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A instauração de um estado de polícia

Por Rogério Tadeu Romano*

I – O FATO

Observo o que foi informado pelo portal do jornal O Globo, em 20.10.23:

“A Polícia Federal identificou que o sistema que monitora ilegalmente a localização de pessoas foi usado pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) mais de 30 mil vezes. Desse montante, os investigadores detalharam 1.800 usos relacionados a políticos, jornalistas, advogados e adversários do governo Bolsonaro.

Nesta sexta-feira, a PF deflagrou uma operação que prendeu dois agentes e realiza 25 mandados de busca e apreensão. Como informou a coluna, um dos alvos de busca é Caio Santos Cruz, filho do general da reserva e ex-ministro de Bolsonaro Alberto Carlos Santos Cruz.

Para a PF, os agentes da Abin que operaram esse sistema se aproveitaram de vulnerabilidade criada pela empresa israelense Cognyte, desenvolvedora do FirstMile, na rede de telefonia para rastrear alvos irregularmente, ao invés de denunciá-la.

O sistema foi adquirido na época da intervenção federal da área de segurança do Rio de Janeiro, no governo Temer, sob o argumento de combater o crime organizado. O uso amplo da ferramenta, porém, aconteceu na gestão do delegado Alexandre Ramagem no comando da Abin, no governo Bolsonaro.

A investigação policial mostra que boa parte dos monitoramentos de pessoas aconteceu em Brasília e que aqueles realizados no Rio não tiveram relação direta com alvos do crime organizado.

Segundo a investigação, o uso do FirstMile só pode ser feito pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público com ordem judicial, conforme estabelece a Constituição.

O uso irregular da ferramenta, revelado pelo GLOBO em março, gerou questionamentos internos na Abin e levou à abertura de um procedimento interno para apurar o caso.”

Segundo a investigação, o sistema utilizado pela Abin é um software intrusivo. “A rede de telefonia teria sido invadida reiteradas vezes com a utilização do serviço adquirido com recursos públicos”.

O FirstMile foi usado nos três primeiros anos do governo Jair Bolsonaro (PL) e determinava a localização aproximada de uma pessoa apenas digitando o número do celular. O sistema para vigiar cidadãos permitia rastrear até 10 mil pessoas por ano.

Há indícios de que o sistema era usado para monitorar jornalistas.

Dois servidores da Abin foram presos preventivamente. A investigação da PF aponta que eles tinham conhecimento do uso do sistema pela Abin e praticaram coação indireta para evitar a própria demissão, como afirmou o UOL.

Dois servidores da Abin foram presos preventivamente. A investigação da PF aponta que eles tinham conhecimento do uso do sistema pela Abin e praticaram coação indireta para evitar a própria demissão.

Segundo a investigação, o sistema utilizado pela Abin é um software intrusivo. “A rede de telefonia teria sido invadida reiteradas vezes com a utilização do serviço adquirido com recursos públicos”.

Como informou o portal G1 Politica, em 20.10.23, a Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou no Supremo Tribunal Federal a favor da operação deflagrada nesta sexta-feira (20) para investigar suposto monitoramento ilegal de celulares por parte de servidores da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

O parecer favorável da PGR é assinado pela vice-procuradora-geral da República Ana Borges, com o aval também da atual chefe interina do órgão, Elizeta Ramos. E é uma mudança de posição em relação à gestão anterior, chefiada por Augusto Aras.

Em março, a então vice-PGR Lindôra Araújo havia defendido que a investigação sobre a conduta dos servidores da Abin fosse arquivada.

II – UM ESTADO DE POLÍCIA

O objetivo do governo Bolsonaro era instaurar um estado policial no Brasil, uma antítese ao estado democrático, onde a informação era dado essencial para a convivência e destruição, se fosse o caso, do inimigo interno.

O Estado de Direito é o oposto do Estado de Polícia. É de sua essência, pois, a submissão da atuação do Estado ao direito, do que defluirá a liberdade individual, e o repúdio à instrumentalização da lei e da administração a um propósito autoritário.

Canotilho e Vital Moreira consignaram sobre o princípio: “Afastam-se ideias transpessoais do Estado como instituição ou ordem divina, para se considerar apenas a existência de uma res pública no interesse dos indivíduos. Ponto de partida e de referência é o indivíduo autodeterminado, igual, livre e isolado”.

O Estado de Direito está vinculado, nessa linha de pensar, a uma ordem estatal justa, que compreende o reconhecimento dos direitos individuais, garantia dos direitos adquiridos, independência dos juízes, responsabilidade do governo, prevalência da representação política e participação desta no Poder Legislativo.

Ainda ensinaram Canotilho e Vital Moreira: “O Estado de Direito reduziu-se a um sistema apolítico de defesa e distanciação perante o Estado”. Tornam-se as suas notas marcantes: a repulsa da ideia de o Estado realizar atividades materiais, acentuação da liberdade individual, na qual só a lei podia intervir e o enquadramento da Administração pelo princípio da legalidade.

Há diversos delitos em pauta: o de organização criminosa e outros aqui trazidos à colação.

III – O ARTIGO 154 – A DO CP

A Lei 12.737, de 30 de novembro de 2012, publicada no DOU de 3 de dezembro do mesmo ano, tipificou um novo crime denominado Invasão de Dispositivo Informático, previsto no art. 154-A, do Código Penal, que entrou em vigor após 120 dias de sua publicação oficial, ou seja, em 3 de abril de 2013.

Eis o tipo penal:

Art. 154-A. Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita: (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012) Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012)

  • 1º Na mesma pena incorre quem produz, oferece, distribui, vende ou difunde dispositivo ou programa de computador com o intuito de permitir a prática da conduta definida no caput. (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012)
  • 2º Aumenta-se a pena de um sexto a um terço se da invasão resulta prejuízo econômico. (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012)
  • 3º Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido: (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012) Vigência Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012)

  • 4º Na hipótese do § 3o, aumenta-se a pena de um a dois terços se houver divulgação, comercialização ou transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidos. (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012)
  • 5º Aumenta-se a pena de um terço à metade se o crime for praticado contra: (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012)

I – Presidente da República, governadores e prefeitos; (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012) II – Presidente do Supremo Tribunal Federal; (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012) III – Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Assembleia Legislativa de Estado, da Câmara Legislativa do Distrito Federal ou de Câmara Municipal; ou (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012)

IV – dirigente máximo da administração direta e indireta federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal. (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012) Vigência Ação penal (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012)

Art. 154-B. Nos crimes definidos no art. 154-A, somente se procede mediante representação salvo se o crime e cometido contra a administracao pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios ou contra empresas concessionarias de serviços públicos. (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012)

É crime de ação múltipla que envolve os verbos invadir (entrar, tomar conhecimento ou acessar sem permissão) e instalar (baixar, copiar ou salvar sem permissão), tendo como objeto material os dados e informações armazenadas bem como o próprio dispositivo informático da vítima que sofre a invasão ou a instalação de vulnerabilidades. A doutrina entende que é indiferente o fato de o dispositivo estar ou não conectado à rede interna ou externa de computadores (intranet ou internet). Trata-se de tipo misto alternativo, onde o agente responde por crime único se, no mesmo contexto fático, praticar uma ou as duas condutas típicas (invadir e instalar).

Trata-se de crime comum (aquele que pode ser praticado por qualquer pessoa), plurissubsistente (costuma se realizar por meio de vários atos), comissivo (decorre de uma atividade positiva do agente: “invadir”, “instalar”) e, excepcionalmente, comissivo por omissão (quando o resultado deveria ser impedido pelos garantes – art. 13, § 2º, do CP), de forma vinculada (somente pode ser cometido pelos meios de execução descritos no tipo penal) ou de forma livre (pode ser cometido por qualquer meio de execução), conforme o caso, formal (se consuma sem a produção do resultado naturalístico, embora ele possa ocorrer), instantâneo (a consumação não se prolonga no tempo), monossubjetivo (pode ser praticado por um único agente), simples (atinge um único bem jurídico, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada da vítima).

A invasão de dispositivo informático é crime comum, assim, o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, uma vez que o tipo penal não exige nenhuma qualidade especial do agente. Sujeito passivo é a pessoa que pode sofrer dano material ou moral em consequência da indevida obtenção, adulteração ou destruição de dados e informações em razão da invasão de dispositivo informático, ou decorrente da instalação no mesmo de vulnerabilidades para obter vantagem ilícita, seja seu titular ou até mesmo um terceiro.

Invadir é violação indevida do mecanismo de segurança. A instalação pode ser feita para o delito por qualquer meio de execução existente. A invasão se dá em dispositivo alheio e sem autorização de seu possuidor.

O elemento subjetivo é o dolo específico, na vontade consciente de invadir dispositivo alheio.

Consuma-se, portanto, o delito no momento em que o agente invade o dispositivo informático da vítima, mediante violação indevida de mecanismo de segurança, ou instala no mesmo vulnerabilidades, tornando-o facilmente sujeito a violações.

Na mesma pena incorre quem produz, oferece, distribui, vende ou difunde dispositivo ou programa de computador com o intuito de permitir a prática da conduta definida no caput.

Há possibilidade de tentativa.

Tem-se causas de aumento de pena:

  • 2º Aumenta-se a pena de um sexto a um terço se da invasão resulta prejuízo econômico. (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012)
  • 3º Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido: (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012) Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012)
  • 4º Na hipótese do § 3o, aumenta-se a pena de um a dois terços se houver divulgação, comercialização ou transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidos. (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012)

Prejuízo econômico, tal como exposto no parágrafo segundo do artigo 154 – A do CP, é conceito indeterminado, onde avulta perda de valores em dinheiro.

No caso específico citado poderão ser aplicados o parágrafo terceiro (qualificadora) e quarto (causa de aumento de pena):

“Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido: (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012) Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012)”.

“Na hipótese do § 3o, aumenta-se a pena de um a dois terços se houver divulgação, comercialização ou transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidas. (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012)”.

A lei de acesso à informação – Lei 12.527/2011 – prevê o direito de acesso a informações sigilosas e pessoais, desde que sejam observados e respeitados alguns critérios, em razão da classificação de cada informação a ser prestada.

Foi estabelecida classificação quanto a solicitação de informações sigilosas em relação ao grau de sigilo que deverá ser observado o interesse público da informação e utilizado o critério menos restritivo possível, considerados a gravidade do risco ou dano à segurança da sociedade e do Estado bem como o prazo máximo de restrição de acesso ou o evento que defina seu termo final.

Os prazos máximos quanto a classificação e restrição às informações em poder dos órgãos e entidades públicas e a respectiva competência são:

  1. a) Para informações ultrassecretas: Prazo – 25 (vinte e cinco) anos – Competência -Presidente da República, Vice-Presidente da República, Ministros de Estado e autoridades com as mesmas prerrogativas, Comandantes da Marinha, do Exército, da Aeronáutica, e Chefes de Missões Diplomáticas e Consulares permanentes no exterior;

O crime, considerada a pena máxima de dois anos, é crime de menor potencial ofensivo e deve ser objeto de instrução nos Juizados Especiais Criminais. No caso do caput cabe o sursis processual na forma da Lei 9.099/95.

Há várias causas de aumento da pena que são traçadas no parágrafo quinto, nos incisos I a IV, conforme seja a autoridade envolvida.

É crime de ação penal pública condicionada à representação, salvo se o crime é cometido contra a administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios ou contra empresas concessionarias de serviços públicos. (Incluido pela Lei nº 12.737, de 2012). Os conceitos de administração direta e indireta(autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista) são próprias do direito administrativo.

IV – O ARTIGO 10 DA LEI 9.296/96

Fala-se em comunicações telefônicas.

Comunicações telefônicas são quaisquer comunicações feitas através de telefone. Comunicações de informática ou de telemática são comunicações que combinam telecomunicação e dispositivos de informática (p. ex., e-mail).

Chrístiano Falk Fragoso (Os crimes de comunicação indevida de comunicação telefônica, informática ou telemática e de quebra de segredo de justiça) nos ensinou:

“Boa parte da doutrina sustentava, com razão, que o art. 56, L. 4.117/ 1962 já criminalizava a interceptação de conversações telefônicas, certamente se baseando no fato de que uma das modalidades típicas é a de “captar” o “conteúdo( … ) de qualquer telecomunicação dirigida a terceiro”. Mas, antes da edição da Lei 9.296/1996, havia decisões judiciais que, ignorando esse dispositivo, apreciavam a questão somente à luz do art. 151, § 1.º, II, do Código Penal. Em um caso em que o acusado simplesmente instalou, na caixa de telefonia do prédio, um aparelho para gravar conversas telefônicas (sendo preso em flagrante, cerca de um mês depois, no momento em que ia trocar a fita de gravação), o TACrim-SP, em 1988, entendeu de absolver o réu, sob o argumento de que “o crime de violação de comunicação telefônica não se aperfeiçoa se a conversa não for indevidamente divulgada, transmitida a outrem ou utilizada abusivamente”; não se cogitou de apreciar se havia crime tentado. Em outro caso, também julgado em 1988 pelo TACrim-SP, ignora-se o art. 56, L. 4.117 /1962 e decide-se que ” a interceptação telefonica, para a caracterização do crime do art. 151, º 1. º,II, do CP (violação de comunicação telefônica), pressupõe que de algum modo tenha havido difusão, para terceiro, da matéria conhecida clandestinamente (gravada), eis que o simples ato de interceptar conversação telefônica, por si mesmo, não caracteriza crime algum perante o Código Penal”

A Constituição Federal de 1988 veio permitir a violação de sigilo de comunicações telefônicas (e, para a maioria da doutrina e da jurisprudência, também de dados), em dispositivo inédito, com o seguinte teor: “Art. 5º (. . .) XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Com a dicção da nova Constituição, passou-se a discutir se, para a determinação judicial de interceptações telefônicas, seria, ou não, necessária a edição de nova lei para regulamentar o dispositivo constitucional, prevalecendo o entendimento no sentido afirmativo. Durante os anos subsequentes, os tribunais concederam sistematicamente, salvo exceções, ordens de habeas corpus para anular a prova colhida por interceptações telefônicas determinadas por juízes. Neste contexto, surge, em 1996, a Lei 9.296, que regulamenta o uso da telefônica como prova para investigação criminal e instrução processual penal e criminaliza, no art. 10, a conduta de “realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo de justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.”

Estamos diante de uma norma constitucional de eficácia contida.

A interceptação telefônica somente poderá ser efetuada no Brasil mediante expressa autorização judicial, sempre a pedido, seja da autoridade policial ou do Ministério Público. Fora disso há crime.

A Lei 9.296/96 descreve as hipóteses e as formalidades necessárias para a concessão judicial da quebra de sigilo. O pedido de intercepção deve tramitar em segredo de justiça e não é admitido se não houver indícios mínimos de autoria, se a prova puder ser feita por outros meios ou se o fato investigado for punível com detenção (crimes mais leves).

Em seu artigo 10, a lei prevê expressamente que a conduta de quebrar sigilo ou interceptar comunicações telefônicas, informáticas ou telemáticas, ou quebrar segredo da justiça, sem autorização judicial, é crime.

As penas previstas são de 2 a 4 anos e multa.

A ação penal é pública incondicionada. Porém há possibilidade de oferta pelo Ministério Pública de acordo de não persecução penal se for o caso.

Tem-se, outrossim, o artigo 10 – A daquele diploma legal:

Art. 10-A. Realizar captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos para investigação ou instrução criminal sem autorização judicial, quando esta for exigida: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

  • 1º Não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
  • 2º A pena será aplicada em dobro ao funcionário público que descumprir determinação de sigilo das investigações que envolvam a captação ambiental ou revelar o conteúdo das gravações enquanto mantido o sigilo judicial. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Ainda nos disse Christiano Falk Fragoso, naquela obra.

“No que toca à primeira modalidade (“realizar interceptação sem autorização judicial”), o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa. É, portanto, un1 crime comum. Quanto à segunda modalidade (“realizar interceptação com objetivos não autorizados em lei”), também estamos diante de um crime comum. No caso, a interceptação é realizada com autorização judicial (mas visa objetivos não autorizados em lei), o que não significa que somente o juiz ou o executor material da interceptação possa ser sujeito ativo. É possível vislumbrar a hipótese em que alguém é o sujeito ativo do crime (autor mediato) por ter induzido o juiz em erro (p.ex., o membro do Ministério Público, a autoridade policial ou a vítima do crime. Em ambas as modalidades, os sujeitos passivos são as pessoas cujas conversas foram indevidamente interceptadas. O fato de alguém ser titular de uma linha telefônica , ou de um terminal informático, não o torna vítima do delito, devendo haver captação indevida de manifestações feitas por essa pessoa.”

…..

Interceptar comunicação consiste em captar, sem conhecimento dos comunicadores, o teor de comunicação alheia no momento em que é feita, dele tomando conhecimento indevido. Como bem diz Cabette, a ingerência em comunicações alheias é ínsita ao conceito de interceptação. É importante notar que captar, aqui, não tem o sentido de gravar (ou, de outro modo, registrar, por algum meio, o conteúdo de uma comunicação), mas, sim, o de tomar conhecimento. Gomes/Maciel dizem textualmente que interceptar uma comunicação telefônica, em sentido idiomático, seria “interrompê-la, detê-la ou cortá-la”, mas que “na lei a expressão tem outro sentido, qual seja o de captar a comunicação telefônica, tomar conhecimento, ter contato com o conteúdo dessa comunicação enquanto ela está acontecendo. (. . .) Interceptar comunicação telefônica, assim, é ter conhecimento de unia comunicação alheia”. Interceptar, portanto, não é meramente gravar a comunicação alheia, mas sim, nela se imiscuindo no momento em que ocorre, tomar conhecimento indevido de seu teor. Aliás, o crime sequer exige que a conversa seja gravada; a gravação é, tão somente, prova de corpo de delito do crime (provavelmente, a melhor prova), mas não é o crime em si. Assim, pode eventualmente haver crime se alguém, indevida, intencionalmente e por tempo relevante, fica a ouvir conversa alheia na extensão telefônica, mesmo que não grave essa conversa.

O crime se consuma quando alguém, alheio aos comunicadores, toma conhecimento do teor da comunicação, o que pode ocorrer no mesmo momento da gravação ou registro, ou em momento posterior. Portanto, se o agente usa dispositivo para gravar a comunicação privada, que, todavia, está criptografada, não lhe sendo possível tomar conhecimento do conteúdo da comunicação (i.e., captá-lo), não se consuma o crime; somente se pode perquirir quanto a possível punição por crime tentado, se não for hipótese de crime impossível (art. 1 7, CP) .”

Vicente Greco Filho entende possível a tentativa se o agente é interrompido no ato de implantar o instrumento para interceptação.

Para que haja o crime não é necessário que o receptor da mensagem seja impedido de tomar conhecimento do teor da mensagem emitida. Ou seja, não é necessário que a interceptação interrompa o curso da mensagem, embora isto também possa ocorrer, aderindo maior dano ao crime.

Na primeira modalidade, só há crime se a interceptação é feita “sem autorização judicial”. Se ela existe, não há tipicidade. A autorização judicial deve existir ao tempo do início da execução de procedimentos técnicos para a gravação, o registro ou a captação direta, não podendo ser suprida posteriormente pelo juiz, mesmo que antes de se tomar conhecimento do teor das comunicações privadas.

Na segunda modalidade, o crime se configura se a interceptação é realizada “com objetivos não autorizados em lei”. Como se sabe, a intercepção de comunicações telefônica, em sistemas de informática ou de telemática só podem ser feitas “para fins de i1westígaçào criminal ou instrução processual penal” (art. 5º , XII, CF), o que é praticamente repetido pelo art. 1.º da Lei nº 9 .296/l 996:”para prova em criminal ou em instrução processual penal”.

O elemento subjetivo é o dolo.

Há ainda o crime de quebra de segredo de justiça (art. 10 in fine) que se se refere à indevida revelação da existência de procedimento cautelar de interceptação de comunicações (antes ou durante a diligência de obtenção da prova) ou à indevida revelação do ·conteúdo das comunicações sigilosas (durante ou após tal diligência).

Trata-se de crime próprio.

O crime se consuma no momento em que o agente revela a um terceiro qualquer, que não vinculado ao dever de manter o segredo de Justiça, a existência do procedimento cautelar de interceptação de comunicações (isto, antes ou durante as interceptações ou o teor das próprias comunicações (isto, durante ou após as interceptações). A tentativa é possível, na forma escrita.

O elemento subjetivo é o dolo.

A competência para instruir e julgar o feito é da justiça onde o feito tramita.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Jean devolve presente enviado pela Arábia Saudita

Luiz Vassalo

Portal Metrópoles

São Paulo — Em meio a investigações sobre o escândalo das joias recebidas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, recusou um presente do governo da Arábia Saudita.

Trata-se de uma estatueta no formato de um antílope. O mimo foi devolvido no início de agosto ao ministro de Investimentos da Arábia Saudita, Khalid Al-Falih, que foi presidente da estatal petrolífera Aramco e chefe do Ministério de Energia, Indústria e Recursos Minerais de seu país.

A devolução se deu por meio da embaixada árabe no Brasil, segundo consta em uma planilha de presentes tornada pública mensalmente pela Petrobras.

Questionado pelo Metrópoles, Prates não deu detalhes nem forneceu imagem da estatueta ou sobre o motivo que levou a devolver a estatueta. Também não há valor estimado para o presente devolvido.

Esta não é a primeira vez que um integrante do governo devolve um presente ao governo saudita. Uma estátua de ouro com formato de onça foi devolvida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), em julho, por recomendação da Receita Federal.

Na mesma ocasião, o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), Geraldo Alckmin, devolveu um escultura de um dromedário recebida de uma comitiva da Arábia Saudita em São Paulo.

Presentes da ditadura saudita levaram a Polícia Federal (PF) a fechar o cerco sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro, sob suspeita de desviar e vender joias no exterior.

Na última semana, seu ex-ajudante de ordens, coronel Mauro Cid, fechou acordo de delação premiada com a PF, homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no qual teria dito que entregou nas mãos de Bolsonaro dinheiro obtido com a venda de dois relógios dados por governos estrangeiros.

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Crime de posse de maconha para uso pessoal: a tutela da saúde pública como justificativa para o racismo

Por Gláucio Tavares Costa e José Herval Sampaio Júnior*

O preconceito, que é tão somente um juízo preconcebido fruto da ignorância, engana e a vaidade petrifica a ignorância. Esse prólogo é essencial para tratarmos da maconha e sua proibição, bem como refletirmos na mesma toada sobre a possível descriminalização das demais drogas em debate no Supremo Tribunal Federal (STF).

A descriminalização da maconha e até mesmo outras drogas, voltou à pauta das discussões, eis que o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou, em 02/08/2023, o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635659, com repercussão geral (Tema 506), sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio.

A ação analisa um recurso de repercussão geral da Defensoria Pública de São Paulo que contesta a punição, em face da condenação de um homem por portar 3 gramas de maconha. O órgão defende que a lei de drogas é inconstitucional, pois fere o direito à liberdade individual, já que “o réu não apresenta conduta que afronte à saúde pública, apenas à saúde do próprio usuário”.

I – Interpretações das normas de criminalização do uso e tráfico de drogas

Pois bem. O artigo 28 da Lei de Drogas, a Lei n° 11.343/2006, abriga a norma de criminalização do uso de todas as drogas relacionadas na Portaria n° 344/1998 do Ministério da Saúde, a denominada norma penal em branco heterônima, que complementa o tipo penal, especificando as substâncias proibidas, arrolando nesta categoria a maconha.

A norma penal do artigo 28 da Lei 11.343/2006 preconiza:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II – prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

  • 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
  • 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
  • 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
  • 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
  • 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
  • 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I – admoestação verbal;

II – multa.

  • 7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

O transcrito tipo penal objetiva proteger o bem jurídico, saúde pública, e como se observa deixou de reprimir com prisão o porte de drogas para consumo.

O grande dilema enfrentado no Recurso Extraordinário n° 635659 é que a Lei de Drogas não fixou critérios objetivos para diferenciar consumo próprio de tráfico ilícito de drogas, o que vem ocasionando interpretações distintas da norma incriminadora pelos agentes do sistema de persecução penal (Polícia, Ministério Público e Judiciário), causando uma patente e injustificada insegurança jurídica, e algumas vezes outras situações ilícitas em decorrência dessa indefinição.

Conforme a atual regulamentação, quando os agentes da persecução penal constatam alguém na posse de pequena quantidade de drogas, podem entender que é posse para uso de drogas, o que implica na aplicação da norma supra, muito menos rigorosa do que a norma penal do art. 33 da Lei de Drogas, que tipifica o crime de tráfico ilícito de drogas, com pena privativa de liberdade de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. Diversamente, se os agentes da persecução penal compreenderem, diante da mesma quantidade de drogas, que é tráfico, o investigado ordinariamente é submetido a prisão.

A discricionariedade conferida aos agentes do Estado em considerar, a depender da quantidade de drogas na posse da pessoa investigada, se é posse de drogas para uso ou tráfico tem gerado aplicações díspares das normas, ensejando a prisão ou não a depender da cor da pele do investigado, de sua classe social etc., pelo que urge a execução isonômica da lei e da forma mais objetiva possível. Assinale-se aqui a denominada seletividade social ao punir, posto que as abordagens policiais acontecem na imensa maioria nas comunidades e bairros de baixa renda, não podendo mais se ignorar essa triste realidade.

No julgamento do RE n° 635659, os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin entenderam que o art. 28 da Lei n° 11.343/2006 é inconstitucional exclusivamente em relação à maconha, enquanto o Ministro Alexandre de Moraes propôs a fixação de um critério nacional, exclusivamente em relação à maconha, para diferenciar usuários de traficantes, arrematando que: “O STF tem o dever de exigir que a lei seja aplicada identicamente a todos, independentemente de etnia, classe social, renda ou idade.” Se pretende que todas as pessoas investigadas tenham o tratamento atual dado aos homens brancos, maiores de 30 anos e com nível superior, consoante se esboça na decisão proferida em 02/08/2023.

Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), se o limite proposto por Barroso e por Moraes for adotado, 31% dos processos por tráfico de drogas em que houve apreensão de maconha poderiam, em tese, ser reclassificados como porte pessoal em nosso País. Outros 27% dos condenados nesses mesmos termos poderiam ter os julgamentos revistos por estarem dentro do parâmetro (Martins, 2023).

O julgamento do Recurso Extraordinário n° 635659 foi adiado a pedido do ministro Gilmar Mendes para construir uma solução consensual.

É importante nos tópicos adiante tratamos de particularidades sobre a maconha para somente voltarmos a abordar o uso da maconha perante o Direito Penal.

II – A maconha e sua proibição

A maconha apesar de ser consumida há milênios para fins recreacionais e medicinais em todo o mundo, somente há dois séculos teve início a sua proibição em vários países. A sua prevalência de uso fica somente atrás do consumo de álcool e de cigarros, constituindo-se assim na droga ilícita mais utilizada no mundo (Crippa et al, 2005).

No Brasil, a cannabis foi introduzida pelos colonizadores portugueses, no início de 1800. A sua intenção pode ter sido para cultivar a fibra do cânhamo, mas os escravos sequestrados da África estavam familiarizados com o consumo de cannabis e uso psicoativo

Noutra referência, Martins (2023) assinala, entretanto, que segundo o Ministério de Relações Exteriores do Brasil, a planta foi trazida escondida pela população negra escravizada em 1549 e era usada em práticas religiosas e terapêuticas. O país foi o primeiro a criminalizar o uso da maconha com a Lei de Posturas, criada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 1830, que penalizava “escravizados e outras pessoas” que fumassem o “pito do pango” com três dias de cadeia e chicotadas.

Nos Estados Unidos, em 1937, a administração de F.D. Roosevelt implementou o Marihuana Tax Act of 1937, a primeira lei nacional dos Estados Unidos que proibiu a posse de cannabis através de um imposto impagável sobre a droga.

O termo maconha (em castelhano: marijuana) está associado quase que exclusivamente ao uso psicoativo da planta. A alcunha marijuana é bem conhecida nos EUA, o empenho das autoridades norte-americanas durante os anos 1920 e 1930 em proibir o uso da droga estava imbuída de associá-la aos mexicanos.

O próprio México já havia proibido a planta em 1925, na sequência da Convenção Internacional do Ópio. Os proibicionistas americanos usaram deliberadamente o nome mexicano da marijuana com o objetivo de convencer a população dos Estados Unidos contra a ideia de que a planta deveria ser legal, dando ênfase a aspectos negativos associados a nacionalidade mexicana.

 Aqueles que “demonizaram” a droga, chamando-a de maconha, omitiram o fato de que a chamada “maconha mortal” era idêntica a cannabis sativa, que tinha na época uma reputação de segurança farmacêutica. No entanto, devido a variações na potência das preparações, a cannabis já havia perdido, na década de 1930, a maior parte de sua antiga popularidade como medicamento.

III – Efeitos da cannabis no corpo humano

A cannabis pode produzir vários efeitos subjetivos em humanos: euforia, disforia, sedação, alteração da percepção do tempo, aumento da interferência na atenção seletiva e no tempo de reação, alteração nas funções sensoriais, prejuízo do controle motor, do aprendizado e prejuízo transitório na memória de curto prazo, além de efeitos neurovegetativos como boca seca, taquicardia e hipotensão postural. Efeitos adversos incluem crises de ansiedade, ataques de pânico e exacerbação de sintomas psicóticos existentes (Crippa et al, 2005).

A planta cannabis sativa possui mais de 400 componentes, sendo que aproximadamente 60 deles são componentes canabinóides. O principal constituinte psicoativo da cannabis é o D9-tetrahidrocanabinol (D9-THC), isolado pela primeira vez na década de 60. Sua influência no cérebro é complexa, dose-dependente e parece ser o componente responsável pela indução de sintomas psicóticos em sujeitos vulneráveis, o que é compatível com o efeito de aumentar o efluxo pré-sináptico de dopamina no córtex pré-frontal medial.

Nos últimos anos, ocorreu um aumento de interesse acerca do uso terapêutico do D9-THC, tendo sido demonstradas diversas utilidades clínicas, como, por exemplo, para o tratamento da dor, náusea e vômito causados por quimioterapia, perda de apetite em pacientes com AIDS, distúrbios do movimento, glaucoma e doenças cardiovasculares.

O THC atua como relaxante muscular e anti-inflamatório. Dentre os benefícios, produz efeito anticonvulsivo, anti-inflamatório, antidepressivo e anti-hipertensivo. Além de ser usado também como analgésico e no tratamento para aumentar o apetite.

Não se desconhece, a propósito, que a maconha causa efeitos tóxicos se consumida com frequência por vontade ou por diversão e para alguns acaba sendo até porta-de-entrada de outras drogas mais cruéis, no entanto não devemos fazer uma omissão do seu efeito terapêutico, que para muitos pacientes acaba sendo essencial na luta contra doenças que podem levar a óbito (Gonçalves, G. A. M. e Schlichting, C. L. R., 2014).

Comparada ao consumo de outras substâncias, o uso da maconha apresenta efeitos deletérios à saúde humana bem menores do que, por exemplo, o cigarro ou o açúcar. Paul van der Velpen, chefe do serviço de saúde de Amsterdã, na Holanda, alerta que: “açúcar é a droga mais perigosa do nosso tempo.”

Greco (2015) no informa que, segundo o estudo científico “Avaliação comparativa de risco de álcool, tabaco, maconha e outras drogas ilícitas usando a abordagem de margem de exposição”, publicado na Revista Scientific Reports em 2015, comparou os efeitos de sete drogas recreativas nos seres humanos e concluiu que a maconha é a menos mortal delas. O álcool foi considerado a mais mortal, seguido por heroína, cocaína, tabaco, ecstasy, metanfetaminas e, finalmente, maconha, que foi classificada como tendo “baixo risco de mortalidade.” Os responsáveis pelo estudo são Dirk Lachenmeier, PhD em química de alimentos e toxicologia da universidade alemã de Karlsruhe; e Jürgen Rehm, diretor do Centro de Saúde Mental e Vícios de Toronto, no Canadá.

IV – A discriminação racial como fator preponderante para a proibição da maconha

 

Apesar de a maconha apresentar menores danos à saúde pública se comparada a outras substâncias de uso permitido, a origem dos seus usuários observada no Século XIX: negros no Brasil e negros e mexicanos nos EUA, nos parece que foi fator preponderante para a proibição e mais tarde da criminalização do uso da maconha.

Pode-se inferir que a proibição da cannabis teve por escopo afirmar valores da classe dominante em detrimento ao uso da maconha por escravos e imigrantes nas Américas, especialmente nos EUA, onde, após a Lei de Emancipação dos Escravos de 1863 e derrota dos estados sulistas na Guerra de Secessão em 1865, o racismo ganhou nos estados do Sul um novo ingrediente: o ressentimento pela derrota na guerra.

É possível cogitar também que a maconha por ser uma droga natural, de fácil cultivo, que apresenta significativos efeitos terapêuticos deveras afastavam potenciais consumidores da indústria farmacêutica, de forma que a proibição da maconha se encontrava aliada aos interesses deste segmento econômico. Certamente, uma eventual coligação entre o preconceito racial e os interesses da indústria farmacêutica não pode ser descartada no estudo dos motivos da proibição da cannabis sativa.

Boiteux, Luciana (2019) avalia que a política proibicionista de drogas se sustenta numa lógica internacional baseada em convenções que indicam a criação de tipos penais envolvendo drogas, sob influência norte-americana. Nos Estados Unidos, a construção da proibição teve como base a ideia de reprovação moral a pessoas que faziam uso de algumas substâncias, estando a criminalização associada a específicos grupos raciais e sociais minoritários e discriminados como ferramenta de controle social dos indesejáveis e de gestão da miséria. Posteriormente, a política se radicalizou com a ideia construída de uma “guerra às drogas”, que durante muito tempo justificou a intervenção norte-americana no mundo, além de legitimar guerras internas nos países que a declararam, como no Brasil, agregar valor a determinadas mercadorias e fazer muita gente lucrar com esse mercado ilícito e violento.

No artigo “A proibição como estratégia racista de controle social e a guerra às drogas”, Boitex arremata que “a guerra às drogas é uma guerra contra pessoas, mas não contra todas, é uma guerra contra negros e negras, para os quais a única política social disponível é a política penal e a violência de Estado.”

V – A ausência da tipicidade material da conduta de posse de pequena quantidade de maconha para uso

Consoante no primeiro capítulo mencionado, o tipo penal descrito no art. 28 da Lei de Drogas visa proteger o bem jurídico de saúde pública. No entanto, nos parece que a criminalização da maconha para proteger a saúde pública é tão somente uma justificação retórica que guarda às ocultas consigo a discriminação racial que ensejou a proibição da droga outrora.

Cabe esclarecer que a substância Tetraidrocanabinol integra a Lista F-2 de substâncias psicotrópicas da Portaria n° 344/1998 do Ministério da Saúde e que o tipo penal do art. 28 da Lei de Drogas é aplicável ao uso de qualquer substância que se encontra relacionada na denominada norma penal em branco.

Em que pese a norma incriminadora referida, tem-se que as condutas descritas no art. 28 da Lei n° 11.343, quais sejam, de adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, pequena quantidade de maconha não apresentam tipicidade material, não configurando a prática de crimes, eis que abrangidas pelo denominado Princípio da Insignificância.

Isto porque, não há relevância penal na conduta do uso de pequena quantidade de maconha, posto que não tem aptidão para lesionar a saúde pública nem qualquer outro bem jurídico relevante. Na verdade, a criminalização de tal conduta é que representa lesão ao Direito, na medida que vilipendia bens jurídicos constitucionalmente consagrados, qual sejam: a intimidade e a vida privada, que alfim e ao cabo materializam o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República brasileira.

Nessa linha de ideia, assevera Cardinali (2014) que a norma penal do art. 28 da Lei n° 11.343/2006 em relação a ínfima quantidade de maconha “ressente-se da ausência de suporte constitucional, porque se insere na esfera da vida íntima e privada do usuário, direito constitucionalmente garantido no inciso X do artigo 5º da nossa Constituição Republicana de 1988, como consectário do próprio princípio fundamental da dignidade da pessoa humana expressamente inserido logo no seu art. 1º, como se vê do seu inciso III.”

Com efeito, a conduta de uso de pequena quantidade de maconha para uso próprio, em que pese se enquadrar nos elementos descritivos do tipo penal do art. 28 da Lei n° 11.343/2006, enquadrando-se formalmente ao preceito primário penal, não o faz na dimensão material da tipicidade penal, na medida em que não agride ao bem jurídico de saúde pública, sendo, portanto, insignificante do ponto de vista do Direito Penal.

VI – Conclusão

Se a título de proteger a saúde pública, o Direito Penal fosse invocado para proibir substâncias prejudiciais à saúde humana, certamente se proibiria primeiro o cigarro, depois o açúcar, o álcool, entre tantos outros produtos comprovadamente mais deletérios à saúde humana do que a cannabis, cuja ofensividade é diminuta, se comparada às substâncias tóxicas toleradas pelo Direito, como o herbicida Glifosato, que é o agrotóxico mais utilizado no Brasil, cuja ingestão está associada a provável causa de câncer.

Comporta pontuar que nos parece meramente simbólica apelar pela proteção da saúde pública para justificar a proibição do uso da maconha, para tão somente escamotear o preconceito racial que de fato, como supra detalhado, foi o ventre do proibicionismo da maconha e da criminalização sem bem jurídico efetivo a proteger.

Nesse contexto, cabe ao Supremo Tribunal Federal avançar em sua análise Recurso Extraordinário n° 635659 e perscrutar a (in)constitucionalidade da norma do art. 28 da Lei n° 11.343/2006 em face da conduta da posse de pequena quantidade de maconha para uso legisferada sob o manto do racismo, assegurando, por outro lado, a almejada segurança jurídica e isonomia de tratamento, providências que estão sob a batuta da Justiça e que o STF em assim agindo, mesmo que haja discordâncias por questões ideológicas, cumprirá o seu papel de guardião da Constituição, bem como definirá uma tese jurídica que na prática evitará as escolhas arbitrárias que têm sido feitas por muitas autoridades, e que em cada caso concreto, por diversas circunstâncias, que não cabe nesse artigo, poderiam ser evitadas a partir de uma decisão que leve em consideração as ponderações aqui trazidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. “Açúcar é a droga mais perigosa do nosso tempo”, diz especialista. Terra, 2013. Disponível em: https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/degusta/alimentacao-com-saude/acucar-e-a-droga-mais-perigosa-do-nosso-tempo-diz-especialista,ca0e95201b631410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html. Acesso em: 08 de agosto de 2023;

  1. BRASIL. Sistema Nacional de Política sobre Drogas. Lei n° 11.343/2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm.Acesso em: 07 de agosto de 2023;

  1. Boiteux, Luciana. A proibição como estratégia racista de controle social e a guerra às drogas. Le Monde Diplomatique Brasil, 2019. Disponível em:https://diplomatique.org.br/a-proibicao-como-estrategia-racista-de-controle-social-e-a-guerra-as-drogas/. Acesso em: 14 de agosto de 2023;

  1. Cannabis no Brasil. Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cannabis_no_Brasil#cite_note-22. Acesso em: 07 de agosto de 2023;

  1. Cardinali, C. S. (2014). Juízo de Direito do 4° Juizado Especial Criminal do Rio de Janeiro. Disponível em: <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?GEDID=000497D6414BE1456F2A1958BB597DBF651419C5025E2D41>. Acesso em: 16 de agosto de 2023;

  1. Crippa, Alexandre et al. Efeitos cerebrais da maconha – resultados dos estudos de neuroimagem. Trabalho realizado no Departamento de Neurologia, Psiquiatria e Psicologia Médica, da FMRP-USP. Rev Bras Psiquiatr. 2005;27(1):70-8. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.scielo.br/j/rbp/a/FmxBSz7SQQNBkYVDxQj35SD/?format=pdf. Acesso em: 07 de agosto de 2023;

  1. Entenda o que é o glifosato, o agrotóxico mais vendido do mundo (2019). Associação Brasileira de Saúde Coleitva. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/noticias/movimentos-sociais/entenda-o-que-e-o-glifosato-o-agrotoxico-mais-vendido-do-mundo/40996/. Acesso em: 16 de agosto de 2023;

  1. Lei de Drogas. Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_de_Drogas. Acesso em: 07 de agosto de 2023;

  1. Legislação sobre a cannbis. Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Legisla%C3%A7%C3%A3o_sobre_a_cannabis. Acesso em: 07 de agosto de 2023;

  1. Paiva, Vitor. Maconha é 30 vezes mais poderosa que remédios anti-inflamatórios. Hypeness, 2019. Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2019/07/maconha-e-30-vezes-mais-poderosa-que-remedios-anti-inflamatorios/. Acesso em: 08 de agosto de 2023;

  1. Gonçalves, G. A. M. e Schlichting, C. L. R. (2014). EFEITOS BENÉFICOS E MALÉFICOS DA Cannabis sativa. Revista UNINGÁ Review. Disponível em: <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.mastereditora.com.br/periodico/20141001_084042.pdf>. Acesso em: 07 de agosto de 2023;

  1. Grego, Maurício (2015). Maconha é menos mortal que álcool e tabaco, afirma estudo: Um estudo científico comparou os efeitos de sete drogas recreativas nos seres humanos e concluiu que a maconha é a menos mortal delas. Exame. Disponível em: https://exame.com/ciencia/maconha-e-menos-mortal-que-alcool-e-tabaco-afirma-estudo/. Acesso em: 08 de agosto de 2023;

  1. Martins, André. Maconha legalizada no Brasil? Entenda o julgamento do STF. Exame, 2023. Disponível em: https://exame.com/brasil/maconha-legalizada-no-brasil-entenda-o-julgamento-do-stf/. Acesso em: 07 de agosto de 2023;

  1. Marasciulo, Marília. Entenda por que a maconha foi proibida ao redor do mundo: O consumo da erva remonta há milênios, mas passou a ser condenado apenas há alguns séculos. Revista Galileu, 2019. Disponível em https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2019/07/entenda-por-que-maconha-foi-proibida-ao-redor-do-mundo.html. Acesso em: 07 de agosto de 2023;

  1. Seminário apresenta os benefícios do uso medicinal da cannabis. Agência Fiocruz de Notícias, 2022. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/seminario-apresenta-os-beneficios-do-uso-medicinal-da-cannabis#:~:text=O%20THC%2C%20como%20%C3%A9%20conhecida,tratamento%20para%20aumentar%20o%20apetite.>. Acesso em: 08 de agosto de 2023;

  1. Supremo Tribunal Federal. Ministro Alexandre de Moraes propõe critério para diferenciar usuários de traficantes de maconha. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=511645&ori=1. Acesso em: 07 de agosto de 2023.

*Autores:

Gláucio Tavares Costa é Assessor Jurídico do TJRN, mestrando em Direito pela FUNIBER e graduado em Farmácia pela UFRN.

*Herval Sampaio é juiz de direito e professor da UERN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Uma hipótese de conexão instrumental? 

Por Rogério Tadeu Romano*

I – O FATO

Observo o noticiário da BBC NEWS BRASIL, em 17.8.23:

“O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seu entorno são foco de uma investigação da Polícia Federal (PF) que apura um suposto esquema de negociação ilegal de joias dadas por delegações estrangeiras à Presidência da República.

Segundo a PF, os itens de alto valor foram omitidos do acervo público e vendidos para enriquecer o ex-presidente.

A revista Veja publicou nesta quinta-feira (17/8) que o tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e um dos principais envolvidos no caso, pretende confessar em breve que teria negociado a venda das joias a mando do ex-presidente. Cid está preso.

A intenção de confessar foi revelada à revista pelo advogado de Cid, Cezar Bitencourt, que posteriormente confirmou também a informação ao jornal Folha de S. Paulo e à TV Globo.”

Segundo o que informou o site da Folha, em  13.8.23, o deputado Duarte Jr. (PSB-MA), da base do governo na CPI do 8 de Janeiro, contestou o presidente da comissão, Arthur Maia (União-BA), e afirmou que as investigações sobre o suposto desvio de joias e presentes dados por autoridades de outros países a Jair Bolsonaro (PL) têm conexão com os trabalhos do colegiado.

Segundo artigo 76 do Código de Processo Penal, a competência será determinada pela conexão em três hipóteses: se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas ou em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras; se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas, e quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

Há realmente conexão entre os atos investigados com relação ao 8 de janeiro de 2023, onde se tentou dar um golpe na democracia brasileira, e essa venda de joias noticiada?

II – A CONEXÃO

O Supremo Tribunal Federal entendeu ser competente para instruir e julgar crimes contra a democracia cometidos no Brasil, em 8 de janeiro do corrente ano, e delitos conexos.

Os artigos 76 a 82 do Código de Processo Penal apresentam previsão de normas sobre conexão e continência. Estas não são causas determinantes da fixação de competência, como são o lugar do crime, o domicílio do réu, etc, pois são, em verdade, motivos que determinam a sua alteração, atraindo para a competência de um juízo o crime que seria de competência de outro.

Trago a conclusão de Pazzaglini Filho (Conexão e continência em processo penal, Justitia 72/23 – 52.) para quem motivando a reunião em um processo e consequentemente a unidade de julgamento, a conexão e a continência ¨tem por finalidade a adequação unitária e a reconstrução crítica única das provas a fim de que haja, através de um único quadro de provas mais amplo e completo, melhor conhecimento dos fatos e maior firmeza e justiça nas decisões, evitando-se a discrepância e contradição entre os julgados.”

Aliás, é possível que da existência de um dos crimes conexos dependa a existência do outro (a do crime acessório com relação ao principal), onde uma verdadeira dependência prévia que aconselha a união dos processos.

Essa interligação entre duas ou mais infrações leva a que sejam julgadas pelo mesmo órgão judicial.

O art. 76 do CPP explica, por exemplo, por que todos os casos de atos antidemocráticos foram distribuídos no STF ao ministro Alexandre de Moraes. Ele era o juiz competente, a quem deviam ser encaminhados tais delitos para apreciação.

Por certo, discute-se por que razão o mesmo relator estaria com competência para julgar o chamado caso das “joias”, envolvendo o ex-presidente da República. Estaria ele prevento para tal?

Na lição de Magalhães Noronha (Curso de direito processual penal. São Paulo, Saraiva, 1978, pág. 52), a palavra prevenção vem do verbo prevenire, chegar antes, conhecer antes ou antecipar-se.

Nos termos do RISTF, é o ato da distribuição da causa ou do recurso, e não decisão eventual do Relator sorteado, que o torna prevento para todos os demais processos relacionados por conexão ou continência, como está nítido no art. 69, caput:

“A distribuição da ação ou do recurso gera prevenção para todos os processos a eles vinculados por conexão ou continência.”

Por fim, conforme orientação desta Presidência, a distribuição de ação ou recurso gera prevenção para todos os processos posteriores vinculados por conexão ou continência, e somente não se caracterizará a prevenção, se o relator, sem apreciar pedido de liminar, nem o mérito da causa, negar-lhe seguimento, não conhecer ou julgar prejudicado o pedido, declinar da competência, ou homologar pedido de desistência por decisão transitada em julgado, nos termos do artigo 69, § 2º, do RISTF.

Estudemos as formas de conexão:

Conexão intersubjetiva (artigo 76, I, Código de Processo Penal), onde há infrações penais interligadas que devem ser praticadas por 2 (duas) ou mais pessoas:

Conexão intersubjetiva por simultaneidade: na hipótese, ocorrem várias infrações praticadas ao mesmo tempo por várias pessoas reunidas que não estão de forma prévia acordadas;

Conexão intersubjetiva concursal: ocorre quando várias pessoas, previamente acordadas, praticam várias infrações embora diverso o tempo e o lugar;

Conexão intersubjetiva por reciprocidade: ocorre quando várias infrações são praticadas, por diversas pessoas, umas contra as outras, havendo o que se chama de reciprocidade na violação de vínculo jurídico, algo que se distancia do crime de rixa, crime único.

Conexão objetiva, material, teleológica ou finalística (artigo 76, II, do Código de Processo Penal): ocorre quando uma infração é praticada para facilitar ou ocultar outra, ou para conseguir impunidade ou vantagem;

Conexão instrumental ou probatória (artigo 76, III, do Código de Processo Penal): ocorre quando a prova de uma infração ou de seus elementares influir na prova de outra infração.

A chamada conexão na fase preliminar investigatória nada mais é que uma forma de conexão instrumental, quando se dá a reunião dos inquéritos, na Polícia, com o objetivo de obter a verdade real e a melhor forma de acompanhar a investigação.

Há, sem dúvida, a aplicação da chamada conexão instrumental entre os atos que envolvem a tentativa de golpe de estado, fulcradas no artigo 359 – L, do CP, conduta contra a ordem democrática brasileira, e os crimes de peculato, organização criminosa, e lavagem de dinheiro que envolvem a “venda de joias pertencentes ao patrimônio público brasileiro”.

Essas condutas estão umbilicalmente ligadas? A ideia é seguir o dinheiro para verificar possíveis conexões. Ou seja: a apuração da venda fraudulenta de joias pertencentes ao patrimônio público e sua possível ligação com relação ao financiamento daqueles atos que agrediram a democracia no Brasil.

A prova da infração com relação aos chamados crimes envolvendo às joias poderá influenciar na apuração daqueles crimes cometidos contra o estado democrático de direito.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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A renda mínima e as normas reforçadas

Por Rogério Tadeu Romano*

Informa-nos o Estadão, em seu site de notícias, em 8 de novembro de 2022, que “o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva foi aconselhado a usar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a regulamentação da lei que institui a renda básica para pagar o Auxílio Brasil (que deve voltar a chamar Bolsa Família) de R$ 600 a partir de 2023 sem precisar de a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) ter sido aprovada.

Essa alternativa, discutida entre ministros do STF e o presidente eleito, é a quarta proposta na mesa apresentada à equipe de transição.

Ainda se aduz que, em decisão proferida em 2021, o STF obrigou o governo a pagar uma renda básica da cidadania com base na lei 10.835 de 2004 de autoria do ex-senador Eduardo Suplicy que nunca tinha sido regulamentada. Pela decisão na época, o benefício deveria começar a ser pago a partir de 2022. A ação foi ajuizada pela Defensoria Pública da União no Rio Grande do Sul em nome de um morador de rua. Nenhum dos 11 ministros do Supremo votou contra a regulamentação. O relator do processo foi o ministro do STF Gilmar Mendes.

Refiro-me ao Mandado de Injunção (MI) 7.300, proposto pela Defensoria Pública da União em favor de um cidadão – desempregado, sem moradia e com deficiência intelectual moderada – que alegou carecer dos recursos necessários para a manutenção de uma existência digna. Na ação, a Defensoria pediu que, na falta de regulamentação pelo Executivo federal de programa assistencial previsto na Lei 10.835/2004, o Supremo determinasse o valor da renda básica em um salário-mínimo mensal.

Reconhecendo a omissão na regulamentação da lei, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria de votos, que o Executivo federal deve adotar as medidas legais cabíveis para a implementação do benefício da renda básica de cidadania a partir de 2022, inclusive com a alteração do Plano Plurianual (PPA) e previsão na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2022.

A respeito dessa decisão, vale destacar que quatro ministros do STF defenderam a fixação pelo próprio Supremo do valor do benefício, o que certamente extrapolaria as competências do Judiciário. Além disso, mesmo que o Executivo tome todas as medidas para que o benefício seja pago a partir do ano que vem, a palavra final caberá ao Congresso. O Executivo faz a proposta orçamentária, mas é o Legislativo que aprova a LDO e a LOA.

Agiu certo o Supremo Tribunal Federal em não fixar valor para tal verba. Isso cabe aos Poderes Executivo e Legislativo. Não é tarefa do Poder Judiciário, por evidente afronta ao sistema de freios e contrapesos.

O mandado de injunção é uma garantia constitucional instituída pelo artigo 5º, LXXI, da Constituição Federal, onde se lê: “LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.”

Anotou José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, 5º edição, pág. 386) que o mandado de injunção é um instituto que se originou na Inglaterra, no século XVI, como essencial remédio da equity, nascendo do chamado juízo de equidade.

Sendo assim é considerado um remédio outorgado mediante um juízo de discricionariedade quando falta uma norma legal (statutes), regulando a espécie quando a Common Law não oferece proteção suficiente.

Assentar-se-ia na valoração judicial dos elementos do caso e dos princípios de justiça material segundo uma pauta de valores sociais

Temos que ver a garantia constitucional em foco dentro dos limites de nosso sistema romano-germânico onde a legalidade, a par do princípio da legalidade, é a tônica. Ninguém é obrigado a uma conduta senão em virtude de lei.

Disse o ministro Alexandre de Moraes (Direito constitucional, 2003,p.179): “ O mandado de injunção consiste em uma ação constitucional de caráter civil e de procedimento especial, que visa suprir uma omissão do Poder Público, no intuito de viabilizar o exercício de um direito, uma liberdade ou uma prerrogativa prevista na Constituição Federal”.

O objeto do writ é assegurar o exercício: de qualquer direito constitucional não regulamentado; de liberdade constitucional não regulamentada, sendo de notar que as liberdades são previstas em normas constitucionais normalmente de aplicabilidade imediata, como explica a doutrina; das prerrogativas que são próprias e inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, quando não regulamentadas.

O que é norma regulamentadora?

É ainda José Afonso da Silva que aponta que norma regulamentadora é toda medida para tornar efetiva uma norma constitucional.

Realiza o mandado de injunção, de forma concreta, em favor do impetrante, um direito, liberdade ou prerrogativa, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o seu exercício.

Outorga-se, com o mandado de injunção, diretamente, o direito reclamado independente de uma regulamentação da matéria enfocada na norma constitucional.

Como já decidiu o STF aplica-se o mandado de injunção somente à omissão de regulamentação de norma constitucional, pois não há possibilidade de “ação injuncional, com a finalidade de compelir o Congresso Nacional a colmatar omissões normativas alegadamente existentes na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em ordem a viabilizar a instituição de um sistema articulado de recursos judiciais, destinado a dar concreção ao que prescreve o Artigo 25 do Pacto de S. José da Costa Rica”

O valor a ser implementado pelo governo federal para tal implementação do programa assistencial previsto na Lei 10.835/2004 é questão que tem óbice na reserva do possível.

Falo sobre o fenômeno das chamadas leis reforçadas consoante exposição do ministro Gilmar Mendes.

“Nesse aspecto, as relações estabelecidas entre o texto constitucional e as legislações financeiras amoldam-se com precisão ao chamado fenômeno da Leis Reforçadas, desvendado na doutrina constitucional portuguesa por Carlos Blanco de Morais que, ao se referir à existência de uma relação de ordenação legal pressuposta, implícita ou explicitamente na Constituição, aduz que: “As leis reforçadas pontificam num momento em que os ordenamentos unitários complexos são confrontados com uma irrupção poliédrica de actos legislativos, diferenciados entre si, na forma, na hierarquia, na força e na função, e cujas colisões recíprocas não são isentas de problematicidade quanto à correspondente solução jurídica, à luz dos princípios dogmáticos clássicos da estruturação normativa” (MORAIS, Carlos Blanco de.As leis reforçadas: as leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativos. Coimbra Editora, 1998, p. 21). Ainda em âmbito doutrinário, a propósito, a tese das Leis Reforçadas logrou franco desenvolvimento na obra de J. J. Gomes Canotilho ao explorar justamente a função parametrizadora que as leis de Direito Financeiro exerciam sobre a legislação ordinária do orçamento. Como destacado pelo autor, a contrariedade da atuação do legislador ordinário na edição da lei orçamentaria em relação às leis-quadro que extraem a sua validade da Constituição Federal suscita a inconstitucionalidade indireta da norma. Nesse aspecto, destacam-se as considerações do autor: Se considerarmos a possibilidade de a lei do orçamento poder conter inovações materiais, parece que o problema não será já só o de uma simples aplicação do princípio da legalidade, mas o da relação entre dois actos legislativos e quiordenamentos sob o ponto de vista formal e orgânico. A contrariedade ou desconformidade da lei do orçamento em relação às leis reforçadas, como é a lei de enquadramento do direito financeiro, colocar-nos-ia perante um fenômeno de leis ilegais ou, numa diversa perspectiva, de inconstitucionalidade indireta. (CANOTINHO, J. J. Gomes. A lei do orçamento na teoria da lei. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor. J. J. Teixeira Ribeiro. Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial, 1979, v. II, p. 554).”

E conclui o ministro Gilmar Mendes:

“A partir de uma leitura sistemática dessas normas, tem-se que a efetivação de despesas relacionadas a esses benefícios requer (a) demonstração da origem dos recursos para o seu custeio total; (b) instituição da despasse com a estimativa trienal do seu impacto; (c) demonstração de que o ato normativo não afetará as metas de resultados fiscais e (d) demonstração de que seus efeitos financeiros, nos períodos seguintes serão compensados pelo auto permanente de receita ou pela redução permanente de despesa (LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 8ª Ed. São Paulo, Editora JusPODIVUM, 2019, p. 531). A jurisprudência do STF é uníssona em reconhecer a constitucionalidade dos requisitos de majoração de benefícios de assistência social contemplados nos arts. 17 e 24 da LRF. No julgamento da Medida Cautelar na ADI 2.238, de relatoria do eminente Min. Ilmar Galvão, em que se discutia se as limitações legislativas à majoração de benefícios continuados seriam aplicados ao benefícios de assistência social, o Plenário da Corte concluiu que “as exigências do art. 17, da LRF, são constitucionais, daí não sofrer nenhuma mácula o dispositivo que determina sejam atendidas essas exigências para a criação, majoração ou extensão de benefício ou serviço relativo à seguridade social”. ( ADI 2.238 MC, Rel. Min. Ilmar Galvão, Tribunal Pleno, Dje12.09.2008).”

Não cabe ao Judiciário invadir área própria já escolhida, orçamentariamente, em juízo discricionário, pela Administração, via Legislativo, na formulação do orçamento público.

A partir desse entendimento tem-se que o caminho ainda é a edição de uma proposta de Emenda Constitucional (PEC) objetivando a devida alocação de recursos, mesmo diante dessa decisão do STF. Há a reserva do possível e o caminho é a criação de uma norma reforçada, que viabilize financeiramente e monetariamente o gasto.

Não devemos esquecer que há um limite de teto de gastos constitucional que somente pode ser ultrapassado mediante uma emenda constitucional.

Ela definirá esse quantitativo de valores necessários a adoção de compromissos na área social.

*É procurador da República aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o barreto269@hotmail.com e bruno.269@gmail.com.

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Crônica

Corte Constitucional e Tribunal Supremo

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Na atualidade, muito se fala do nosso Supremo Tribunal Federal, embora os que assim o fazem saibam pouco ou quase nada da real conformação e do funcionamento do dito cujo. É um tribunal badalado – discutido, talvez fosse a palavra mais justa –, sem dúvida.

Mas, deixando de lado as discussões de torcida, uma das coisas mais curiosas acerca do STF é o fato de ser ele, ao mesmo tempo, corte constitucional e tribunal supremo.

Uma corte constitucional é um órgão com feições jurisdicionais, previsto na Constituição, em regra posto à parte do Poder Judiciário, cuja função é analisar/julgar a constitucionalidade de leis e de outros atos dos poderes do Estado, para garantir o devido respeito ao texto constitucional. Fruto do trabalho teórico do austríaco Hans Kelsen (1881-1973), trata-se, nas palavras de Helmut Simon (em “La Jurisdicción Constitucional”, texto constante do “Manual de Derecho Constitucional” organizado por Ernest Benda e publicado pela Marcial Pons Ediciones em 1996), de “uma instância institucionalmente orientada à manutenção e vigência de uma Constituição”. E que, como diz Vitalino Canas (em “Introdução às decisões de provimento do Tribunal Constitucional”, publicação da Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1994), “sejam órgãos específicos de fiscalização da constitucionalidade, ou desempenhem paralelamente outras funções, denominem-se Tribunal Constitucional, Conselho Constitucional, Tribunal de Garantias Constitucionais, Supremo Tribunal Constitucional, Tribunal Superior ou de qualquer outro modo, encontramo-los hoje em todos os continentes”.

Já um tribunal supremo, tomado isoladamente, é o órgão de cúpula, de última instância, de derradeira apelação, do Poder Judiciário de determinado país, destinado a dar a “última palavra” nos diversos conflitos de interesses – cíveis, criminais, administrativos, trabalhistas etc. – surgidos país afora. É algo bastante intuitivo, por sinal, a existência dessa “court of last resort” (como diriam os ingleses), pois toda querela merece ter um fim.

Para exemplificar essa dicotomia Corte Constitucional versus Tribunal Supremo, vejamos o que se dá em alguns países europeus. Portugal tem o seu Tribunal Constitucional, órgão constitucional autônomo que recebe da Lei Fundamental portuguesa tratamento destacado à semelhança do que se dá com a Presidência da República, a Assembleia da República e o Governo. Mas tem também o seu Supremo Tribunal de Justiça, que é a mais alta corte na hierarquia dos órgãos judiciais do país. Ainda na Península Ibérica tem-se o Tribunal Constitucional de España, que foi previsto pela própria Constituição de 1978 como o seu definitivo intérprete. E tem-se o Tribunal Supremo como órgão judicial que se encontra na cúspide do Poder Judiciário espanhol. Mais interessante ainda é o caso da França. Há o Conseil Constitucionnel francês. Mas existem ali duas cortes supremas: o Conseil d’État, a Suprema Corte da Justiça Administrativa francesa; e a Cour de cassation, a Suprema Corte da Justiça Comum francesa. Cada país com a sua mania.

O problema entre nós é: o STF, sob esse aspecto, é um órgão híbrido, uma vez que acumula funções de corte constitucional e de corte suprema. O texto da nossa CF não deixa dúvida quanto a isso. Basta ler alguns trechos: “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República”. Temos já aí jurisdição constitucional clássica, mas também matéria infraconstitucional criminal (aliás, já se diz estar o nosso STF se consolidando como um tribunal penal). Some-se a isso a competência do STF para fins de recurso extraordinário (inciso III do citado art. 102), com forma de dar a “última” palavra no sistema recursal brasileiro.

Bom, há uma explicação para essa conformação híbrida do STF: o seu modelo histórico é a U.S. Supreme Court que, como a mais alta instância judicial americana, detém múltiplas competências, entre elas a de fazer cumprir aquilo que está na Constituição do país.

Por fim, se esse formato peculiar do STF é salutar ou não é algo que devemos discutir cientificamente (e não por achismo de torcidas). Afinal, é para isso que serve a ciência jurídica. Assim como é algo para um Poder Constituinte legítimo decidir manter ou alterar. Afinal, é assim que faz em um Estado Democrático de Direito.

*É Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL.

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