, senão como utopia. Tristíssima constatação sobre o cavalheiro da triste figura.

No mais, quedou-me uma dúvida: ao pensarmos numa justiça ao mesmo tempo distributiva e comutativa somos todos Quixotes? É isso?

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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Crônica

Salamanca em Cervantes

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Não faz muito tempo, no rescaldo do Carnaval, participei de uma expedição a Salamanca, na Espanha. A famosa cidade universitária, enfatizo. Era minha segunda vez por aquelas bandas. Revisitei sítios famosos. E descobri coisas novas. Maravilha!

Dentre essas descobertas, na loja da própria Universidade de Salamanca, caiu em minhas mãos – e eu segurei, pagando uns 10 euros para tanto – um livro deveras engenhoso: “Atmósfera universitaria em Cervantes” (Ediciones Universidad Salamanca, 2006), por Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares. Para além do seu conteúdo, o danado, em formato grande, com muitas imagens, entre elas reproduções de gravuras de Gustave Doré (1882-1836), é uma bela edição.

Para quem não sabe, Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), neto de um licenciado em direito e filho de um médico de província (este provavelmente sem formação universitária), nasceu em Alcalá de Henares, nas abas de Madrid, historicamente uma das cidades universitárias mais prestigiadas da Espanha. Todavia, pouco ali viveu. Coisa de quatro anos de idade e já estava de mudança, não deixando Alcalá marca maior na imaginação do escritor como pátria estudantil/universitária dos falantes de língua espanhola/castelhana. Esse lugar é ocupado por Salamanca, como veremos a seguir.

Cervantes foi um gênio. Como poeta, dramaturgo e, sobretudo, como romancista, ele é sinônimo de literatura em língua espanhola, sendo esta às vezes chamada de “a língua de Cervantes”. Não preciso dizer que o “Quixote” (“El ingenioso hidalgo Don Quixote de la Mancha”, no original) é uma obra-prima da literatura universal, por muitos considerado o primeiro romance moderno e, com certeza, um dos melhores já escritos em todos os tempos.

Todavia, ao que tudo indica, Cervantes foi um gênio autodidata, sem estudos oficiais, ao contrário do que por vezes se imaginou. Segundo registra Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares, “Cervantes, ao contrário de Góngora, Calderón ou Quevedo, não parece ter feito um curso universitário, nem em Salamanca nem em Alcalá, e deve ser considerado um autodidata, embora de formação humanista e acentuado gosto pelos livros. A formação de Cervantes suscitou diversidade de opiniões. Ele mesmo parece se definir como ‘pouco alfabetizado’ e de ‘sabedoria leiga’. O mais provável é supor uma educação de cunho humanista e de nível pré-universitário, obtida em colégios jesuítas ou municipais, como já indicamos. Implicaria isso um certo nível de conhecimento do latim, manifestado, entre outras coisas, em várias citações e expressões de Dom Quixote? Por outro lado, Cervantes demonstra familiaridade com a obra de vários autores clássicos como Homero, Virgílio, Horácio, Ovídio, Cícero, Terêncio, Sêneca, Júlio César, Salústio ou Plutarco, para citar alguns. Os especialistas também apontaram um marcado autodidatismo em Cervantes e um notável amor pela leitura”.

Parece mesmo certo que Cervantes – à semelhança de Shakespeare (1564-1616), para citar outro exemplo célebre – faz parte de um pequeníssimo grupo de homens premiados pela natureza com o raro dom da genialidade, a despeito das evidências de que ele conhecia razoavelmente os clássicos gregos e latinos, repercutindo isso nas suas obras, entre elas o “Quixote”.

Entretanto, apesar do autodidatismo de Cervantes, também é certo o seu amor – talvez seja até melhor dizer “fascínio” – pela vida universitária, sobretudo a salamantina. Como anota o autor de “Atmósfera universitaria em Cervantes”, Salamanca “constitui uma referência literária e um fascínio cultural ao longo de toda a obra de Cervantes. São recorrentes as alusões míticas a Salamanca como cidade do saber e das letras, diferentemente do que se dá com Alcalá, que quase desapareceu no próprio Dom Quixote. Também inexistem alusões à Universidade de Valladolid [a UVA, outra tradicionalíssima instituição de ensino da Espanha], cidade onde viveu o romancista. Alusões a Salamanca aparecem, sim, em vários capítulos do Dom Quixote (…)”.

Esse “fascínio universitário” inclui, como pontuado em “Atmósfera universitaria em Cervantes”, quase todos os ramos do saber: letras e humanidades, lógica e filosofia, saberes médicos e, por supuesto, o velho e bom/mau direito.

E é sobre a “ciência jurídica em Cervantes” que papearemos na próxima semana. Prometo.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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Crônica

O tempo passa

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Havia estado no Porto/Portugal uma única vez, no ano de 2000 (se não estou enganado), para fazer um curso de pós-graduação em direito comunitário na Universidade Lusíada local. Bons tempos. Era bem jovem. E viva o vinho do Porto e do Douro!

Voltei à cidade esses dias no rescaldo do Carnaval. Logo descobri que me lembrava de muito pouco da urbe. Quase nada. Suas ruas e monumentos me eram completamente estranhos. Bom, já fazia quase cinco lustros de minha única estada lá. É bastante tempo. E a “cidade mudou muito, completamente”, depois me disse a simpática recepcionista do meu hotel na Ribeira, ao compartilhar meus sentimentos com ela. Ou talvez eu apenas tenha bebido e aproveitado demais o meu período de estudante no Porto. Sei lá. Bons tempos.

De toda sorte, eu tinha uma missão ali: revisitar a Livraria Lello do Porto. Dela eu tinha uma boa lembrança. E, deixando minha mulher e meus sogros já próximos dos restaurantes à beira do Douro – onde, disseram eles, comeram o melhor bacalhau e tomaram o melhor vinho da viagem –, saí sozinho, esbaforido, mapa à mão, subindo as ladeiras, em direção à famosa casa de livros.

O trajeto foi curioso. O centro da cidade não é grande. Mas, em obras, perdi-me e achei-me algumas vezes. E, numa praça da qual não me recordo o nome, dei de cara com um casal de primos e um casal de amigos de Natal, entre estes um ex-jogador de futebol, deveras fora de forma, que ainda insiste em correr atrás da pelota. Vinham da Lello. Deram-me dicas de como entrar no estabelecimento. Hoje se paga para lá entrar e a fila é enorme. Foi uma alegria encontrar aleatoriamente conterrâneos em terra tão distante. Mas eu deveria ter interpretado aquele encontro com o meu amigo ex-jogador como um sinal, um presságio, de que o tempo passa, até no Porto.

Cheguei à livraria, no nº 144 da Rua das Carmelitas, afogueado. Na porta, apressadíssimo, pela Internet, fiz uma reserva para uma entrada vip, para cinco minutos depois, por 16 euros e algo. Enrolei-me um pouco com o cartão e o e-mail, mas deu certo. O sistema financeiro é bruto e bom. E os 16 euros eles devolvem em livros da Lello. Vale a pena, em princípio.

Bom, o interior da livraria é lindo. Continua lindo. A madeira escura trabalhada é belíssima. As paredes e as estantes prendem a nossa atenção. As colunas e os corrimões também. O teto em gesso e madeira idem. O enorme vitral nos ilumina. E, claro, a badalada escadaria, cuja forma nos dá um desejo de subi-la (a escada) até o infinito, é um must. Tudo isso ainda está lá. Fato!

Todavia, o ambiente, definitivamente, não é mais o mesmo de outrora. Vi uma exposição sobre José Saramago (1922-2010). Legal. A disposição dos livros, sistematizada por ganhadores do prêmio Nobel e por escritores que poderiam/deveriam ter ganho, também é interessante. Mas o acervo no geral é muito pobre. Pobre mesmo. São tomos bonitinhos para exposição e não para consulta e consequente aquisição. E o pior: a livraria está apinhada de turistas. Muitos. Muitíssimos. Assim como eu, tirando fotos para todos os lados (ainda consegui uma ou duas fotos com apenas duas ou três cabeças e pernas nos cantos das imagens). Saí de lá “retratofóbico”, já adianto.

Ao final, interessei-me por um livro de Orhan Pamuk (1952-), escritor turco, prêmio Nobel de literatura em 2006. O título era “Istambul: Memórias de uma cidade”. Gosto de livros sobre cidades. Imagine um escrito por um prêmio Nobel. Mas não pude trocar o meu crédito pelo danado (mesmo pagando uma pequena diferença). O crédito só valeria para livros de uma nova edição de bolso da Livraria Lello. São livros bonitinhos, mas uma coleção pouco variada, clássicos sobretudo, que eles devem editar já sem pagar direitos autorais. Fui no óbvio: uma edição dos “Lusíadas”, do enorme Luís de Camões (1524-1580). Nada mais português.

Aí veio a cereja do bolo. A vendedora foi até simpática e me ofereceu uma edição anterior, segundo ela mais bonitinha. Ambas eram bonitinhas. E perguntei se havia alguma diferença entre elas. Foi aí que a vendedora portuguesa olhou para mim dizendo: “claro que são iguais, não se pode mudar os Lusíadas”; e quase completando: “brasileiro idiota”. Bom, evidentemente, eu queria saber se havia introduções diferentes para cada edição (algo comum), se alguma das edições era anotada (como uma belíssima que tinha visto, dias antes, em Braga) ou mesmo podia se tratar de uma edição adaptada em prosa (que talvez ela, a vendedora, nem saiba que existe). Sei lá. Como já tenho outras edições dos “Lusíadas”, queria algo diferente. Mas terminei sendo tratado como o mais ignorante dos turistas literários, digo fotográficos. Devia ter compreendido o encontro com o ex-jogador: um mau presságio. Perdi bacalhau e vinho. E o tempo passa.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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Verossimilhança literária

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Já disse – e agora repito – que o australiano Morris West (1916-1999) é um dos meus ficcionistas preferidos. E não só pela sua “trilogia católica”, composta por “O Advogado do Diabo” (“The Devil’s Advocate”, 1959), “As Sandálias do Pescador” (“The Shoes of the Fisherman”, 1963) e “Os Fantoches de Deus” (“The Clowns of God”, 1981). Quase tudo de West é bom, a exemplo de “A eminência” (“Eminence”, 1998), seu último livro publicado em vida e já objeto de comentários meus. West foi – ou é, já que sua obra permanece viva – um bestseller que escrevia com profundidade e bem. Alta literatura e entretenimento do melhor tipo.

Para além disso (falo da sua boa literatura), West é tido como um escritor de dons antecipatórios (para os medianamente crentes) ou mesmo premonitórios (para os mais místicos) quanto às coisas da Cúria romana. Em “As sandálias do pescador”, ele imaginou a eleição de um Papa do leste europeu quinze anos antes da entronização de Karol Wojtyła (1920-2005) como João Paulo II. Em “Os Fantoches de Deus”, ele nos deu um Papa que renuncia ao trono de São Pedro para viver em reclusão, mais de trinta anos antes da abdicação de Bento XVI, Joseph Aloisius Ratzinger (1927-2022). Em “A eminência”, tem-se a figura de um cardeal argentino, um homem violentado “pelos militares em seu país que – mesmo convivendo com revelações, dúvidas e questionamentos – é um dos principais candidatos ao trono de Pedro”. E isso tudo obriga a “Igreja Católica a refletir sobre seu passado e redefinir o seu futuro”. Isso nos lembra algo de hoje.

Bom, se são dons antecipatórios ou místicos (sei lá) ou apenas o bom uso de probabilidades e coincidências, o fato é que a literatura de West me encanta de um modo especial. Talvez porque haja outras coincidências, até pessoais, envolvidas nisso.

Peguemos o caso de “Os Fantoches de Deus”, livro que, numa edição de bolso da Record, começando o ano passado, só terminei de reler em pleno veraneio deste ano (atualmente, por vários motivos, me é difícil ler um livro de uma tirada só). Temos um Papa que renuncia ao trono de São Pedro, como já dito. Mas há muito mais: “O Papa Gregório XVII abdica ao trono de Pedro pressionado por um ultimato dos cardeais, sob pena de ser declarado insano. Motivo: ele afirma ter recebido uma revelação pessoal do fim do mundo e do segundo advento de Cristo. Qual seria a reação de centenas de milhões de crentes e mesmo dos outros milhões que, embora não aceitassem a infalibilidade papal, têm razões para achar que a hora final poderia soar, acionada pelos dedos das superpotências atômicas? Com um mundo em crise, (…), a guerra atômica cada vez mais uma perspectiva sombria, o terror em toda parte, a desconfiança e a insegurança nas ruas. Restaria ainda alguma esperança, alguma possibilidade de sobrevivência da humanidade? E quem seria o instrumento da salvação do homem?”.

O “Armagedom”, uma guerra terrível com o fim dos tempos, a tal “Parúsia”, com a volta redentora de Cristo para presidir o Juízo Final, conforme sugeridos no livro, tudo isso foi por mim relido durante um tempo em que a Guerra da Ucrânia escalava em terrores e, sobretudo, em medo de um conflito nuclear sem vencedores entre o Oeste e o Leste. Como nos tempos da finada(?) Guerra Fria. Essa “coincidência” de releitura de “Os Fantoches de Deus” durante a escalada da Guerra na Europa deu à coisa, àquilo que era contado por West, uma verossimilhança viciante. E assustadora.

E tem o final do livro. Que, evidentemente, eu não vou contar. Para mim, foi inesperado. Não o antecipei, sequer suspeitei, em momento algum. Foi um final de leitura místico (e olhem que estou em algum ponto entre os medianamente crentes e os céticos). Fiquei emocionado. E não havia “lua ou conhaque”. Era um dia de semana, meio da tarde, as areias de Pirangi quase desertas. Só eu e o amigo Sol. Talvez tenha sido isso. O final veio “sem muita conversa, sem muito explicar. Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar”.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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Shakespeare nas estrelas

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Na mesma trilha das últimas semanas, vamos novamente de ficção científica. Como fã desse gênero literário/cinematográfico/televisivo, faço hoje um paralelo entre uma das suas mais badaladas franquias – “Star Trek” ou “Jornada nas Estrelas” – e o grande Shakespeare (1564-1616).

Shakespeare, todo mundo – pelo menos o mundo interessado em literatura, arte dramática e coisas que tais – conhece ou dele já ouviu falar. É o criador de uma obra que transcende época e lugar e não pertence a qualquer religião, filosofia ou profissão. Um gênio que representa o que há de mais sublime na literatura universal ou mesmo na natureza humana. “Romeu e Julieta” (1592), “Júlio César” (1599), “Hamlet” (1599), “Otelo” (1604), “Rei Lear” (1605), “Macbeth” (1606), “Antônio e Cleópatra” (1607), apenas para citar algumas de suas tragédias, já que de uma de suas comédias eu tratarei adiante, são tudo e algo mais. Poucos – na literatura ninguém mais do que ele – conheceram a alma humana como o bardo inglês.

Já “Star Trek”, entre nós chamada “Jornada nas Estrelas”, é uma franquia estadunidense do tipo “viagem espacial”, originalmente criada por Gene Roddenberry (1921-1991), mas composta por várias séries que se sucedem no tempo. A primeira série foi ao ar em 1966. Desde então vieram “Star Trek: the Next Generation”, “Star Trek: Deep Space Nine”, “Star Trek: Voyager”, para ficar nas minhas sequências preferidas, e por aí vai. Da série original, William Shatner como o Capitão Kirk, Leonard Nimoy como o Sr. Spock e DeForest Kelley como o Dr. McCoy são rostos inesquecíveis. Da nova geração, o capitão Jean-Luc Picard (papel de Patrick Stewart) está entre meus heróis. A nave espacial Enterprise, a tão discutida viagem em dobra espacial e o inusitado teletransporte nos fazem sonhar com novos mundos. As aventuras viraram livros, quadrinhos, jogos e, claro, foram bater no cinema: os primeiros filmes, com os atores da série original, estão entre os meus queridinhos. São décadas de estelar encantamento. Não acredito haver franquia mais longeva. E são inúmeros prêmios: Hugo, Saturno, Emmy, Oscar, por anos e anos. O impacto cultural de “Star Trek”, dos seus fãs à NASA e ao espaço sideral, é cósmico.

O paralelo que faço entre o cânone shakespeariano e as estórias de “Star Trek” tem por inspiração uma observação que li em um livro perfeito para os “juristas trekianos” (traduzo: juristas fãs de “Jornada nas Estrelas”): “Star Trek Visions of Law & Justice” (editado por Robert Chairs e Bradley Chilton e publicado pela Adios Press, 2003). Dele consta: “Especialistas em estudos transdisciplinares shakespearianos nas ciências humanas gostam de enfatizar que, se alguém lê Shakespeare, essa pessoa irá encontrar na obra do bardo todos os tipos de seres humanos. Similarmente, se alguém assiste à Star Trek, essa pessoa irá achar todos os questionamentos conhecidos da condição humana – e alguns desconhecidos até que vislumbrados em Star Trek. Este é o problema acadêmico de Start Trek; ela não se encaixa perfeitamente em qualquer das ciências. Ela é uma extrapolação das ciências puras, como a física, a biologia ou a química. Ela é uma análise crítica tanto das ciências sociais em geral como da nossa história. Ela é uma literatura visual da filosofia, da ética e da arte. Start Trek, no seu melhor, pode inspirar pessoas a buscarem ser melhores sendo seres humanos; ela pode ser tanto um púlpito ameaçador quanto inspiradora poesia. Ela pode também ser, e frequentemente o é, apenas uma série/novela divertida”.

A observação transcrita confirma o que venho defendendo: a ficção científica, sublinhada aqui a ficção “Star Trek”, é o mais filosófico dos gêneros literários/cinematográficos/televisivos. E entre as “filosofias” objeto da franquia “Star Trek” está a filosofia política e a subespécie filosofia do direito. De fato, relendo “Star Trek Visions of Law & Justice”, reafirmo: “Star Trek” trata, de forma profunda, de aspectos fundamentais da filosofia do direito. Em vários dos seus episódios se discute, com grande implicação para o enredo, temas como: o conceito de soberania, federação e constituição; o direito internacional (e interstelar, como o livro chama), seus tratados e o direito interno; a jurisdição extraterritorial, a extradição e o asilo; o direito de guerra; o combate ao terrorismo; a pena de morte e as outras formas de punição; o direito e a questão do gênero; e conceitos mais abstratos, como os de Justiça e Moral e as ideias de direito e de equidade.

Bom, para os mais céticos – no duplo sentido, seja porque não gostam de ficção cientifica, seja porque só acreditam vendo ou lendo –, vou dar um exemplo típico, misturando com a obra shakespeariana, da filosofia do direito de “Star Trek”. Rogo apenas um tico de paciência.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Crônica

Matrix filosófica

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Eu já afirmei e agora reitero: a ficção científica é o mais profundo dos gêneros literários (e cinematográficos, até por derivação). Cuida de questões eminentemente filosóficas, como as diferenças entre o ser humano e as máquinas, a própria identificação do indivíduo em si, as implicações do presente no futuro da humanidade, o conceito de tempo, os perigos da sacralização da tecnologia e de certos mecanismos de controle social, a possibilidade e os impactos de um contato com seres alienígenas etc. E dou como exemplos “Admirável mundo novo” (1932), de Aldous Huxley, “Fahrenheit 451” (1953), de Ray Bradbury, “1984” (de 1949), de George Orwell, “O Homem do Castelo Alto” (1962), de Philip K. Dick, “2001: Uma odisseia no espaço” (1968), de Arthur C. Clark e a série “Fundação” (iniciada em 1942), de Isaac Asimov. Coisas de craques.

Mas alguém pode objetar que eu fui buscar, para fundamentar minha tese, a crème de la crème da ficção científica e, de resto, obras e autores hoje pouco lidos pela população em geral. Pois, em resposta, vou tratar de uma obra cinematográfica que é sucesso de crítica e público. Assistida por milhões. A série/franquia “Matrix”, criada pelas irmãs Lana e Lilly Wachowski.

Além de outras coisitas (TV, quadrinhos, jogos etc.), são quatro filmes: “Matrix” (1999), o primeiro e o melhor da série, “Matrix Reloaded” (2003), “Matrix Revolutions” (2003) e “Matrix Resurrections” (2021). Com algumas variações, as estórias são protagonizadas por Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss e Hugo Weaving. Maravilha de divertimento.

Vocês devem conhecer a trama, que gira em torno da realidade virtual, criada por máquinas/computadores sencientes de altíssima inteligência artificial, em que vivem aprisionados os humanos. E o fato é que esse mundo ciber distópico de “Matrix” está povoado de complexos temas filosóficos e religiosos. Qualquer pesquisa na Internet vai mostrar relações da Matrix com o “Mito da Caverna” de Platão, com as peripécias de “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll, com os “Simulacros e Simulação” de Jean Baudrillard, com o Budismo e por aí vai.

Vamos aprofundar um pouco a coisa com o apoio de Daniel Shaw e do seu “Film and Philosofy: taking movies seriously” (Wallflower Press, 2008). Segundo Shaw (que, por sua vez, pede ajuda a Carolyn Korsmeyer), “Matrix” invoca “aleatoriamente uma série de problemas clássicos de percepção, para os quais a mais óbvia referência é a Primeira Meditação/Filosofia de Descartes. Os dois principais argumentos céticos de Descartes (a inabilidade de se distinguir sonhos e experiências em vigília e a hipótese do gênio maligno) encontram os seus equivalentes cinemáticos em Matrix, que induz estados de sonho que são indistinguíveis de estados normais de consciência, e assim levando à ilusão da imensa maioria da humanidade sobre tudo o que eles pensam estar experimentando. As máquinas (que tomaram o controle da Terra e usam os seres humanos como suas fontes de energia) são o equivalente do gênio maligno [de Descartes], dirigidas que são pelo plano original do Arquiteto que as criou (como nós ficamos sabendo no fim de Matrix Reloaded, de 2003). O motivo para essa ilusão coletiva era tornar mais fácil subjugar os seres humanos. Estes são levados a acreditar que ainda estão vivendo o ápice da civilização humana (e antes da descoberta da Inteligência Artificial – IA)”. Esse é apenas um exemplo, entre outros tantos, da “filosofia” que podemos encontrar na série. A filosofia e a profundidade das temáticas de “Matrix” são de tal monta que livros são escritos para se tentar entender a coisa, a exemplo de “The Matrix and Philosophy” (2002), organizado por William Irwin.

Por fim, devo registrar que há também várias questões jurídico-filosóficas a serem exploradas em “Matrix”. Por exemplo, a importância da liberdade individual, a escolha individual ou coletiva sobre o tipo/concepção de “humanidade” em que se quer “viver” (ou “sonhar” ou “viver em sonho”) ou mesmo questões de moral/ética como trair/vender seus amigos para voltar a viver na desejada Matrix, algumas delas lembradas pelo já citado Daniel Shaw.

Dito isso, indago: quem se habilita a escrever um livro “A Matrix e o Direito”?

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Crônica

Altíssima ficção

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Vou seguir tratando da controversa divisão entre “alta” e “baixa” literatura. E, desta feita, vou focar na ficção científica, um dos mais importantes e populares gêneros de literatura. Seus fãs, seus clubes, seus prêmios (sendo o Nebula e o Hugo os mais prestigiados) são muitíssimos.

Suas estórias vendem aos tubos. Invariavelmente, essas estórias vão bater nas telas grande e pequena. Sucesso para além das fronteiras da nossa imaginação. E eu a acho uma literatura estelar.

Embora já existisse alguma produção do tipo desde o Iluminismo – afinal, com as “luzes” focamos na ciência –, convencionalmente, tem-se nas aventuras e na “littérature d’anticipation” de Jules Verne e na “science fiction” de H. G. Wells os precursores do gênero ficção científica.

Como anota Miklós Szabolcsi (em “Literatura universal do século XX: principais correntes”, Editora Universidade de Brasília, 1990), “essa nova corrente inicia-se com Jules Verne, cuja obra ainda mantém em equilíbrio harmônico os elementos históricos, a descrição humana e futurologia técnica, caraterísticas que, com certeza, encerram o segredo de sua influência e de seu sucesso junto aos leitores; Herbert George Wells, por sua vez, apresenta utopias técnicas mais amargas e agourentas, que mostram um futuro distante forrado de pessimismo com relação ao ser humano”.

Sem demérito algum ao autor de “A máquina do tempo” (“The Time Machine”, 1895) e “A Guerra dos Mundos” (“The War of the Worlds”, 1898), devo aqui anotar que sou um fã de Verne, de suas “Viagem ao centro da terra” (“Voyage au centre de la terre”, 1864), “Vinte Mil Léguas Submarinas” (“Vingt mille lieues sous les mers”, 1870), “A volta ao mundo em 80 dias” (“Le tour du monde en quatre-vingts jours”, 1873) e, ao final, do seu conjunto “Viagens Extraordinárias” (“Voyages Extraordinaries”). Como aduz Bruno Blasselle, em “Histoire du livre: le triomphe de l’édition” (Gallimard, 2006, vol. 2), “se existe um autor no qual o progresso científico há inflamado a imaginação das pessoas, este é Jules Verne”, alegadamente o escritor mais traduzido da história.

É necessário registrar que o gênero ficção científica tem fronteiras muito mais amplas do que costumamos imaginar (afinal, onde estão as fronteiras da imaginação?). Aqui quero dizer que nesse gênero estão muito mais do que um “2001: Uma odisseia no espaço” (“2001: A Space Odyssey”, 1968), de Arthur C. Clark, para didaticamente darmos um exemplo marcadamente específico dessa literatura (e do cinema dela decorrente). Por exemplo, no gênero ficção científica entram distopias como “Admirável mundo novo” (“Brave New World”, 1932), de

Aldous Huxley, “Fahrenheit 451” (1953), de Ray Bradbury, “1984” (“Nineteen Eighty-Four”, 1949), de George Orwell e “O Homem do Castelo Alto” (“The Man in the High Castle”, 1962), de Philip K. Dick. Temores do presente projetados num futuro até “próximo”. E, claro, distopias interplanetárias mais que ousadas, baseadas nas descobertas científicas de hoje e suas possibilidades de realização futuras quase infinitas. Este é o caso de Isaac Asimov e sua série, obra-prima da literatura, “Fundação” (“Foundation”, iniciada em 1942). Alguém pode querer literaturas de nível mais elevado do que as proporcionadas pelos autores e livros acima citados?

Doutra banda, é crucial aqui afastar o preconceito, vinculado à confusão entre o gênero ficção científica e um certo tipo de cinema/TV baseado nele, que alguns enxergam como superficial ou mesmo “mentiroso demais”. Pode até existir. Mas é fato já constatado a realização de muitas das “ficções” previstas por aqueles grandes autores “mentirosos”, digo “visionários”.

Para encerrar, ouso vaticinar que a ficção científica é o mais filosófico/profundo dos gêneros literários (e cinematográficos), na esteira do que defende Daniel Shaw, em seu “Film and Philosofy: taking movies seriously” (Wallflower Press, 2008), cujo título parece umaderivação do clássico “Taking Rights Seriously”, de Ronald Dworkin. De fato, cuidadosamente observando, a ficção científica trata de questões eminentemente filosóficas, como as diferenças entre o ser humano e as máquinas, a própria identificação do indivíduo em si, as implicações do presente no futuro da humanidade, o conceito de tempo, os perigos da sacralização da tecnologia e de certos mecanismos de controle social, a possibilidade e os impactos de um contato com seres alienígenas, entre muitos outros. Isso – que reafirmo aqui – não é mentirinha. É fato.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.