Angela Alonso*
A contar pelo primeiro mês, a rua de 2021 promete. Nem os 16 graus negativos da beira do Ártico, nem a chuva de verão paulistana, nem mesmo a pandemia arrepiou manifestantes. Teve protesto nas democracias ditas sólidas como nas tidas por capengas, em todos os lados do espectro político, a pé, de carro, trator ou caminhão, com bandeiras e com armas.
Desde que o coronavírus começou a dar as cartas, a rua encheu em, ao menos, 23 países. Na pauta, a bola da vez, políticas que enfrentam a doença e as que a negligenciam, e a jogada de costume no século, a contestação ao governante ou às regras do jogo. Daí a ser tudo a mesma coisa vai um precipício.
Putin comparou os atos na sua Rússia à invasão do Congresso dos Estados Unidos. Sempre acusado de autoritário, posou de guardião das instituições. Mas os casos distam as léguas que separam direita e esquerda. Os russos protestam por acharem demais prisão de dissidente antes envenenado, tudo indica, a mando do governo. Demandam um Estado de Direito basiquinho, mais perto de democracia que de regime autocrático. Manifestaram-se aos milhões, foram presos aos milhares.
Do outro lado do Atlântico, ignição oposta. O amálgama de movimentos supremacistas, terraplanistas, armamentistas, anticiência e antivacina, que a internet uniu e Trump não separou, contestou o resultado eleitoral e as instituições democráticas. Isso no país que se vende, desde que nasceu escravista, como a pátria da liberdade.
A tragédia política norte-americana gerou protestos contra o protesto, inclusive de Turquia e Venezuela, que devolveram o “República de bananas”. Muitos caricaturaram os ativistas armados e associaram a violência política ao autoritarismo de direita. Mas não custa lembrar que esta faca corta dos dois lados, como o demonstra a história ocidental recente, povoada por ETA, IRA, Farcs e parentes.
Também vale para qualquer oposição o manejo da rua contra o governo. Desde que o século começou, a senhora das marchas foi pega no contrapé. Movimentos liberais, conservadores e autoritários se tornaram useiros e vezeiros das técnicas de convocar, organizar e conduzir protestos que a esquerda julgava suas por usucapião.
Mas emular é diferente de aproximar. Os protestos antigoverno do fim de semana, em vez de se encavalar, se intercalaram. Duas frentes de movimentos repetiram os estilos de ativismo, as simbologias e os líderes que os separaram em dois cercados na votação do impeachment em 2016. Mesmo uníssonos no “Fora, Bolsonaro”, os atos duplicados esclareceram que a divisão do país em uma coalizão com e outra sem petistas continua valendo. Há tanto apartados em tudo, nem o inimigo comum de agora os agrega.
Menos ainda o sistema político. Simone Tebet esclareceu: falta base parlamentar para desempacar um dos cerca de 60 pedidos para “impichar” o presidente. Para a senadora, um processo só desembestaria com pressão da sociedade. Mas cadê?
A rua está desunida e o presidente segue firme onde mais conta: 58% dos empresários o veem, atesta o último Datafolha, como apto a liderar o país, e 71% se opõem a apeá-lo do governo. Os impeachments de Collor e Dilma se consolidaram quando a nata das elites social e econômica aderiu. E se viabilizou graças a coalizões nas ruas, nas instituições e, sobretudo, entre ambas. Nada disso assoma.
Mas, se despontar, é improvável que Bolsonaro repita a descida pacífica da rampa de Collor e Dilma. O presidente, que já mandou o país à “puta que pariu”, pode bem seguir Putin e mandar bala.
*É professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
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