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As rupturas de Shakespeare

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Na semana passada, tratei aqui dos “roubos” de Shakespeare (1564-1616), no sentido de que o Bardo, com poucas exceções, não teria inventado os enredos de suas peças. Ele tinha suas “fontes”. Shakespeare reescreveu histórias antigas ou lendárias; trabalhou a partir de obras de escritores italianos relativamente próximos de seu tempo; adaptou ficções populares de seus compatriotas contemporâneos. Ele apreendeu e compreendeu essas ideias; reinterpretou-as para diferentes universos e épocas; disse o não dito a partir do já dito. Com seu gênio, roubou/transformou o que já era muito em muito mais do que muito.

Mas o que fez ser Shakespeare – e sua obra dramática – muito mais do que muito?

O Bardo foi, entre outras coisas, um disruptor, dando a este vocábulo um sentido não só negativo de destruição, mas também de consequente e positiva reconstrução.

Shakespeare marca uma clara ruptura com a tragédia grega. Ele lia os clássicos gregos para fins de elaboração de suas peças, é vero. Ao escrever suas peças “romanas”, ele baseou-se amplamente nos escritos de Plutarco (46-120). Ele estava também familiarizado com a sabedoria Bíblica. Mas, se a Grécia é o berço do teatro ocidental, da tragédia clássica com a sua lei das três unidades – tempo, lugar e ação – segundo Aristóteles (384-322a.C.), Shakespeare rompeu com isso em direção ao teatro/cena moderna. O seu tempo é mais longo (e não um só dia como na tragédia clássica), seus cenários são múltiplos e tanto os seus protagonistas como as suas personagens secundárias determinam o rumo da trama.

Se Shakespeare foi um revolucionário mestre das tragédias, ele também o foi das comédias. Com um adendo importantíssimo: misturando-as sublimemente adocicadas com romance. Se, em especial no teatro grego, a tragédia e a comédia eram tratadas separadamente, Shakespeare, no seu palco, imita a vida, essa nossa “tragicomédia” de paixões, de idas e vindas, real e cotidiana.

Sob o ponto de vista linguístico, ele foi um inigualável inventor de palavras. Dotado de uma mente perceptiva, que respondia célere e inventivamente às inspirações da linguagem literária e falada, é imensurável a influência de Shakespeare para o desenvolvimento do vocabulário, da língua e da cultura inglesas dentro do seu país e mundo afora. Como anotam Leslie Dunton-Downer e Alan Riding, em “Essential Shakespeare Handbook” (Dorling Kindersley, 2004), “nenhum outro poeta possui uma criatividade vocabular tão plena quanto Shakespeare, que introduziu no inglês cerca de mil e quinhentas novas palavras entre as vinte mil utilizadas em suas obras. Muitas das mais conhecidas frases ainda hoje em uso na língua inglesa apareceram pela primeira vez nas suas peças e na sua poesia”.

A partir das suas “fontes” históricas/literárias ou desenvolvendo-as inteiramente do zero, Shakespeare foi o criador de personagens humanizadas, que, embora vivendo suas estórias fantásticas, parecem muito próximas de nós em suas qualidades e, sobretudo, em seus defeitos. Conforme registra Caroline Cunha, no texto “As inspirações do teatro de Shakespeare”, no blog Letras in.verso e re.verso, “a dramaturgia shakespeariana é conhecida por sua extensa galeria de personagens emblemáticos como Hamlet, Ofélia, Otelo, Iago, Cleópatra, Rei Lear, Macbeth, Desdêmona, Rosalinda, entre outros. Shakespeare criou mais de mil personagens, muitos são dotados de uma dimensão interior nunca vista antes nas histórias. Da pena do autor saíram diálogos que discutem temas da filosofia, da teologia, da metafísica. Seus personagens vão do desespero à felicidade, em tramas que falam de amor, loucura, guerra, disputa pelo poder, política e liberdade. Shakespeare criou alguns dos primeiros anti-heróis da literatura, protagonistas que não possuem vocação heroica, têm um quê de malvados, podendo realizar a justiça por motivações egoístas”. E, citando o professor de literatura inglesa da USP John Milton, arremata a autora: “‘Todos os grandes heróis trágicos dele têm falhas com as quais podemos nos associar, como o ciúme de Otelo, a ambição de Macbeth, a atração pelo poder de Ricardo III, a procrastinação de Hamlet e, na tragédia de Cleópatra, Marco Antônio é um homem poderoso que larga tudo por amor. Todos os personagens têm essas características muito humanas’”.

Talvez por isso tudo seja Shakespeare hoje reconhecido como o inventor do “moderno” e, como quer Harold Bloom (1930-2019), do “humano”.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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Crônica

Os roubos de Shakespeare

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Estes dias, xeretando a Internet, dei de cara com um verbete da enciclopédia “Britannica”, intitulado “Fontes de Shakespeare”, que interessantemente afirma: “Com algumas exceções, Shakespeare não inventou os enredos de suas peças. Às vezes, ele usava histórias antigas (Hamlet, Péricles). Às vezes, ele trabalhava a partir de histórias de escritores italianos relativamente recentes, como Giovanni Boccaccio — usando histórias bem conhecidas (Romeu e Julieta, Muito Barulho por Nada) e outras pouco conhecidas (Otelo). Ele usou as ficções em prosa populares de seus contemporâneos em Como Gostais e Conto de Inverno. Ao escrever suas peças históricas, ele se baseou amplamente em tradução de Sir Thomas North de Plutarco, Lives of the Noble Grecians and Romans, para as peças romanas, e nas crônicas de Edward Hall e Holinshed para as peças baseadas na história inglesa. Algumas peças lidam com história bastante remota e lendária (Rei Lear, Cimbelino, Macbeth). Dramaturgos anteriores ocasionalmente usaram o mesmo material (houve, por exemplo, as peças anteriores chamadas The Famous Victories of Henry the Fifth e King Leir). Mas, como muitas peças da época de Shakespeare foram perdidas, é impossível ter certeza da relação entre uma peça anterior perdida e a sobrevivente de Shakespeare: no caso de Hamlet, foi plausivelmente argumentado que uma ‘peça antiga’, conhecida por ter existido, era meramente uma versão inicial da própria peça de Shakespeare”. Aliás, o fato de William Shakespeare (1564-1616) ter, digamos, as suas “fontes” já era algo sabido e falado à sua época, como atestam documentos contemporâneos referidos no curioso verbete.

Bom, teria então sido o grande Shakespeare um “plagiador”?

O que se sabe, com segurança, acerca da vida de Shakespeare, é muito pouco. Até a sua própria existência, embora isso seja um evidente exagero, é às vezes contestada, com várias teorias conspiratórias sendo sugeridas. Quem sabe algum dia não falaremos sobre elas? Certamente, em Shakespeare, há mais mistérios do que ousa imaginar nossa vã filosofia.

Mas, de logo, afirmo: o Bardo não era um plagiador.

Ao contrário. Ben Jonson (1572-1637), contemporâneo de Shakespeare e durante certo tempo até mais aclamado que ele, considerava Shakespeare um escritor premiado pela natureza com o dom da genialidade. Dizer, sim, que Shakespeare foi um gênio e que ele representa o que de mais sublime há na língua inglesa ou mesmo na natureza humana é afirmar uma verdade hoje quase “científica”.

E, se Shakespeare é considerado um gênio natural, autodidata, isso se deve, em grande medida, à sua capacidade de rapidamente extrair maravilhas das suas fontes, reformulando-as, em tragédias e comédias, quase ao ponto da perfeição. É dito que “Shakespeare provavelmente estava muito ocupado para estudos prolongados. Ele tinha que ler os livros que podia, quando precisava”. Mas há também evidências de que ele, quando necessário, lia acuradamente os clássicos gregos, para fins de elaboração de cada uma de suas peças, assim como as reescrevia e revisava frequentemente.

Na verdade, o escritor de gênio deve ter suas boas fontes. Deve saber das muitas ideias e compreendê-las. Deve interpretar esse seu mundo junto a outros universos e épocas. Deve sobretudo descobrir e dizer o ainda não dito a partir daquilo que já foi dito. O genial Mark Twain (1835-1910) certa vez disse: “Não existe uma nova ideia. É impossível. Nós simplesmente pegamos um monte de ideias antigas e, então, as colocamos em um tipo de caleidoscópio mental”. E assegurava Picasso (1881-1973): “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”.

Pois então Shakespeare era o gênio que tinha o dom de roubar/transformar o que já era muito em muito mais do que muito.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

 

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Personagem, leitor ou autor, ninguém passará impune a ‘Deus me perdoe por quem eu sou’, novo romance de Theo Alves

Na divulgação de seu novo livro, o romance “Deus me perdoe por quem eu sou”, em pré-venda pela Editora Libertinagem, de São Paulo, o escritor potiguar Theo G. Alves, 44, poderia destacar situações envolvendo os personagens que provavelmente elevariam o interesse dos leitores ou de um certo nicho de público, mas ele acredita que se fizesse isso estaria sendo desrespeitoso com sua escrita e diminuindo o universo que criou. Pelo mesmo motivo, procura não enquadrar a obra em um gênero.

“Eu tenho um imenso respeito pelo que escrevo e isso significa que não posso me dar ao direito de diminuir o universo que crio. Encontrar um gênero para o livro é uma tarefa muito mais da crítica e do leitor que minha. Eu quero é dificultar essa tarefa, então nunca pensei em ‘Deus me perdoe…’ como um livro policial ou um romance queer, literatura regional ou sei que mais lá. Para mim, é um romance, um livro, uma história. E os aspectos da poesia, da tragédia, violência e melancolia são inerentes ao mundo em que a história acontece, que é este nosso mundo, cercado de coisas que nos colocam contra a parede todos os dias. É uma história que pode ser real em inúmeras possibilidades, mesmo que seja toda criada e, para mim, isso importa.”

A construção da narrativa, segundo o autor, é ao mesmo tempo simples e rebuscada. O enredo parte de uma história de amor e não pertencimento e acaba por construir e apresentar a estrutura que leva seus três personagens centrais – Severino, Dalva e Naldo – a se tornarem quem são, sujeitos de um bairro pobre de uma cidade interiorana do Rio Grande do Norte que vão se construindo a partir do que têm e do que lhes falta, do pouco mundo ao seu redor, que, em contraponto, é o universo inteiro em que existem. “Por isso há muitos flashbacks na história e ainda um lugar especial para o caderno de sonhos de Dalva, que aparece entre os capítulos do eixo narrativo principal. Há especialmente uma alta dose de poesia nas narrativas oníricas de Dalva, que é uma personagem apaixonante”, diz Theo Alves.

Embora predomine a narração em terceira pessoa, “Deus me perdoe por quem eu sou” é um livro íntimo, intimista, mas que convida ou convoca o leitor para a cumplicidade de suas tragédias, para se perceber parte do assunto e dos acontecimentos. “A intenção é que ninguém saia impune dessa história, seja personagem, autor ou leitor. Tudo no livro, ou quase tudo, é intencional. Espero que não haja acidentes nele, sendo tudo propositalmente disposto para provocar sensações, guiar o leitor por acontecimentos que causem espanto, horror, compaixão e amor”, comenta.

O título, ao mesmo tempo que revela uma carga emocional dos personagens, indicando que há algo moralmente deplorável a ser revelado, não diz absolutamente nada da história, o que o torna intrigante e sedutor. De acordo com Theo, o enredo permanece em segredo porque os personagens e seus sentimentos são maiores que a própria história. “Ele é uma fala de Severino, um dos eixos dessa trama, e ela traduz um sentimento de muitos de nós em diversas situações. Ele só me apareceu com o livro em andamento, o que me angustia um bocado, afinal, tenho por hábito começar os projetos pelos títulos. Este parecia um livro que andava acéfalo porque eu ia escrevendo, mas não havia ainda um título que juntasse as pontas da história. Em uma das cenas, então, um personagem me disse isso. ‘Deus me perdoe por quem eu sou’ pareceu uma frase tão sincera e autêntica que de alguma maneira condensava os vigores do livro. Não tive dúvidas de que seria esse o título.”

O tom exato da oralidade e a mistura das vozes dos personagens com a narração, além da construção de imagens poéticas na medida certa e em função da narrativa, elevam a qualidade da obra e lhe dão uma identidade. “Esse caminho da oralidade é algo que tenho buscado nos últimos anos e já aparece pujante no ‘Barreiro das Almas’ [romance de 2022]. Acho que em ‘Deus me perdoe…’ o exercício chegou ao ponto esperado, ao resultado que eu buscava ao inserir a voz dos personagens junto à do narrador, mas permitindo que o leitor consiga perceber a assinatura de cada um. Então, não houve um estudo específico para essa representação da oralidade, mas inúmeros estudos ao considerar que tudo o que escrevi em prosa nos últimos anos exercita essa técnica. No final das contas, acho que ela reúne tudo o que ouvi das pessoas ao longo da vida e ouço até hoje. Nada me encanta mais na linguagem que a fala do dia a dia, o quanto as pessoas são habilidosas para a comunicação, mesmo sem o letramento formal das escolas.”

Theo Alves se diz uma pessoa alfabetizada pela poesia, especialmente um escritor forjado pela palavra poética, pela construção de imagens. Desde menino decidiu que escreveria porque essa era a única ferramenta da qual dispunha para criar imagens. Então, seu jeito de narrar, de contar as coisas, passa perenemente pela poesia. “Mesmo as cenas mais violentas do livro estão marcadas por dois elementos sem os quais não sei escrever: poesia e cinema. Assim, minha busca é para que a poesia seja um instrumento capaz de contar histórias por meio de imagens sem fazer disso uma muleta cansativa e tediosa para o leitor. Acho que essa é minha assinatura, espero que as pessoas vejam o que escrevo e reconheçam a autoria pelo estilo.”

 

‘Não é fácil ser poeta a tempo inteiro’

Com prefácio do escritor e mestre em literatura brasileira Tarcísio Gurgel, também potiguar, “Deus me perdoe por quem eu sou” é o décimo livro de Theo G. Alves e seu segundo romance em 15 anos, desde que estreou na literatura com “Pequeno manual prático de coisas inúteis” (poesia), de 2009.

Uma média de publicação considerável, levando em conta que suas atividades profissionais lhe tomam todo o dia. “Sinto falta de poder ser escritor por mais tempo. Durante o dia, penso como escritor em boa parte dele, mas o trabalho de fato fica sempre para mais tarde. Para ser muito sincero, acho que a maior rebeldia que cometo é escrever livros. No caso de ‘Deus me perdoe…’, por exemplo, foram quatro anos desde a primeira ideia até ter um livro pronto e editado. É muito tempo, aparentemente, entretanto, se você pensar que ele foi escrito em dias de intervalo, férias, ou cedinho, às 6h da manhã, antes de começar o expediente, até que foi rápido. Eu queria ter mais tempo para ser escritor e o José Miguel tem toda razão [refere-se ao poeta português e seu poema ‘Não é fácil ser poeta a tempo inteiro’], especialmente quando você precisa ir lá fora ganhar o pão do dia por outros meios.”

De toda maneira, Theo considera que a literatura é muito generosa com ele. Já o mercado editorial o incomoda um bocado. O escritor andou batendo em algumas portas com o “Deus me perdoe…”. “Sei que é um bom livro, mas não consegui muita coisa. Inclusive por aqui. Quem queria editar não tinha grana, eu também não tinha. Quem tinha não pareceu querer publicar. Alguns contatos com editoras paulistas foram mais alvissareiros, especialmente a Libertinagem, do Bibiano, a quem já conheço há anos das redes sociais. E a parceria tem sido ótima. É fantástico lidar com gente sensível e que entende o caminho do livro. Tem sido isto: um contato constante e fluido, respeitoso, bonito e que revela o desejo de ambas as partes de fazer um livro lindo. Enviei algumas fotos como sugestão para o clima que a edição precisava ter e o Bibiano me surpreendeu com a capa e uma imagem que encarta o caderno de sonhos no livro. As imagens são minhas, de um ensaio feito em uma olaria na minha cidade, o que me deixou feliz e honrado. Confesso que senti vontade de voltar a fotografar depois de Bibiano ter gostado tanto das imagens a ponto de colocá-las no livro.”

Nascido em Natal e escrevendo em um mercado periférico que é o Nordeste, mais periférico ainda que é o Rio Grande do Norte, na periferia de uma cidade do interior [Santa Cruz], Theo Alves se vê ignorado por Natal enquanto escritor periférico do estado, da mesma maneira que o Rio o ignora enquanto escritor periférico do Brasil. “Aliás, acho até mais fácil ser ouvido no resto do país do que por aqui. Não à toa, a maior parte dos meus livros – como este – saiu por editoras sudestinas”, diz.

Vencedor de alguns concursos literários, como o Prêmio Nacional de Contos Ignácio de Loyola Brandão 2017, Theo Alves considera que os prêmios para escritores são importantes, embora não definam muita coisa. “Há livros medianos com muitos prêmios, há autores que vencem prêmios antes de seus livros serem publicados. Entretanto sei que isso é parte do mercado, do jeito capitalista de fazer livros. Eu continuo fazendo os meus e espero ganhar todos os prêmios do planeta, ainda que raramente me inscreva nesses concursos. Acho que sou um escritor cansado de juntar material para inscrições e coisas do tipo. O que mais desejo alcançar nem são os prêmios. Quero alcançar leitores, quero que leiam meu livro e falem dele, que questionem, duvidem, enalteçam, que gostem do livro, que pensem nele, que o tenham como referência e, numa conversa, perguntem “você já leu o livro novo de Theo Alves?” Pensar nisso me diverte mais do que imaginar os discursos que faria recebendo prêmios.”

 

SERVIÇO
Título: Deus me perdoe por quem eu sou
Autor: Theo G. Alves
Editora: Libertinagem
Páginas: 162
Preço (pré-venda): R$ 40,50
Link para compra: www.editoralibertinagem.com

 

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Fofoqueiros, historiadores e reformadores

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Faz uns dias, eu escrevi aqui sobre o que denominei de “romances de adultério”. Um certo tipo de ficção, cujo apelido dado já indica acerca do que os textos significativamente tratam, que exemplifiquei com duas obras-primas da literatura universal: “Madame Bovary” (1857), de Gustave Flaubert (1821-1880), e “Ana Karenina” (1878), de Leon Tolstói (1828-1910).

Entretanto, fui acusado, por um leitor indignado, mesmo tratando dos casos de Bovary e Karenina, de haver abandonado o direito e estar agora escrevendo fofocas.

Devo logo reiterar que, em termos de qualidade e legado para a cultura, os textos de Flaubert e Tolstói frequentam o pódio dos maiores de todos os tempos. “Todas as famílias felizes são parecidas. As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”, de “Ana Karenina”, talvez seja a mais célebre primeira linha da literatura. E, para muitos, “Madame Bovary” é simplesmente o melhor romance jamais escrito. Se têm “fofocas”, elas são de altíssima qualidade.

Na verdade – e aqui já chego onde quero chegar –, se, num primeiro momento, “Madame Bovary” e “Ana Karenina” têm como temas principais a hipocrisia, a sociedade, a família, o casamento, o divórcio, a fidelidade, a paixão, o sexo e por aí vai, elas são sobretudo retratos históricos dos contextos social, político e também jurídico da França e da grande Rússia de então.

Grandes romancistas, com suas tocantes estórias, algumas vezes são ótimos historiadores, inclusive do direito. Seus textos literários testemunham a visão sobre o mundo jurídico existente em certa sociedade em determinada época, embora essa visão seja marcada pela ótica particular do autor. E esses testemunhos, em linguagem elegante, são bem mais acessíveis aos leitores (com ou sem formação jurídica), para fins de reconstrução da imagem que determinada sociedade tem do direito e de seus atores, que os áridos estudos jurídico-histórico-sociológicos de caráter estritamente científico.

Para além disso, os grandes romances, ao mesmo tempo em que reproduzem o direito posto e o imaginário popular acerca das diversas temáticas jusfilosóficas, também influenciam, em graus variados, a construção desse direito e, sobretudo, desse imaginário. Nesse ponto, como se dá com outras interfaces da literatura (com a religião, com os costumes, com a moda etc.), ela (a literatura) é subversiva, tanto para o direito positivo como para a filosofia do direito. De fato, muitas das ideias inovadoras no direito, assim como boa parte das críticas à mentalidade jurídica consolidada, encontraram sua mais vívida expressão nesse popular e imaginativo meio de expressão, denominado por nós de romance, mas que, poeticamente, o mesmo William P. MacNeil chamou certa vez de “lex populi” (na obra “Lex Populi: The Jurisprudence of Popular Culture”, Stanford University Press, 2007).

Dois grandes exemplos disso são precisamente os casos de Bovary e Karenina, como anota Antonio Padoa Schioppa em “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea” (edição da WMF Martins Fontes, 2014): “Um primeiro setor de inovações legislativas diz respeito à família. Na França, a Restauração havia abolido o divórcio admitido no Código Napoleônico. A crescente consciência das consequências não raro dramáticas, sobretudo para a mulher, de uniões irremediavelmente viciadas – uma consciência exaltada com muita eficácia também pela literatura: pense-se em Madame Bovary de Flaubert ou em Anna Karenina de Tolstoi – levou em 1884, após longas batalhas parlamentares e de opinião, à reintrodução do divórcio na França, limitado contudo a poucas causas específicas (rapto, estupro, sevícias, condenação penal) e com a exclusão do consentimento mútuo como causa de dissolução do vínculo. Ainda na França, muito gradualmente se impôs também a proteção da mulher: à esposa é reconhecida uma pequena capacidade de agir, bem como o usufruto de uma parcela dos bens do cônjuge falecido, a mulher separada foi subtraída ao poder marital, concedeu-se à mulher trabalhadora a possibilidade de dispor livremente de seu salário”.

No mais, definitivamente não somos fofoqueiros. Nem eu nem muito menos Flaubert ou Tolstói.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Decacampeão

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

A elaboração de listas – do tipo “Os 10 maiores”, “Os 100 melhores”, “Os mais vendidos” – é uma moda que já vem de algum tempo. E só cresce. No que toca especificamente à literatura, no mundo multitudinário em que vivemos, é uma ferramenta que direciona de modo eficaz o nosso interesse. Eu mesmo adoro xeretar essas listas. Sobre qualquer coisa, aliás. Possuo até um livrão, de quase mil páginas, intitulado “10.000 Things You Need to Know: The Big Book of Lists”, edição de Elspeth Beidas e publicado pela Universe Publishing em 2016. Vivo folheando-o. É uma delícia.

Dia desses, xeretando o Twitter da revista Bula, topei com uma lista elaborada de forma deveras interessante: “O livro mais vendido no ano em que você nasceu”. Segundo ali consta: “Os nossos primeiros anos costumam ser marcados por lembranças fragmentadas: as personalidades mais notáveis, os filmes que dominavam as telonas, os principais acontecimentos políticos e as músicas que tocavam incessantemente. Agora, um novo elemento pode ser adicionado a essa composição: o livro mais vendido no ano do seu nascimento. A revista americana ‘Publishers Weekly’ organizou uma lista detalhada que engloba somente obras de ficção. Nós, aqui na Bula, refinamos essa lista para incluir os best-sellers traduzidos para o português entre 1950 e 2010. O panorama literário muda ao longo das décadas: nos primeiros anos, uma variedade de autores se destaca, contudo, as décadas de 1960 e 70 são dominadas pelos romances de James A. Michener, enquanto os anos 1980 trouxeram à tona nomes como Stephen King e Tom Clancy. Entre 1990 e 2010, John Grisham torna-se uma presença constante. Richard Bach conseguiu um feito notável, seu livro ‘Fernão Capelo Gaivota’ conquistou o primeiro lugar em vendas por dois anos consecutivos, 1972 e 1973”.

Estava na casa do meu pai quando essa lista caiu em minhas mãos, isto é, apareceu na tela do meu celular. E tentamos consultar primeiro o ano de nascimento dele, 1939. Decepção, já que a coisa começa por 1950. Etarismo? Quanto a mim, estava lá o ano de 1972, com destaque, já que o bicampeão Richard Bach (1936-), com seu “Fernão Capelo Gaivota” (no original, “Jonathan Livingston Seagull”), arrebata o primeiro lugar tanto nesse ano especial (pelo menos para mim) como no seguinte de 1973. Nunca li o exitoso livro de Bach. Quem sabe? Vejam aí a utilidade prática das listas.

De toda sorte, o que mais nos chamou a atenção na lista da revista Bula foi o “caso” John Grisham (1995-). Espantosamente decacampeão (como o meu ABC de Natal) com: “A Confissão” em 1994, “O Homem que Fazia Chover” em 1995, “O Júri” em 1996, “O Sócio” em 1997, “O Advogado” em 1998, “O Testamento” em 1999, “A Confraria” em 2002, “A Intimação” em 2002, “O Corretor” em 2005 e “O Recurso” em 2008. Estórias que foram bater, quase todas elas, com enorme sucesso, no cinema e na TV.

E essencialmente Grisham, romancista e roteirista, nos seus inúmeros best-sellers, fazendo uso da sua formação jurídica e da sua experiência como advogado e homem público, trabalha – e muito bem – a relação direito/literatura/cinema. A grande maioria dos seus livros e filmes (refiro-me aos filmes com roteiros adaptados dos seus livros) são, portanto, pertencentes às categorias das “legal novels” e dos “legal films”, isto é, dos romances e filmes cujos enredos têm considerável ligação com o direito (mas nem todas as obras dele, é importante deixar isso claro).

Sobre Grisham e o seu decacampeonato, as palavras de meu pai foram: “Esse homem deve ter ganho muito dinheiro, deve ser muito rico”. As minhas foram: “Com certeza. E abandonou o direito (e falo da pura e enfadonha prática jurídica) para fazer literatura, que suponho ser o que ele mais gosta”.

“Maravilha”, completo agora. Não sem um quê de desavergonhada inveja.

*É Procurador Regional da República é Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Escritor potiguar participa da Bienal Internacional do Livro, no Rio de Janeiro

O escritor Antenor Mario, potiguar da cidade de Jundiá,  participará da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro entre os dias 1° a 10 de setembro.

Antenor participa da antologia “O Reino dos Sonhos” que será publicada durante a Bienal, obra organizada pela Lura Editorial, Editora Paulista. Em seu conto, há uma homenagem ao Pastor Antônio Gilberto.

O escritor também participará de bate-papo com escritores e encontros com os profissionais do setor.

“Eu, Antenor Mario sinto feliz em participar deste momento, pois a gente percebe a grande importância de encontros assim, e damos valor por causa das trocas de experiências e as emoções que só sabem quem vive a bienal. Estou indo na expectativa de ajudar as pessoas, conhecer histórias e criar relações de amizades com pessoas de todo o Brasil”, disse Antenor.

A Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro é um evento literário brasileiro organizado no Rio de Janeiro desde 1983. Sua primeira edição foi realizada nos salões do hotel Copacabana Palace, com o evento ocupando atualmente o Riocentro

Sobre Antenor Mario

É ator e escritor. Estreou na literatura com o livro de poemas “A imagem da arte: Poemas da minha vida”, que conta com mais de 70 escritos poéticos de sua autoria, feitos desde seus 8 (oito) anos de idade. Também é autor dos livros, “As Confissões de Alexander: Escrevendo o diário”, “O senhor e a confusão dos bichos”, “Olha a cidade!”, “Pequenas gotas de poesias” e “Look at the city!”.

Antenor é Sócio Efetivo da Academia de Letras e Artes do Agreste Potiguar – ALAAP/ RN, titular da Cadeira nº 23, tendo como Patrona, Brasilina Augusta de Freitas, primeira professora de Jundiá /RN. Também faz parte da Sociedade dos Poetas e Afins do Rio Grande do Norte e da Academia Internacional de Literatura Brasileiro (AILB). Sua estreia no teatro foi através da “Encenação da Paixão de Cristo” realizado em sua comunidade residente, Santa Fé, também participou da peça, “Um zé qualquer”, realizada para Mostra Cultural da Escola Estadual João Bernardo.

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Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Sigamos na trilha aberta na semana passada para usufruir mais um pouco das sugestões do Goodreads – aquele que se intitula “o maior site do mundo para leitores e recomendações de livros” – sobre os queridíssimos romances de suspense e mistério.

Desta feita, façamos uso de uma outra publicação do Goodreads, que também me chegou via e-mail: “96 Mystery and Thriller Recommendations by Mood and Setting”. Nessa publicação talvez o mais legal seja a categorização dos títulos de uma forma muito curiosa, fugindo do “lugar-comum” (aqui já vai um trocadilho). Afinal, “uma das coisas divertidas” que os criadores do site afirmam haver descoberto ao longo dos anos “é que existem muitas, muitas, muitas maneiras de embaralhar e categorizar livros”. As categorizações tradicionais são úteis, mas se você se enfronha um pouco mais nelas, novas “conexões interessantes naturalmente vão se apresentando”.

O Goodreads nos mostra algumas dessas conexões, a partir de uma curiosa classificação dos livros em binômios – aliás, um tipo de sistematização muito comum na ciência jurídica, com coisas como direito objetivo v. direito subjetivo, direito público v. direito privado, direito penal v. direito civil etc. Dos binômios apresentados pelo site, eis os que eu achei mais interessantes: mistérios/suspense no trabalho (work) v. no lazer (play); mistérios históricos (historical) v. no futuro (future); e mistérios em igrejas (church) v. mistérios no governo (state).

Vou citar/recomendar alguns desses títulos, seja porque já os li, seja porque já assisti a adaptações deles para o cinema/TV, ou, melhor ainda, porque irão entrar na minha lista de mistérios a ser desvendados num futuro mais do que próximo.

Na categoria mistérios no trabalho, seleciono “The Firm” (1991), de John Grisham (1955-), que foi o primeiro best-seller do autor. Foi bater no cinema em 1993, dirigido por Sydney Pollack, com um elenco do balacobaco: Tom Cruise, a belezinha Jeanne Tripplehorn, Gene Hackman, Ed Harris, Holly Hunter e por aí vai. E sugiro também “Murder Must Advertise” (1955), um romance detetivesco inglês clássico, de Dorothy L. Sayers (1893-1957), talvez obra-prima da autora, que é considerada uma das rivais de Agatha Christie (e isso basta para mostrar sua grandeza). Doutra banda, como suspense no lazer, vou citar “The Talented Mr. Ripley” (1955), de outra mui talentosa “dama do crime”, Patricia Highsmith (1921-1995). E aqui temos também uma adaptação famosa, de 1999, com Matt Damon, Jude Law, Philip Seymour Hoffman e as belíssimas Gwyneth Paltrow e Cate Blanchett. Acho que foi desse filme que surgiu minha paixão pela Gwyneth.

Já na categoria de mistérios históricos, vou de “The Bangalore Detectives Club” (2022), de Harini Nagendra (1972-). Este livro faz “o relógio voltar um século e é um deleite para os amantes de mistérios históricos que procuram uma nova série para saborear (ou devorar)”, é afirmado no The New York Times Book Review. Aqui se misturam a história e o exotismo da Índia. E quem não gosta dessa mistura? Já quanto a crimes no futuro – sim, é possível misturar romance policial com ficção científica –, seleciono “The Paradox Hotel” (2022), de Rob Hart (1982-). O Goodreads resume o livro: “Um crime impossível. Um detetive à beira da loucura. O futuro da viagem no tempo em jogo”. Bom, gosto de hotéis, gosto de desvelar paradoxos e, sobretudo, tenho fé de um dia voltar ao tempo em que “festejavam o dia dos meus anos”.

Agora eu chego na minha praia (ficcional, que fique claro): crimes em igrejas. Esse cenário é sensacional. E, da lista do Goodreads – pondo de lado “Il nome della rosa” (1980), de Umberto Eco (1932-2006), que é hors-concours –, cito “Father Brown: The Complete Collection” (1935), do enorme G.K. Chesterton (1874-1936) e “A Morbid Taste for Bones” (1977), de Ellis Peters, pseudônimo de Edith Pargeter (1913-1995), a primeira estória/investigação do Brother Cadfael. Essas estórias de padre são sinistras. Já como mistério no “governo”, vou de “Tinker, Tailor, Soldier, Spy” (1974), de John le Carré (1931-2000). Quem não gosta de uma boa espionagem? Ainda mais se imaginada por um espião, o próprio le Carré, que sabia escrever muito bem.

Embora a categorização do Goodreads seja sui generis, ela tem de tudo, como vocês podem ver. Clássicos do gênero e títulos recentes. Autores novos, ainda pouco conhecidos, mas também os suspeitos habituais – Chesterton, Sayers, le Carré, Highsmith, Grisham. Por mim, parodiando as demais classificações da Goodreads, afirmo que vocês podem ler os livros sugeridos tanto num quarto fechado como ao ar livre, no frio ou no calor, numa cidadezinha pitoresca ou numa grande metrópole, no ar ou no mar, embora eu recomende mesmo ler em terra redonda, boa e firme.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Crônica

Direito em Cervantes

Marcelo Alves Dias de Souza*

O direito – a Justiça, sobretudo – é um tema recorrente na obra dos grandes escritores. Não seria diferente com Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), no seu “Dom Quixote” e nos seus títulos menores. Isso é percebido pelos experts cervantinos. Na verdade, como aduz Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares, em “Atmósfera universitaria em Cervantes” (Ediciones Universidad Salamanca, 2006), “as considerações sobre o direito são abundantes no Quixote, declarando-se até que o fim deste é justamente ‘a justiça distributiva e dar a cada um o que é seu’. É por isso que as menções à justiça e ao direito possibilitaram tantos trabalhos especializados”.

Eu mesmo possuo um pequeno grande livro intitulado “El ideal de Justicia de Don Quijote de la Mancha”, por um certo D. Adolfo Pons y Umbert, resultado do seu discurso de posse na Real Academia de Jurisprudencia y Legislación de España. Minha edição, deste século, da Thompson/Aranzi/Civitis, é um fac-símile de uma edição de 1922 da tradicional Editorial Reus, que se afirma “a mais antiga editora jurídica em língua castelhana” (deve ser, por supuesto). Embora denso e duro de se ler, dada a forma de palestra, não ajudada pelo castelhano de então, trata-se de um livro raro, que já disponibilizei, a pedido, para alguns amigos queridos.

Mas é sobretudo com base em “Atmósfera universitaria em Cervantes” que ora apresento alguns aspectos da temática jurídica em Cervantes.

De início, reitero o fascínio de Cervantes com os estudos jurídicos. No próprio “Quixote” é anotado ser o “estudo das Leis” – o estudo universitário do direito – o propósito de muitos pais para a promoção de seus filhos, devido às muitas oportunidades e favores daí decorrentes.

Grandes jurisconsultos são citados nas obras de Cervantes, anota o autor de “Atmósfera universitaria em Cervantes”. Por exemplo, “o nome de Justiniano é referido pela boca da personagem Redondo na comédia Pedro de Urdemalas, ainda que de forma grosseira. O mesmo se dá com os importantes juristas medievais Bartolo ou Baldo”. Em “La elección de los Alcaldes de Daganzo”, uma farsa, “num coro de músicos e ciganos, faz-se referência a Bartolo”. Há também “uma menção aos juristas Bartolo e Baldo em La tía fingida, atribuída por um tempo a Cervantes”.

O direito, a legislação e, sobretudo, as fórmulas legais de então estão muito presentes no “Quixote”. Especialistas apontam vários episódios na narrativa que trazem problemas jurídicos ali bem “resolvidos” à luz da legislação da época. Termos legais, forenses e notariais, suas locuções e fórmulas, são mesmo abundantes na obra. Mais do que um estudo formal do direito, essa terminologia mostra a familiaridade de Cervantes com os processos judiciais, os serviços notariais e as funções administrativas de então, até por haver ele trabalhado como comissário de suprimentos e cobrador de impostos na Administração. São expressões como “salvo melhor parecer”, “sem prejuízo de terceiros” etc., que, por sinal, até hoje ainda usamos.

Questões de filosofia do direito, para além da “lei” em si, abundam no “Quixote”. Como anotado por Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares: “As leis divinas e humanas asseguram o direito de defesa”; “Pela lei natural é obrigatório favorecer os cavaleiros andantes”; “O cavaleiro andante deve ser jurista e saber as leis da Justiça distributiva e comutativa”; “É lei natural e divina defender a vida”; “As leis vão aonde querem os reis”; “O excessivo rigor da lei não deve pesar sobre o delinquente”; “Muitas leis não devem ser feitas, e as feitas devem ser cumpridas”; e por aí vai.

Mas é sobretudo “o ideal de Justiça” o grande “objetivo jurídico” do Quixote. É algo recorrente na obra, em busca de uma Justiça da “Idade de Ouro”, plena, imperturbável a favores ou interesses. E o próprio D. Quixote oferece conselhos a Sancho Pança para o governo de sua ínsula, que podem ser resumidos na ideia de que a compaixão é sempre melhor do que o rigor. Todavia, como lembra Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares, “José María Maravall destacou que a defesa da Justiça e da paz de Dom Quixote, e sua defesa da Idade de Ouro, não pode ser separada de sua figura ridícula e anacrônica. A justiça de seu tempo não era mais uma questão de esforços individuais ou do estilo natural daquela Idade de Ouro rural, mas das engrenagens administrativas e militares dos novos Estados renascentistas”. A Justiça de D. Quixote não pode ser tida como solução estatal, mas apenas como um modo de conduta particular, dirigida aos outros de forma pessoal. A restauração de uma sociedade cavalheiresca e virtuosa já não era mais imaginável, senão como utopia. Tristíssima constatação sobre o cavalheiro da triste figura.

No mais, quedou-me uma dúvida: ao pensarmos numa justiça ao mesmo tempo distributiva e comutativa somos todos Quixotes? É isso?

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Crônica

Salamanca em Cervantes

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Não faz muito tempo, no rescaldo do Carnaval, participei de uma expedição a Salamanca, na Espanha. A famosa cidade universitária, enfatizo. Era minha segunda vez por aquelas bandas. Revisitei sítios famosos. E descobri coisas novas. Maravilha!

Dentre essas descobertas, na loja da própria Universidade de Salamanca, caiu em minhas mãos – e eu segurei, pagando uns 10 euros para tanto – um livro deveras engenhoso: “Atmósfera universitaria em Cervantes” (Ediciones Universidad Salamanca, 2006), por Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares. Para além do seu conteúdo, o danado, em formato grande, com muitas imagens, entre elas reproduções de gravuras de Gustave Doré (1882-1836), é uma bela edição.

Para quem não sabe, Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), neto de um licenciado em direito e filho de um médico de província (este provavelmente sem formação universitária), nasceu em Alcalá de Henares, nas abas de Madrid, historicamente uma das cidades universitárias mais prestigiadas da Espanha. Todavia, pouco ali viveu. Coisa de quatro anos de idade e já estava de mudança, não deixando Alcalá marca maior na imaginação do escritor como pátria estudantil/universitária dos falantes de língua espanhola/castelhana. Esse lugar é ocupado por Salamanca, como veremos a seguir.

Cervantes foi um gênio. Como poeta, dramaturgo e, sobretudo, como romancista, ele é sinônimo de literatura em língua espanhola, sendo esta às vezes chamada de “a língua de Cervantes”. Não preciso dizer que o “Quixote” (“El ingenioso hidalgo Don Quixote de la Mancha”, no original) é uma obra-prima da literatura universal, por muitos considerado o primeiro romance moderno e, com certeza, um dos melhores já escritos em todos os tempos.

Todavia, ao que tudo indica, Cervantes foi um gênio autodidata, sem estudos oficiais, ao contrário do que por vezes se imaginou. Segundo registra Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares, “Cervantes, ao contrário de Góngora, Calderón ou Quevedo, não parece ter feito um curso universitário, nem em Salamanca nem em Alcalá, e deve ser considerado um autodidata, embora de formação humanista e acentuado gosto pelos livros. A formação de Cervantes suscitou diversidade de opiniões. Ele mesmo parece se definir como ‘pouco alfabetizado’ e de ‘sabedoria leiga’. O mais provável é supor uma educação de cunho humanista e de nível pré-universitário, obtida em colégios jesuítas ou municipais, como já indicamos. Implicaria isso um certo nível de conhecimento do latim, manifestado, entre outras coisas, em várias citações e expressões de Dom Quixote? Por outro lado, Cervantes demonstra familiaridade com a obra de vários autores clássicos como Homero, Virgílio, Horácio, Ovídio, Cícero, Terêncio, Sêneca, Júlio César, Salústio ou Plutarco, para citar alguns. Os especialistas também apontaram um marcado autodidatismo em Cervantes e um notável amor pela leitura”.

Parece mesmo certo que Cervantes – à semelhança de Shakespeare (1564-1616), para citar outro exemplo célebre – faz parte de um pequeníssimo grupo de homens premiados pela natureza com o raro dom da genialidade, a despeito das evidências de que ele conhecia razoavelmente os clássicos gregos e latinos, repercutindo isso nas suas obras, entre elas o “Quixote”.

Entretanto, apesar do autodidatismo de Cervantes, também é certo o seu amor – talvez seja até melhor dizer “fascínio” – pela vida universitária, sobretudo a salamantina. Como anota o autor de “Atmósfera universitaria em Cervantes”, Salamanca “constitui uma referência literária e um fascínio cultural ao longo de toda a obra de Cervantes. São recorrentes as alusões míticas a Salamanca como cidade do saber e das letras, diferentemente do que se dá com Alcalá, que quase desapareceu no próprio Dom Quixote. Também inexistem alusões à Universidade de Valladolid [a UVA, outra tradicionalíssima instituição de ensino da Espanha], cidade onde viveu o romancista. Alusões a Salamanca aparecem, sim, em vários capítulos do Dom Quixote (…)”.

Esse “fascínio universitário” inclui, como pontuado em “Atmósfera universitaria em Cervantes”, quase todos os ramos do saber: letras e humanidades, lógica e filosofia, saberes médicos e, por supuesto, o velho e bom/mau direito.

E é sobre a “ciência jurídica em Cervantes” que papearemos na próxima semana. Prometo.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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O tempo passa

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Havia estado no Porto/Portugal uma única vez, no ano de 2000 (se não estou enganado), para fazer um curso de pós-graduação em direito comunitário na Universidade Lusíada local. Bons tempos. Era bem jovem. E viva o vinho do Porto e do Douro!

Voltei à cidade esses dias no rescaldo do Carnaval. Logo descobri que me lembrava de muito pouco da urbe. Quase nada. Suas ruas e monumentos me eram completamente estranhos. Bom, já fazia quase cinco lustros de minha única estada lá. É bastante tempo. E a “cidade mudou muito, completamente”, depois me disse a simpática recepcionista do meu hotel na Ribeira, ao compartilhar meus sentimentos com ela. Ou talvez eu apenas tenha bebido e aproveitado demais o meu período de estudante no Porto. Sei lá. Bons tempos.

De toda sorte, eu tinha uma missão ali: revisitar a Livraria Lello do Porto. Dela eu tinha uma boa lembrança. E, deixando minha mulher e meus sogros já próximos dos restaurantes à beira do Douro – onde, disseram eles, comeram o melhor bacalhau e tomaram o melhor vinho da viagem –, saí sozinho, esbaforido, mapa à mão, subindo as ladeiras, em direção à famosa casa de livros.

O trajeto foi curioso. O centro da cidade não é grande. Mas, em obras, perdi-me e achei-me algumas vezes. E, numa praça da qual não me recordo o nome, dei de cara com um casal de primos e um casal de amigos de Natal, entre estes um ex-jogador de futebol, deveras fora de forma, que ainda insiste em correr atrás da pelota. Vinham da Lello. Deram-me dicas de como entrar no estabelecimento. Hoje se paga para lá entrar e a fila é enorme. Foi uma alegria encontrar aleatoriamente conterrâneos em terra tão distante. Mas eu deveria ter interpretado aquele encontro com o meu amigo ex-jogador como um sinal, um presságio, de que o tempo passa, até no Porto.

Cheguei à livraria, no nº 144 da Rua das Carmelitas, afogueado. Na porta, apressadíssimo, pela Internet, fiz uma reserva para uma entrada vip, para cinco minutos depois, por 16 euros e algo. Enrolei-me um pouco com o cartão e o e-mail, mas deu certo. O sistema financeiro é bruto e bom. E os 16 euros eles devolvem em livros da Lello. Vale a pena, em princípio.

Bom, o interior da livraria é lindo. Continua lindo. A madeira escura trabalhada é belíssima. As paredes e as estantes prendem a nossa atenção. As colunas e os corrimões também. O teto em gesso e madeira idem. O enorme vitral nos ilumina. E, claro, a badalada escadaria, cuja forma nos dá um desejo de subi-la (a escada) até o infinito, é um must. Tudo isso ainda está lá. Fato!

Todavia, o ambiente, definitivamente, não é mais o mesmo de outrora. Vi uma exposição sobre José Saramago (1922-2010). Legal. A disposição dos livros, sistematizada por ganhadores do prêmio Nobel e por escritores que poderiam/deveriam ter ganho, também é interessante. Mas o acervo no geral é muito pobre. Pobre mesmo. São tomos bonitinhos para exposição e não para consulta e consequente aquisição. E o pior: a livraria está apinhada de turistas. Muitos. Muitíssimos. Assim como eu, tirando fotos para todos os lados (ainda consegui uma ou duas fotos com apenas duas ou três cabeças e pernas nos cantos das imagens). Saí de lá “retratofóbico”, já adianto.

Ao final, interessei-me por um livro de Orhan Pamuk (1952-), escritor turco, prêmio Nobel de literatura em 2006. O título era “Istambul: Memórias de uma cidade”. Gosto de livros sobre cidades. Imagine um escrito por um prêmio Nobel. Mas não pude trocar o meu crédito pelo danado (mesmo pagando uma pequena diferença). O crédito só valeria para livros de uma nova edição de bolso da Livraria Lello. São livros bonitinhos, mas uma coleção pouco variada, clássicos sobretudo, que eles devem editar já sem pagar direitos autorais. Fui no óbvio: uma edição dos “Lusíadas”, do enorme Luís de Camões (1524-1580). Nada mais português.

Aí veio a cereja do bolo. A vendedora foi até simpática e me ofereceu uma edição anterior, segundo ela mais bonitinha. Ambas eram bonitinhas. E perguntei se havia alguma diferença entre elas. Foi aí que a vendedora portuguesa olhou para mim dizendo: “claro que são iguais, não se pode mudar os Lusíadas”; e quase completando: “brasileiro idiota”. Bom, evidentemente, eu queria saber se havia introduções diferentes para cada edição (algo comum), se alguma das edições era anotada (como uma belíssima que tinha visto, dias antes, em Braga) ou mesmo podia se tratar de uma edição adaptada em prosa (que talvez ela, a vendedora, nem saiba que existe). Sei lá. Como já tenho outras edições dos “Lusíadas”, queria algo diferente. Mas terminei sendo tratado como o mais ignorante dos turistas literários, digo fotográficos. Devia ter compreendido o encontro com o ex-jogador: um mau presságio. Perdi bacalhau e vinho. E o tempo passa.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.