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Obrigado povo brasileiro

Por Ivanaldo Xavier*

Quando a democracia está em risco, na fila das instituições que primeiro são punidas e severamente castigadas, estão os órgãos de imprensa. É nesse momento que a mídia percebe que o “salve-se quem puder” não é a atitude mais lógica e que é preciso extrair do que ainda resta de democracia, a força da união para abater a “besta fera” que amedronta a todos. Não acho que deve existir um palanque de heróis, pois nesse momento até o povo que protestou nas ruas, na internet e de suas próprias varandas, são heróis.

Ao exaltar e distinguir uns, corremos o risco de esquecer de alguns e o próprio povo, que também se expôs ao risco de uma violência, será o primeiro esquecido. Devemos estimular nossa própria memória quando na busca pelos heróis nacionais, percebemos sempre, a ausência dos heróis negros e negras, das mulheres em geral, brancas, pardas, negras etc… e até podemos citar um exemplo recente com a troca do nome da autora da Lei Áurea pelo nome do imperador D. Pedro II, feita pelo governo de São Paulo.

O Brasil, aparentemente, não tem heróis populares, apenas as figuras oriundas das elites brancas.  Cobrar agradecimentos à Rede Globo, pelos serviços prestados a ela mesma, exaltando o seu nome, ou especificamente o do Jornal Nacional, pela defesa da “democracia” é estimular a amnésia doentia que assola nosso país.

Eu não direi obrigado Rede Globo, eu direi obrigado ao povo brasileiro, Eugênio Bucci, que mais uma vez escolheu a democracia.

*É jornalista e servidor aposentado da UERN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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O golpismo bolsonarista não chegaria a esse ponto sem tantos cúmplices

A escalada golpista do bolsonarismo não começou ontem. Tem início em maio de 2019 quando sem qualquer motivo os apoiadores do então presidente foram as ruas pedir intervenção militar, fechamento do Congresso Nacional e do STF.

Depois disso a escalada não parou.

Foram vários movimentos sempre com Jair Bolsonaro (PL) dobrando a aposta e incentivando os seus apoiadores a agirem contra as instituições. Os dois últimos 7 de setembros foram assustadores para quem tem compromisso com o estado democrático de direito.

Enquanto bradava ataques as urnas eletrônicas, judiciário e parlamento, Bolsonaro ia aparelhando as instituições. Deu uma série de benesses aos militares, incentivou a agitação política nos quartéis das polícias militares e escolheu a dedo um procurador-geral da República que funcionasse como seu advogado de defesa.

A omissão de Aras deixou que aliados radicais de Bolsonaro na imprensa e na política estimulassem o golpismo nas redes sociais.

Quando se viu em risco de impeachment, por todas as insanidades que praticou na pandemia, instalou o orçamento secreto e o esquema do tratoraço na Codevasf, para amansar o parlamento.

Assim Bolsonaro reuniu em torno de si cúmplices em sua escalada golpista. Usou como pôde os militares para questionar as urnas e quando perdeu a eleição no dia 30 de outubro contou com a ajuda de empresários e a omissão das forças armadas para espalhar golpistas nas portas dos quarteis Brasil adentro.

Enquanto pediam golpe, um crime previsto em lei, os golpistas eram tratados com todo respeito e consideração pelos militares. Na outra ponta, Bolsonaro estimulava o golpismo com o silêncio ou declarações dúbias. Os golpistas sempre contaram com a cumplicidade dos fardados.

As polícias militares em vez de agir com rigor, ofereciam proteção. O procurador-geral da República Augusto Aras vedava os olhos, se omitindo. A inação marcou todo processo de transição.

Sem ser incomodado, Bolsonaro deixou o país rumo aos Estados Unidos usando avião da FAB sem qualquer justificativa. Curtiu de longe a escalada golpista e só condenou a depredação na Praça dos Três Poderes porque se viu ameaçado de extradição. Ainda assim o fez com argumentos falaciosos.

Outro cúmplice do bolsonarismo foi o governador do Distrito Federal Ibaneis Rocha. Além de colocar um efetivo pequeno para conter os golpistas, escalou policiais omissos que deixaram os golpistas passarem com facilidade no rumo dos atos terroristas.

Foi necessária uma intervenção federal na segurança do DF e hoje o ministro do STF Alexandre de Moraes afastou Ibaneis do cargo.

A conta não para por aí.

Houve também o discurso que minimizava as intenções dos golpistas. A covardia da mídia do mercado financeiro que não chamava os golpistas pelo que realmente são. Os “isentões” nas redes sociais que tratavam os crimes como “manifestações legítimas” num cinismo grotesco. Esses posicionamentos legitimadores dos golpistas colaboraram para o caldo de cultura que levou a democracia brasileira à beira do precipício na tarde de ontem.

Ainda há os que atacaram o ministro Alexandre de Moraes por tentar conter a escalada golpista e as fake News que fundamentaram as teses contra a democracia brasileira. Esses também são cúmplices.

O brasileiro só aprende lições da pior forma possível. Espero que agora entendam que a democracia do país está em risco e que os golpistas não começaram a cometer crimes ontem. Os atos criminosos vêm de antes e a punição tem de ser rigorosa seguindo o devido processo legal.

O golpismo não ameaçaria o país sem tantos cúmplices ao longo dos últimos anos. São militares, empresários, cúpula do Ministério Público e políticos radicais que incentivam o caos em suas redes sociais.

Nem todos serão punidos pela lei, mas moralmente já estão derrotados.

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Deus, pátria e família

Por Alexandro Coutinho*

O tripé Deus, Pátria e Família representa um conjunto de valores universais que independem da raça, cor, etnia, religião ou procedência de quem os defendem.

Entretanto, na história recente da humanidade, vários movimentos políticos capturaram esses valores para si, na tentativa de segregar e dividir as pessoas por meio da coerção, como se uma parte da sociedade não fosse digna para carregar essas bandeiras. Esse caldo de usurpação exorta a figura do homem branco e cristão como paradigma do “ser humano direito”, revestido do arquétipo do governante de Jung, que degenera no autoritarismo e usa da sombra e da desconfiança para submeter as pessoas ao soslaio de sua vontade, mantendo seus privilégios.

Em um desses episódios, o lema “Deus, Pátria e Família”  foi adotado pela Ação Integralista Brasileira, um movimento autoritário fundado em 1932, quando o jornalista Plínio Salgado lançou o Manifesto de Outubro. Os integralistas brasileiros usavam símbolos e rituais que os aproximavam dos similares europeus, como o uso do verde na indumentária e a letra grega sigma no logotipo do movimento. Eles também adotaram a saudação de origem romana com o braço direito estendido utilizada pelos nazistas e fascistas italianos.

Em 1988, a Constituição da República Federativa Brasileira, promulgada sob a proteção de DEUS, celebrou a independência do nosso Estado e tornou inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando a todos o livre exercício dos cultos religiosos.

Nossa PÁTRIA constituiu-se como Estado Democrático de Direito, fundamentada na cidadania e na dignidade da pessoa humana, em respeito à liberdade e ampla diversidade de raças e culturas que forma o nosso tecido social.

A FAMÍLIA teve especial proteção no capítulo VII de nossa Carta Magna, que a tomou por base da sociedade, reconhecendo e acolhendo as diversas formas de entidades familiares.

Herdamos, do positivismo, uma lei maior alicercada na ORDEM e no PROGRESSO, lema de nossa bandeira que se baseia na célebre frase do filósofo Augusto Comte, que dizia “Amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”.

Nossa lei básica foi fundada na JUSTIÇA e no respeito aos direitos de todos, em alinhamento com as emanações dos Estados Modernos que viabilizaram, por suas normas, o COMBATE À CRIMINALIDADE mediante julgamentos realizados de acordo com a lei.

Nossa carta constitucional também tem um capítulo inteiro dedicado à LIVRE INICIATIVA, à integração entre o capital e o trabalho e ao papel protetor do hipossuficiente e fomentador da atividade econômica do Estado que visa proporcionar um ambiente de oportunidades e respeito à autonomia da vontade e à liberdade de contratar.

Com fé no SER HUMANO e em sua permanente capacidade de evoluir, temos uma carta política que alicerça o presente e acredita no FUTURO e em uma sociedade sem castas ou guetos, onde todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

Por isso, os que acreditam no respeito à liberdade de crença, no ser humano, na família com suas diversas formas de manifestação e na pátria como seio protetor de nossa sociedade, têm a missão de tomar de volta esses símbolos e valores, que são de todos os brasileiros, homens e mulheres de boa-fé, que acreditam em nossa nação e em sua capacidade de superação. O momento é de união dos divergentes para vencer o antagonismo daqueles que pretendem rasgar nossa constituição, retirando de nossos filhos a esperança de viver em uma sociedade inclusiva que tem a consciência de suas imperfeições, mas que mantém a permanente capacidade de levantar, sacodir a poeira e dar a volta por cima.

Com fé em Deus!

Com fé na Pátria!

Com fé na Família!

Com fe no Futuro!

Com fé no Brasileiro!

Neste 30 de outubro, vista-se de verde e amarelo e defenda a democracia com o seu voto.

*É um cidadão brasileiro.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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Estado Democrático de Direito sempre

Por Jean Paul Prates

A democracia brasileira foi uma árdua conquista do nosso povo. Os que já nasceram ou começaram a se entender como gente na vigência do Estado de Direito — no gozo das garantias individuais, do direito à livre associação, manifestação do pensamento e outros elementos tão essenciais à vida quanto o oxigênio — talvez não se deem conta do quanto foi necessário lutar para assegurar esse ambiente para as atuais e futuras gerações.

O Brasil que conhecemos, fundado na rapina colonial e na exploração do trabalho dos cativos, precisou caminhar uma longa estrada para chegar à nossa democracia — ainda jovem, incompleta e imperfeita, mas muito cara e desejada.

Foi preciso perseverar na marcha civilizatória que aboliu a escravatura — e que ainda nos aponta muito chão a percorrer na superação do racismo estrutural. Cotidianamente, lutamos para irrigar os desertos de direitos para as mulheres, indígenas, negros, para a população LGBTQIA+.

Nunca foi de graça. Jamais caiu do céu. Ainda mais que essa caminhada não foi linear, sem tropeços ou obstáculos. Em nossa História, não faltam exemplos de como essa obra de séculos foi obliterada numa virada de noite. E íamos nós reconstruir, retraçar passos, pagando em vidas, em futuros abortados, em felicidades massacradas.

Foi assim com ordem democrática consagrada na Constituição de 1988. Quantas mortes, torturas, prisões e exílios ela nos custou? E, mesmo para os que não estiveram sob a mira das armas, quantos tiveram a vida retorcida pela falta de liberdade? Quantos foram relegados à miséria, à exclusão, ao desgosto de viver nas trevas?

Não é de hoje que vemos nossa democracia ser cotidianamente assaltada. Já sentimos na pele o resultado da sabotagem sanitária, do deboche com os mortos e enlutados, com os desempregados, com os famintos.

Já respiramos o resultado do estímulo à ruína ambiental. Sentimos na carne a dilapidação do patrimônio público, dos serviços essenciais e do futuro contido na educação, na ciência, na cultura, na tecnologia.

Já choramos com a política de extermínio contra nossos povos originários e daqueles que dedicam a vida a ser seus aliados. Estamos revirados de dor pelas vítimas diárias do genocídio da juventude negra. Contraídos de horror frente fome, à covardia dos feminicídios, do massacre movido a homofobia, do martírio do povo pobre.

Agora, quem está sob a mira desse mesmo projeto de infelicidade e extermínio são as eleições livres — um indicador, que não é o único, da democracia que tanto agasta esse governo das trevas.

Congratulo-me, portanto, com a iniciativa de organizadores e signatários desta nova Carta às Brasileiras e Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito. Sinto-me representado e acolhido na resolução de milhares de cidadãos e cidadãs que levantam a voz para dizer “alto, lá” a delírios golpistas.

O documento, subscrito por ex-ministros da Justiça, ex-ministros do STF, centenas de professores universitários, de membros da magistratura, dos tribunais de contas, do Ministério Público, por artistas, personalidades das mais diversas áreas, membros da Defensoria Pública, jornalistas e cidadãos das mais diversas áreas, mostra que o esforço da nossa caminhada civilizatória não foi esquecido ou negligenciado.

É verdade, como diz a Carta, que atravessamos “momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições”. Essas ameaças são um sintoma agudo de uma doença que já nos fustiga desde a ruptura da institucionalidade perpetrada no golpe de 2016.

Mas também é verdade que a vasta maioria da nossa sociedade quer ir em frente e retomar a trilha da esperança. Independente de colorações políticas, temos em comum a caminhada democrática.

“No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições”, alertam os signatários da Carta.

Nosso País — desigual, contraditório e tantas vezes injusto — quer ver vicejarem o futuro, a solidariedade, os direitos e oportunidades para todos. A liberdade que só pode existir à luz do sol e da democracia. As trevas nunca foram a vocação da nossa gente.

*É senador pelo PT/RN e líder da minoria no Senado.

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Depressão cívica: sofrimento psíquico por agressão à democracia

Por Eduardo Guerreiro Losso*

I- Cuidado

No final do discurso de lançamento de sua chapa de candidatura à presidência, Lula resumiu as inquietações atuais de seu eleitorado: “Chega de ameaças, chega de suspeições absurdas, chega de chantagens verbais, chega de tensões artificiais”. A enunciação do basta! se segue à constatação de uma necessidade: “o país precisa de calma e tranquilidade”, isto é, “é preciso mais do que governar – é preciso cuidar”, “e nós vamos outra vez cuidar com muito carinho do Brasil e do povo brasileiro”.

Por trás desse comprometimento não só com a tarefa de governar, mas com a dimensão zelosa que a acompanha, Lula captou algo mais do que o anseio por mudança social: percebeu o quanto que a balbúrdia do governo atual fomentou um ambiente público bélico, aflito, alvoroçado.

Por trás desse tormento coletivo mais visível, é indispensável entender como ele ocorre na própria formação da subjetividade neoliberal. No Brasil, Maria Rita Kehl e Christian Dunker são os que mais têm avançado nesse campo. Em contraposição à formação da hipótese repressiva, que Foucault desenvolveu a respeito de Freud, em que as patologias neuróticas respondem à imposição social patriarcal da lei e do regime disciplinar, Dunker lança uma hipótese depressiva na idade neoliberal, em que o indivíduo, diante do imperativo de produtividade e sucesso empresarial, sucumbe num fracasso improdutivo.

O que proponho aqui é especificar mais o escopo movido pela própria atualização. Frei Betto mencionou, em 2015, que o Brasil estava passando por uma “depressão cívica”, no momento em que o impeachment nem mesmo havia ocorrido. Essa expressão já tinha sido outrora usada por Benedetto Croce ao enumerar as causas do fascismo italiano. Dunker mesmo lembra que a palavra “depressão” também foi usada no sentido econômico a respeito da queda da bolsa de Nova York de 1929, antes de adquirir o sentido patológico, o que confirma o cruzamento da dimensão social e individual.

Pretendo me ater, nesse sentido, não ao indivíduo depressivo propriamente dito, mas a uma sorte de atmosfera depressiva que paira sobre todos os cidadãos que primam pela normalidade institucional diante de um governo que ataca incessantemente as estruturas do Estado democrático. Essa camada, geralmente mais politizada, tem sentido os golpes incessantes do planalto como agressões a sua cidadania. Não me refiro a toda a sociedade, pois apoiadores do governo não sofrem com essas agressões, ao contrário, participam dela, e os indiferentes não sabem muito bem o que se passa.

II- Nunca sofremos tanto

Por conseguinte, refiro-me, mais especificamente, à depressão cívica que atinge, em geral, uma camada progressista da população, que não necessariamente desenvolve sintomas depressivos individuais, mas participa de uma verdadeira dor coletiva vinda da tortura que é acompanhar o noticiário cotidiano, lidar com os conflitos na família, no trabalho e participar da inquietação das redes sociais. Trata-se de um tormento mental porém não individualizado. É um sofrimento psíquico que incide na fragilidade do brasileiro, agredido pelo bombardeio cotidiano das várias formas de desmonte institucional. Sofremos, portanto, mais como cidadãos e não tanto como sujeitos individuais.

Não se trata de pensar a depressão no âmbito maior do sistema neoliberal como um todo, mas dentro no ramo da alt-right neofascista atual. Tal especificidade se justifica precisamente porque nunca um governo agiu tão perversamente com vistas a fazer o cidadão ciente de seus direitos sofrer e nunca sofremos tanto por causa da agressão incessante de um governo às instituições do Estado de direito. Se há um momento em que de fato se padece de depressão cívica, é de 2018 até hoje, mesmo que o processo tenha se iniciado em 2014.

Geralmente, quando se fala de toda a abundância de investidas contra a democracia, a discussão se dá dentro de um âmbito jurídico, político e administrativo. Pouco se fala do aspecto afetivo e psíquico da questão. Devo asseverar que essa lacuna agrava o problema: quando somente sentimos a dor cívica, mas não nos damos conta da particularidade dela, justamente nesse ponto os agressores atordoam os agredidos. Somente se conseguirmos falar e pensar sobre tal dor é que poderemos elaborá-la e tornar possível algum tipo de reconstrução não somente formal, numa desejada vitória eleitoral, mas afetiva da cidadania.

Para reconhecer as modalidades desse sofrimento, é preciso se perguntar: onde surge essa espécie de dor cívica? Proponho subdividir em três campos do espaço público: a atividade direta do governo, a abordagem da mídia e a movimentação das redes sociais.

III- Normalização do alerta

A atividade pública do governo atual está toda planejada como uma guerra híbrida contra o cidadão comum. Ela se constitui de uma série de informações díspares confusas e desencontradas. Por exemplo, quando ela busca reivindicar “liberdade de expressão” para melhor atacar órgãos de garantia da liberdade de expressão, promove uma naturalização da própria contradição. Ela não para de deslocar discussões sobre decisões políticas para pautas morais; do mesmo modo, vive de avanços e recuos estratégicos na gerência de suas decisões. Os principais personagens do governo fazem o papel de avatares, trolls, que divertem o seus, atemorizam os inimigos e produzem a gamificação da política. Tudo isso leva a um desnorteamento do espaço público. A reincidência dessas mesmas atitudes suscitam raiva ao cidadão, mas terminam por cansá-lo. Quando parece que há alguma reação efetiva de CPI, STF e de outras instituições ameaçadas, o resultado é pífio, o que confirma um estado cada vez mais amargo de desesperança e medo.

Analistas de conjuntura, editoriais e colunistas diversos da mídia repetem os mesmos alertas de gravidade da situação. Há uma estranha contradição em ouvir diversos imperativos de combater as ousadias antidemocráticas e constatar a permanência dos ataques. Evidentemente, vai se sedimentando uma naturalização das agressões e uma litania de repúdio formal dos especialistas. As afirmações absurdas do presidente levam os comentaristas a tratá-lo como se fosse uma criança malcriada, mas essa infantilização é duvidosa. Tudo o que ele diz está estrategicamente ligado ao que depois será repercutido por seus agentes na mídia alternativa e grande parte dessa engenharia informacional é sofisticada e eficaz.

Logo, a simplificação e a transmissão fria e de notícias muito graves cria no sentimento cívico uma normalização da catástrofe e uma suspeita de falsa reação, falsa crítica ao noticiado. O cidadão faz um considerável esforço mental para não aceitar, não participar da normalopatia, para não se tornar indiferente e, no entanto, sua revolta é vã, impotente e miserável. A neutralização afetiva do repórter combina mal com o medo da perda de solo institucional. Se há denúncia das inconstitucionalidades, não há punição. Logo, a impunidade dos agressores naturaliza a desagregação da democracia.  Parece que tudo conspira para a banalização do mal.

IV- Desgosto

Em completo contraste com a neutralidade da mídia oficial, as redes sociais estão cheias de denúncias raivosas, onde o afeto é bruto, sem nenhum filtro. Vituperações pessoais bravateiam histericamente sua indignação e as mesmas postagens contestatórias são compartilhadas. Não demora muito para o sujeito perceber que as redes são incansáveis e cansativas, insaciáveis e enjoativas. Elas contribuem para o retardamento mental, a involução cognitiva, e o cidadão precisa fazer mais um custoso esforço para não cair no emburrecimento. Ele observa nos outros uma alternância maníaco-depressiva que ele mesmo experimenta e vê confirmada sua impotência solitária na impotência compartilhada.

O pior das redes sociais nem se restringe a isso. Elas são concebidas de modo a estimular o ódio, as “tretas”, as polêmicas artificiais que jogam bolhas da esquerda umas contras as outras. O gesto de solidariedade que normalmente deveria ocorrer em situações de compartilhamento de sofrimento é substituído por uma agitação nervosa constante que patenteia o fracasso político da comunicação digital, para a felicidade dos gestores das plataformas. Rapidamente, a depressão cívica leva o cidadão a sentir desgosto por tudo: consenso e dissenso, discordância e concordância, gestos de rejeição e solidariedade. Paira nas redes um abismal mal-estar da comunicação pública.

Diante dessa fadiga, claro que o usuário usufrui de muitos tipos de fuga: diversão de memes, paisagens turísticas coloridas, fotos felizes de amigos, jogos, filmes, séries. Mas ele constata sua incurável superficialidade. Ausentar-se das notícias e das discussões é, sem dúvida, um modo de não contribuir para a naturalização do inaceitável, mas também é mais um sintoma de debilidade.

A convivência diária com as pavorosas notícias, com os bolsominions e com as brigas internas da esquerda aumenta a sensação de medo e aflição, pois tudo indica que não há escapatória: voltamos ao mesmo beco sem saída. A tortura cotidiana se completa: notícias tenebrosas, inércia suspeita da mídia, impunidade dos agressores, agitação desgastante da discussão política nas redes sociais e fugas banais.

Quando Lula disse que é preciso mais do que governar, é preciso cuidar, ele explicitou aquilo que falta na dimensão afetiva do espaço público. Foi isso que não ocorreu satisfatoriamente na pandemia e não está ocorrendo no governo pandêmico. Nem a mídia oficial nem as plataformas das redes parecem interessadas em cuidar de um cidadão fragilizado, ao contrário, elas participam, cada uma a seu modo, indiretamente ou não, de um massacre orquestrado. Em meio à guerra midiática, cultural e política, os progressistas precisam de um verdadeiro cuidado coletivo.

*É professor associado do programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, bolsista produtividade do CNPQ e editor da Revista Terceira Margem.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.