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Menos, por favor

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Estes dias o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento do HC 232.627/DF, no qual se discute a manutenção da chamada “prerrogativa de foro”, nos casos de crimes cometidos no cargo público e em razão dele, mesmo depois que a autoridade tenha deixado a função. Prevaleceu, por 7 x 4, o entendimento do relator, Ministro Gilmar Mendes, pela concessão da ordem, para reconhecer a competência do STF para processar e julgar a ação penal originária, com a fixação da seguinte tese: “A prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício”. Ter-se-á, segundo consta, a aplicação imediata do novo entendimento aos processos em curso, com a ressalva de todos os atos praticados pelo STF e pelos demais Juízos com base na jurisprudência anterior. Por derradeiro, o Ministro Flávio Dino ainda propôs acrescentar à proposta de tese um item II com a seguinte redação: “Em qualquer hipótese de foro por prerrogativa de função, não haverá alteração de competência com a investidura em outro cargo público, ou a sua perda, prevalecendo o foro cabível no momento da instauração da investigação pelo Tribunal competente”.

Bom, não vou entrar no mérito da decisão. Pode até ser o melhor direito. E nós, operadores jurídicos, a aplicaremos devidamente (já me manifesto expressamente nesse sentido).

O problema aqui está em ser essa, nos últimos anos, a enésima mudança de entendimento do STF sobre o tema, sem que, na maioria das vezes, haja alteração do texto constitucional ou na disciplina legal pertinentes.

Com todo respeito ao nosso STF – a quem atribuo um papel fundamental na manutenção do nosso Estado Democrático de Direito, sobretudo nos últimos anos –, essa “constante mudança” (desculpem a contradição em termos) de entendimento na temática causa grave perplexidade (ainda muito discutiremos os detalhes e as nuanças, que serão várias, da novel interpretação), tumulto (começará nos próximos dias um sobe e desce de inquéritos e processos), morosidade (esse sobe e desce causará um prejuízo enorme à celeridade da persecução penal) e impunidade na administração da Justiça (com a extrapolação desarrazoada dos prazos previstos, sabemos que a Justiça, entre nós, tarda e falha).

Um direito estável é salutar para qualquer país. A instabilidade, com regras de direito constantemente reformuladas e aplicadas de maneira diversa, prejudica muito a confiabilidade no sistema. Se, infelizmente, a instabilidade do direito parece já fazer parte da tradição brasileira, sofrendo o nosso sistema jurídico, num grau altíssimo, desse problema, contribuir jurisprudencialmente o nosso STF para isso é inadmissível. Com todo respeito, claro. Ademais, como de há muito aprendi com o saudoso mestre Arruda Alvim (em “Tratado de Direito Processual Civil”, RT, 1990), a partir da sua requerida estabilidade, deveríamos fomentar uma previsibilidade ou certeza (até bem futura) do que é o direito. A atividade jurisdicional, no seu conjunto e a do STF em especial, deve traduzir e, sobretudo, proporcionar essa certeza, para que os operadores do direito e os jurisdicionados, havendo já uma previsão de como as questões a eles relacionadas seriam tratadas judicialmente, possam melhor ordenar seus negócios e suas condutas. E isso sem falar na igualdade (talvez o fundamento derradeiro da Justiça) de tratamento decorrente de um entendimento jurisprudencial devidamente perene. Nada mais justo que casos semelhantes sejam sempre tratados de maneira semelhante; ao revés, nada mais injusto que esses casos (semelhantes) sejam tratados, se foi ontem ou é hoje, de modos diversos.

Dito tudo isso, rogo, para a temática aqui referida e para tantas outras tão importantes para o nosso país: mudanças, menos, por favor!

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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Uma falta de decoro parlamentar e a cassação de mandato

Por Rogério Tadeu Romano*

Observo o que foi dito no portal do jornal O Globo, em 13.3.25:

“Davi Alcolumbre, presidente do Congresso, decidiu pedir a cassação de Gustavo Gayer ao Conselho de Ética da Câmara, além de processá-lo judicialmente e criminalmente pela mensagem que o deputado federal postou no X, antigo Twitter, imaginando um possível “trisal” entre Gleisi Hoffmann, Lindbergh Farias e Davi Alcolumbre.

Na rede social, agora há pouco, Gayer postou: “Me veio a imagem da @Gleisi @lindberghfarias e o @davialcolumbre fazendo um trisal. Que pesadelo”.

Além das vias legais judiciais, o presidente do Congresso vai representar contra o deputado no Conselho de Ética da Câmara.”

Houve falta de decoro parlamentar.

Com a Constituição-cidadã de 1988, após a redemocratização, temos o artigo 53, que, de forma ampla e irrestrita, assim prescrevia:

¨Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos¨

Ao contrário do preceito constitucional anterior, não é necessário que, por ocasião do fato, o congressista se encontre no exercício de suas funções legislativas no momento do evento criminoso ou que a manifestação constitutiva do fato ilícito penal verse sobre matéria parlamentar.

Já entendeu o Supremo Tribunal Federal (RT 648/318.) que mesmo não fazendo a Constituição Federal referência expressa ao exercício das funções legislativas, não se dispensa a existência de nexo entre a manifestação de pensamento do congressista e sua condição.

O Supremo Tribunal Federal entendeu que a garantia da inviolabilidade estava adstrita ao exercício do mandato ou da prática de ato dele decorrente. Opiniões, palavras e votos que se distanciarem das funções parlamentares não serão amparados pelo artigo 53, caput, da Constituição Federal.

Anoto que a inviolabilidade penal parlamentar não pode albergar abusos manifestos. Não foi certamente pensada para abrigar discursos e manifestações escabrosos, desconectados totalmente do interesse público e patentemente ofensivos inclusive ao decoro parlamentar (RT 648, p. 321; STF, Inq. 803-SP, Pleno, Octavio Gallotti, DJU de 13.10.95, p. 34249).

Decoro parlamentar é a conduta individual exemplar que se espera ser adotada pelos políticos, representantes eleitos de sua sociedade.

O decoro parlamentar está descrito no regimento interno de cada casa do Congresso Nacional brasileiro. Na constituição federal brasileira, no artigo 55, parágrafo 1.º diz: “É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas (art. 53) asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”.

Do que ocorreu houve uma verdadeira falta de sensatez, algo que é inadmissível na própria casa do povo, a Câmara dos Deputados, onde estão seus representantes.

Aqueles que mergulham em comportamento desvairado como o narrado devem ser vistos como pessoas que não respeitam a democracia.

A falta de decoro parlamentar pode levar à cassação de mandato parlamentar.

Cassação é a decretação da perda de mandato, por ter o seu titular incorrido em falta funcional definida em lei e punida com esta sanção. Extinção do mandato é o perecimento do mandato pela ocorrência de fato ou ato que torne automaticamente inexistente a investidura eletiva, tal como a morte, a renúncia, por exemplo.

Os casos de cassação de mandato de Parlamentar estão previstos no artigo 55, I, II e VI, que dependem de decisão da Câmara dos Deputados, no caso de Deputado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante a provocação da respectiva Mesa ou de Partido Político representado no Congresso Nacional assegurada a ampla defesa. Aqui a decisão é constitutiva. Será o caso da infração a qualquer das proibições estabelecidas no artigo 54 da Constituição; de procedimento incompatível com o decoro parlamentar e ainda, no caso em estudo, quando sofrer o Deputado Federal condenação criminal em sentença transitada em julgado.

Observo a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. 2, 2/57, 1991, Saraiva), para quem o procedimento previsto reclama provocação da respectiva Mesa, ou de partido político representado no Congresso Nacional. Assim importa em contraditório que assegure ao interessado uma ampla defesa, que redunda em decisão a ser tomada pela casa respectiva, numa votação secreta, que só determina a perda do mandato se a tanto for favorável a maioria absoluta dos integrantes da Câmara. Assim a Casa julga a conduta do interessado, podendo recusar a perda do mandato se entender essa conduta justificada, no caso concreto.

Assim há quem entenda que a cassação do parlamentar é matéria de reserva do Poder Legislativo.

Os casos do artigo 55, III, IV e V, são de simples extinção do mandato, de modo que a declaração pela Mesa da perda deste é meramente declaratória, envolvendo o mero reconhecimento da ocorrência do fato.

Veja-se que a hipótese não é de mera decisão declaratória, mas constitutiva, pois envolve cassação e não simples extinção do mandato, que incide nas hipóteses do Parlamentar deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada; que perder ou tiver suspensos os direitos políticos; quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos na Lei.

O espetáculo travado foi no mínimo indecente.

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

 

 

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Codicismos

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Nos sistemas jurídicos filiados à tradição romano-germânica, tem vigorado o primado da lei, fonte quase que exclusiva do direito. E, mais do que isso, a partir do século XVIII, ocorre na Europa um movimento codificador, que encontrou o seu ápice no Código Napoleônico, precursor das muitas codificações modernas, granjeando o aplauso tanto de legisladores como de estudiosos do direito, da época e de hoje.

Houve até um tempo de um tipo de “codicismo”, digamos, hiperinflacionado. Nos albores da vigência do Código Napoleônico, sob o domínio da Escola da Exegese, a lei era aplicada exatamente como ela estava escrita, sem fazer “interpretações”, mesmo que fossem necessárias. Para os defensores desse tipo de “codicismo”, não havia um só caso concreto que não fosse previsto no Código. Nenhuma hermenêutica, ainda mais quando externa ao texto codificado, era minimamente permitida. Dogmatismo legal à décima potência.

Argumentos em prol da supremacia da codificação das leis são fáceis de colecionar. Anota Felix M. Calvo Vidal (em “La Jurisprudencia: fuente del Derecho?”, Editora Lex Nova, 1992) que os “critérios de segurança, de permanência, de estabilidade aparecem sempre como proeminentes. Para a doutrina, a codificação apresenta uma série de vantagens que não se dão em outros casos em que o direito não haja sido condensado em normas legais harmonizadas e organizadas”. E, citando boa doutrina, arremata: “se o Código supõe uma facilidade para o teórico, não é esta menor para o prático, que sabe com relativa facilidade onde buscar com segurança as leis com as quais vai resolver um caso determinado”.

Todavia, o sistema que prega a legislação, seja ela codificada ou não, como uma única fonte do direito, mostra-se, hoje, insuficiente, sobretudo no que diz respeito à necessária correspondência entre o que está previsto em tese na legislação e a realidade nos tribunais e juízos, seja no campo do direito material, seja no campo do direito processual.

E mais: a crise por que passa o direito brasileiro, em especial o seu Poder Judiciário (frequentemente vítima de campanhas orquestradas e injustas), atinge profundamente verdades que se têm por estabelecidas. Aproveitando uma feliz assertiva do já citado Vidal, essa nova situação política e institucional há de implicar também “uma grande flexibilidade técnico-jurídica de adaptação não somente às novas circunstâncias históricas normais, mas também às circunstâncias excepcionais e transitórias”.

Foi por isso que fiquei muito feliz quando li, no site do Senado Federal, que a futura lei para regulação do dito “processo estrutural”, segundo a Comissão ali criada para elaborar o respectivo anteprojeto (presidida pelo ex-procurador-geral da República Augusto Aras), deverá “ser concisa e adaptável para assegurar resultados concretos”. Para quem não sabe, “a expressão processo estrutural surgiu entre as décadas de 1950 e 1970 nos Estados Unidos. O termo se refere a demandas que chegam ao Poder Judiciário quando políticas públicas ou privadas são insuficientes para assegurar determinados direitos. Nesses casos, a discussão é transferida para a Justiça, que usa técnicas de cooperação e negociação para construir uma solução efetiva para o problema”. Temática importantíssima.

Meu receio era que a comissão caísse em um segundo tipo de “codicismo”, que é a mania, em voga na França até hoje, de se criar códigos, longos e detalhadíssimos, para tudo.

Mas não. O anteprojeto será curto. Terá um texto flexível, que privilegie o consenso entre as partes e não a opinião do juiz. Como afirma o relator da referida comissão de juristas, Desembargador Edilson Vitorelli, o papel do anteprojeto de lei “é não atrapalhar”, “é construir”. E, como arremata o vice-presidente da comissão, o potiguar Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, a futura lei não pode trazer retrocessos. Há de se encontrar um texto moderado em prol da eficiência: “todos querem flexibilidade porque o processo estrutural, embora exista e funcione, trabalha na base da tentativa e do erro. Se você amarrar muito as coisas, não pode fazer experimentações. Mas essa flexibilidade não pode prejudicar o fluxo do processo estrutural porque há também um compromisso de que a coisa termine”.

Pois, então, abaixo os codicismos! E viva a moderação!

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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Algumas anotações sobre o controle de preços dentro do direito econômico

Por Rogério Tadeu Romano*

Fala-se hoje nos altos preços de produtos para os consumidores.

Numa economia capitalista é impossível trabalhar sem o mercado. O resto é ilusão.

Além disso, sem crescimento na economia, uma empresa não sobrevive.

Aliás, o Supremo Tribunal Federal já definiu:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ECONÔMICO. INTERVENÇÃO ESTATAL NA ECONOMIA: REGULAMENTAÇÃO E REGULAÇÃO DE SETORES ECONÔMICOS: NORMAS DE INTERVENÇÃO. LIBERDADE DE INICIATIVA. CF, art. 1º, IV; art. 170. CF, art. 37, § 6º. I. – A intervenção estatal na economia, mediante regulamentação e regulação de setores econômicos, faz-se com respeito aos princípios e fundamentos da Ordem Econômica. CF, art. 170. O princípio da livre iniciativa é fundamento da República e da Ordem econômica: CF, art. 1º, IV; art. 170. II. – Fixação de preços em valores abaixo da realidade e em desconformidade com a legislação aplicável ao setor: empecilho ao livre exercício da atividade econômica, com desrespeito ao princípio da livre iniciativa. III. – Contrato celebrado com instituição privada para o estabelecimento de levantamentos que serviriam de embasamento para a fixação dos preços, nos termos da lei. Todavia, a fixação dos preços acabou realizada em valores inferiores. Essa conduta gerou danos patrimoniais ao agente econômico, vale dizer, à recorrente: obrigação de indenizar por parte do poder público. CF, art. 37, § 6º. IV. – Prejuízos apurados na instância ordinária, inclusive mediante perícia técnica. V. – RE conhecido e provido. ( RE 422.941/DF. Relator: Ministro Carlos Velloso. Julgamento: 06/12/2005. Publicação: DJ 24/03/2006).

Na mesma linha de raciocínio, no encalço da posição firmada pelo Poder Judiciário pátrio, demonstra o Supremo no julgamento da ação direita de constitucionalidade número 3.710/GO, veiculada no Informativo 455 do STF, o reconhecimento por uma ordem econômica livre e respeitadora da propriedade privada, confirmando assim a posição tendente à sistemática capitalista, como segue: O Tribunal julgou procedente pedido formulado em ação direta ajuizada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN, para declarar a inconstitucionalidade da Lei 15.223/2005, do Estado de Goiás, que dispensa do pagamento pelo uso de estacionamento em shopping centers, hipermercados, instituições de ensino, rodoviárias e aeroportos, instalados no Estado, os clientes, alunos e usuários que comprovarem despesas correspondentes a pelo menos dez vezes o valor cobrado por esse uso. Preliminarmente, o Tribunal, por maioria, conheceu da ação. Vencidos, no ponto, os Ministros Cármen Lúcia, Marco Aurélio, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence, que dela não conheciam, ao fundamento de ser a requerente carecedora da ação, ante a ausência de pertinência temática. No mérito, entendeu-se caracterizada a ofensa à competência privativa da União para legislar sobre direito civil ( CF, art. 22, I), já que, pela norma impugnada, faz-se uma limitação genérica ao exercício do direito de propriedade. O Min. Marco Aurélio ressaltou que, em se tratando de atividade econômica, a atuação do Estado, a teor do disposto no art. 174, da CF, quanto à iniciativa privada, é simplesmente de fiscalização, incentivo e planejamento, e não pode ser vinculante. O Min. Carlos Britto considerou não haver afronta ao direito de propriedade, nem à competência privativa da União para legislar sobre direito civil, mas sim à liberdade econômica dos estabelecimentos de ensino. O Min. Sepúlveda Pertence, embora acompanhando o relator, ressalvou continuar com a convicção expressa na ADI 1472/DF (DJU de 25.10.2002) e na ADI 1918/ES (DJU de 1º.8.2003). ADI 3710/GO, rel. Min. Joaquim Barbosa, 9.2.2007. ( ADI-3710)( STF – Informativo 455).

Neste mesmo sentido, tutelando o princípio da livre concorrência que é caro à conformação de uma ordem econômica livre e inserta na concepção de economia de mercado, o Ministro Joaquim Barbosa demonstra consonância com o ordenamento constitucional econômico ao decidir a medida cautelar a seguir enunciada: EMENTA: RECURSO. Extraordinário. Efeito suspensivo. Inadmissibilidade. Estabelecimento industrial. Interdição pela Secretaria da Receita Federal. Fabricação de cigarros. Cancelamento do registro especial para produção. Legalidade aparente. Inadimplemento sistemático e isolado da obrigação de pagar Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI. Comportamento ofensivo à livre concorrência. Singularidade do mercado e do caso. Liminar indeferida em ação cautelar. Inexistência de razoabilidade jurídica da pretensão. Votos vencidos. Carece de razoabilidade jurídica, para efeito de emprestar efeito suspensivo a recurso extraordinário, a pretensão de indústria de cigarros que, deixando sistemática e isoladamente de recolher o Imposto sobre Produtos Industrializados, com consequente redução do preço de venda da mercadoria e ofensa à livre concorrência, viu cancelado o registro especial e interditados os estabelecimentos (AC 1.657 MC/RJ. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Julgamento: 26/06/2007. Publicação: DJ 31/08/2007).

A livre fixação de preços é elemento fundamental da livre iniciativa, princípio constitucional impositivo. Assim, o controle prévio de preços como política pública regular viola princípio constitucional.

Admite-se, todavia, que em situações anormais seja possível o controle prévio de preços pelo Estado, na medida em que o mercado privado como um todo tenha se deteriorado a ponto de não mais operarem a livre iniciativa e a livre concorrência de forma regular.

A Constituição brasileira não admite, como política pública, regular o controle prévio de preços.

Note-se que a situação de normalidade a que se fez referência não exclui, por natural, a possibilidade episódica da prática de ilícitos contra a ordem econômica. Diante de algum indício de conduta infratora ou anticoncorrencial, podem ser deflagrados os mecanismos próprios de apuração, mediante devido processo legal, e, se for o caso, de punição.

Em situações normais, o controle estatal em matéria de preços de produtos e serviços será sempre posterior à verificação de práticas abusivas ou anticoncorrenciais, assegurados os direitos fundamentais à ampla defesa e ao devido processo legal ( CF, art. 5º, LIV).

A matéria envolve uma premissa de direito econômico envolvendo a possibilidade de o Estado regulamentar ou regular a economia.

Desregular significa não dar ordenação à atividade econômica, ao passo que desregulamentar, deixar de fazê-lo através de preceitos de autoridade, ou seja, jurídicos, como explicou Felipe A. Gonzáles Arzag (Sobre los conceptos de desregulación y desregulamentación, Revista de Derecho Público y Teoria del Estado, 3, pág. 196).

Expõe Eros Roberto Gradu (Interpretação e crítica da ordem econômica, pág. 48) que devem ser feitas, diante disso, as seguintes indagações: a) conforma-se ao bem comum e ao princípio da justiça a regulação da atividade econômica através de mecanismos de mercado? é possível o próprio mercado, sem uma legislação que o proteja, sofrer uma vigorosa intervenção destinada a assegurar sua existência e preservação?

A resposta à primeira pergunta tem caráter sabidamente ideológico. Os cultores da fé na economia de mercado a ela responderão afirmativamente. Já quem não seja fiel a esse credo responderá de modo negativo, com apoio em verificações empíricas.

Com relação à segunda pergunta, o ministro Eros Grau (obra citada, pág. 48) expõe que não se pode perder de vista a circunstância de que a atribuição, ao Estado, da missão de conduzir o desenrolar do processo econômico, ordenando-o, é toda ela desenvolvida sob o compromisso de preservar os mercados. Isso porque o capitalismo reclama não o afastamento do Estado dos mercados, mas sim a atuação estatal, reguladora, a serviço dos interesses do mercado.

Assim, o mercado não seria possível sem uma legislação que o protegesse e uma racional intervenção, que assegurasse a sua existência e preservação.

Para Felipe A. Gonzáles Arzac (obra citada, pág. 199), os que pretendem desregular a economia nada mais desejam, no fundo, senão uma mudança nas técnicas de regulação, de modo a elevar a eficácia reguladora da atuação estatal sobre o domínio econômico, isto, aliás, através de procedimentos desregulamentadores. Pretende-se desregulamentar para melhor regular.

Dessa forma, diante de uma necessária atuação do sistema da legalidade, vem a surgir uma inflação normativa. Contra a proposta de apresentação de normas rígidas, se opõe a adoção de normas flexíveis, indutoras de comportamentos, que poderá não produzir a eficácia da demanda.

O sistema capitalista é preservado pela Constituição de 1988. O modo de produção, os esquemas de repartição do produto e os mercados capitalistas são mantidos em sua integridade pela Constituição de 1988.

A questão da fixação de tabelamento de preços, dentro da atual ordem econômica somente virá em situações excepcionais.

A experiência demonstrou que o sistema de autorregulação do mercado nem sempre é eficaz em relação a um conjunto de outros aspectos dos produtos e serviços, como qualidade e segurança, veracidade das informações ao consumidor, vedação de cláusulas abusivas, atendimento pós-consumo etc. Daí a necessidade de uma regulamentação específica de proteção ao consumidor, que veio inscrita inclusive como um direito individual constitucionalizado. Trata-se, aqui, tanto de um princípio de funcionamento da ordem econômica, ao qual está vinculada a iniciativa privada, quanto de um dever do Estado. A ele cabe, não apenas assegurar um mercado efetivamente concorrencial, como também criar condições equitativas entre partes naturalmente desiguais, ainda que de forma induzida, e assegurar condições objetivas de boa fé negocial, como demonstrou Teresa Negreiros (Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé, 1998).

A opção por uma economia capitalista se funda na crença de que o método mais eficiente de assegurar a satisfação dos interesses do consumidor de uma forma geral é através de um mercado em condições de livre concorrência, especialmente no que diz respeito a preços.

Respeita-se o princípio da livre iniciativa, essencial no capitalismo, regime econômico que foi escolhido pela Constituição de 1988.

Particularmente, acerca da livre iniciativa e dos demais princípios que com ela convivem, escreveu ainda uma vez Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “O princípio da liberdade de iniciativa tempera-se pelo da iniciativa suplementar do Estado; o princípio da liberdade de empresa corrige-se com o da definição da função social da empresa; o princípio da liberdade de lucro, bem como o da liberdade de competição, moderam-se com o da repressão do abuso de poder econômico; o princípio da liberdade de contratação limita-se pela aplicação dos princípios de valorização do trabalho e da harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção; e, finalmente, o princípio da propriedade privada restringe-se com o princípio da função social da propriedade.”(Ordem Econômica e desenvolvimento na Constituição de 1988, pág. 28).

Disse o ministro Luis Roberto Barroso (A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços): “Ora bem: se a liberdade para fixar preços de acordo com o mercado concorrencial é da própria essência da livre iniciativa, ela não pode ser eliminada de forma peremptória, sob pena de negação do princípio, e não de ponderação com outros valores. A menos que – e este é o ponto a que se chegará mais à frente – o controle prévio fosse necessário para recompor o próprio sistema de livre iniciativa. Além desses dois princípios fundamentais – livre iniciativa e valorização do trabalho -, o art. 170 apresenta, ainda, um conjunto de princípios setoriais que, em harmonia com esses, deverão conduzir a ordem econômica.”

Na matéria, ensinou Técio Lins e Silva (Congelamento de preços – tabelamentos oficiais (parecer), in Revista de Direito Público, n. 91, pág. 77/78):

“Em consequência, deve-se dizer, portanto, que o sentido do papel do Estado como agente normativo e regulador está delimitado, negativamente, pela livre iniciativa, que não pode ser suprimida. O Estado, ao agir, tem o dever de omitir a sua supressão. Positivamente, os limites das funções de fiscalização, estímulo e planejamento estão nos princípios da ordem, que são a sua condição de possibilidade. O primeiro deles é a soberania nacional. Nada fora do pacto constituinte. Nenhuma vontade pode se impor de fora do pacto constitucional, nem mesmo em nome de alguma racionalidade da eficiência, externa e tirânica. O segundo é a propriedade privada, condição inerente à livre iniciativa. O terceiro é a função social da propriedade, que tem a ver com a valorização do trabalho humano e confere o conteúdo positivo da liberdade de iniciativa. O quarto é a livre concorrência: a livre iniciativa é para todos, sem exclusões e discriminações. O quinto é a defesa do consumidor, devendo-se velar para que a produção esteja a serviço do consumo, e não este a serviço daquela. O sexto é a defesa do meio ambiente, entendendo-se que uma natureza sadia é um limite à atividade e também sua condição de exercício. (…) Esses nove princípios não se contrapõem aos fundamentos da ordem, mas dão-lhes seu espaço relativo. Cumpre ao Estado assegurar os fundamentos, a partir dos princípios. Não se pode, por isso, em nome de qualquer deles eliminar a livre iniciativa nem desvalorizar o trabalho humano. Fiscalizar, estimular, planejar, portanto, são funções a serviço dos fundamentos da ordem, conforme seus princípios. Jamais devem ser entendidos como fun- ções que, supostamente em nome dos princípios, destruam seus fundamentos.”

Não há, na ordem econômica constitucional, que se falar em dirigismo econômico, como ensinou Tércio Sampaio Ferraz Júnior (obra citada, pág. 76/88):

“ O dirigismo econômico é próprio dos modelos coletivistas, baseados na planificação centralizada e cogente e na propriedade coletiva dos meios de produção. O mercado deixa de estar centrado na atividade das pessoas e dos grupos privados e passa a ser largamente manipulado pelo Estado. Já nos Estados que optaram pela livre iniciativa, a disciplina é um instrumento de intervencionismo econômico – prática que teve o seu ponto alto no período em que se fortaleceu a ideia de Estado de bem-estar social -, mas se rege por um postulado essencial: o de que o livre mercado concorrencial é o mecanismo mais eficaz de produção de riquezas e bem estar (ainda que longe de ser perfeito). Em suma: a disciplina é forma de intervenção que se dá não contra o mercado, mas a seu favor.”

Impossível, assim, diante da Constituição de 1988, controlar preços de supermercados no varejo ou no atacado.

Acabou a época dos “fiscais do Sarney”, em 1986, quando de uma frustrada tentativa de controle de preços dentro de uma economia que vivia uma inflação galopante.

O Plano Real não congelou preços e deu certo. É a moeda que ainda usamos.

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

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O que é o semipresidencialismo?

Por Rogério Tadeu Romano*

Observo o que se diz em reportagem no Estadão, em 6.2.25:

“O deputado Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR) reuniu o número mínimo necessário de 171 assinaturas para que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Semipresidencialismo seja protocolada na Câmara. O número de subscrições aumentou substancialmente após o novo presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), defender o modelo parlamentarista em entrevista anteontem. Hauly disse que vai protocolar a PEC quando chegar ao apoio de 300 deputados, para “mostrar força”. A proposta tinha 178 adesões até a tarde de ontem.

O semipresidencialismo é um modelo de governo em que o presidente da República divide o poder com um primeiro-ministro, eleito pelo Congresso Nacional – uma espécie de “meio-termo” entre o atual presidencialismo do Brasil e o parlamentarismo.

A proposta de Hauly daria ao premiê a capacidade de definir o plano de governo e o controle orçamentário, além de empoderar a Câmara, que poderia votar sozinha moções de confiança e censura. Pela PEC, o presidente da República é o chefe de Estado e comandante supremo das Forças Armadas, mas há também o primeiro-ministro, que é o chefe de governo.”

Ali, ainda se diz:

“Como mostrou a Coluna do Estadão, a discussão ganha força em momento de conflito entre os três Poderes sobre a execução do Orçamento da União. Nos últimos anos, principalmente durante a presidência de Arthur Lira (PPAL) na Câmara, os parlamentares ganharam ainda mais poder sobre a destinação de emendas, o que enfraqueceu o Executivo. Mas esse modelo de distribuição de recursos tem sido questionado pelo ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF).”

Afinal, o que é o semipresidencialismo?

Semipresidencialismo é um sistema de governo em que o presidente partilha o poder executivo com um primeiro-ministro e um gabinete, sendo os dois últimos responsáveis perante a legislatura de um Estado. Ele difere de uma república parlamentar na medida em que tem um chefe de Estado eleito diretamente pela população e que é mais do que uma figura puramente cerimonial como no parlamentarismo. O sistema também difere do presidencialismo no gabinete, que, embora seja nomeado pelo presidente, é responsável perante o legislador, o que pode obrigar o gabinete a demitir-se através de uma moção de censura.

Enquanto a República de Weimar alemã (1919-1933) exemplificou o primeiro sistema semipresidencial, o termo “semipresidencial” teve origem em 1978 através do trabalho do cientista político Maurice Duverger para descrever a Quinta República Francesa (criada em 1958), que Duverger apelidou de régime semiprésidentiel.

Sob o sistema premiê-presidente, o primeiro-ministro e o gabinete são exclusivamente responsáveis perante o Parlamento. O presidente escolhe o primeiro-ministro e o gabinete, mas apenas o Parlamento pode removê-los do cargo. O presidente não tem o direito de demitir o primeiro-ministro ou o gabinete. No entanto, em alguns casos, o presidente pode contornar essa limitação, através do exercício do poder discricionário de dissolver a assembleia, o que obriga o primeiro-ministro e o gabinete a demitirem-se. Este subtipo é usado em Burkina Faso, Geórgia (desde 2013), Lituânia, Madagascar, Mali, Mongólia, Níger, Polônia, Portugal, França, Romênia, Senegal e Ucrânia (desde 2014; anteriormente, entre 2006 e 2010).

Sob o sistema de presidente-premiê, o primeiro-ministro e o gabinete são duplamente responsáveis perante o presidente e a maioria da assembleia. O presidente escolhe o primeiro-ministro e o gabinete, mas deve ter o apoio da maioria parlamentar para a sua escolha.

Para remover um primeiro-ministro ou todo o gabinete do poder, o presidente pode demiti-los ou a maioria parlamentar pode removê-los. Esta forma de semipresidencialismo é muito mais próxima do presidencialismo puro e é usado na Armênia, Moçambique, Namíbia, Rússia, Sri Lanka e Taiwan. Também foi usado na Alemanha durante a República de Weimar.

Sabe-se da tramitação na Câmara dos Deputados da PEC 020, de 1995, cujo proponente foi o deputado Eduardo Jorge. Nessa proposta de emenda constitucional, adota-se um semipresidencialismo , com maior incumbência administrativa outorgada ao primeiro-ministro.

Este apresentará ao Congresso o programa de governo, podendo sofrer, após seis meses do início do governo, moção de censura, proposta por um quinto dos membros da Câmara e a ser aprovada pela maioria absoluta de ambas as Casas. A dissolução do Legislativo não ocorre ao ser negada a aprovação ao nome do primeiro-ministro, mas tão somente na hipótese de grave crise política e institucional.

Incumbe ao primeiro-ministro exercer a direção superior da administração federal; elaborar o programa de governo, submetê-lo à aprovação do presidente da República e ao Congresso; promover a unidade da ação governamental; elaborar planos e programas nacionais e regionais de desenvolvimento, submetendo-os ao Legislativo nacional. Nem por isso são de somenos as atribuições do presidente da República. Cabe a este sancionar ou vetar projetos de lei; presidir o Conselho de Ministros, no qual se aprovam decretos, propostas de lei, bem como o plano plurianual de investimentos, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e as propostas dos orçamentos previstos na Constituição, além de manter relação com outros Estados.

A ação governamental incumbe, portanto, ao primeiro-ministro. Se o governo vai mal ou se envolve em falcatruas, a crise resolve-se por moção de censura. Há, também, forte comprometimento do Congresso com o plano de governo e sua execução.

Nessa emenda se propõe a adoção do semipresidencialismo apenas na próxima eleição, mas se instala, no mandato atual, forma de coparticipação entre os Poderes, com a criação da figura de ministro coordenador para entrosar ministérios, articular a ação político-administrativa e apresentar ao Legislativo a execução do plano de governo. A Câmara dos Deputados, por maioria absoluta, pode solicitar ao presidente da República o afastamento do ministro coordenador.

No semipresidencialismo proposto, o presidente, conjuntamente com o ministro coordenador, exerce a direção da administração federal e dispõe sobre a estruturação e o funcionamento dos órgãos da administração federal. O presidente envia, veta ou sanciona projetos de lei. Todavia é importante a função do ministro coordenador, pois lhe cabe promover a unidade da ação governamental, coordenando a atuação dos ministérios e dos órgãos da administração com vista à execução do plano de governo, mantendo relação com o Legislativo.

O impasse na aprovação do ministro coordenador não se resolve, nesse modelo, pela dissolução da Câmara dos Deputados, pois se considera duro desafio, nas dimensões de um pleito nacional, impor novas eleições, com custos econômicos e políticos de monta. Todavia não se deixa de criar liame forte entre Executivo e Legislativo, este coparticipando da obra de governo.

Esse formato se aproxima do francês, editado na Constituição de 1958, no qual o presidente é eleito diretamente e divide com o primeiro-ministro ações governamentais. Mas o protagonismo do presidente é patente, especialmente se o primeiro-ministro for de sua ala política. Do contrário, ocorre a difícil, mas já bem sucedida, coabitação: presidente de um partido, primeiro-ministro de outro, como se deu entre Mitterrand, presidente, e Chirac, primeiro-ministro, pois pode ser eleita uma maioria parlamentar de oposição e dela vai provir o primeiro-ministro.

Recentemente, o Ministro Roberto Barroso fez a conferência de abertura no Congresso Nacional de Procuradores do Estado, na qual desenvolveu mais uma vez sua tese. Destacou que o sistema de governo adotado no Brasil tem o formato hiper-presidencialista da tradição latino-americana e lembrou que, em 2006, numa proposta de reforma política, defendeu a atenuação desse modelo, pela implantação do semipresidencialismo, como praticado na França e em Portugal.

A proposta é que ele passasse a vigorar oito anos depois, em 2014. Na ocasião, afirmou que “é em período de tempo bom que a gente conserta o telhado”, e disse que, se ela tivesse sido posta em prática, poderia ter minimizado alguns problemas atuais. “Preferia estar errado, mas era previsível que esse dia chegaria”, comentou na ocasião.

Barroso disse que gosta dessa fórmula por seu potencial para atenuar dois crônicos problemas que assinalam a nossa História: o autoritarismo do Executivo e a instabilidade institucional. “Se estivesse em vigor, não estaríamos passando pelo que estamos passando.

E não descarto que esse possa ser um caminho para um grande acordo que nos faça voltara andar na direção certa.”, comentou.

Com o semipresidencialismo volta-se às lições de Maurice Duverger, que foram utilizadas, na França, em 1958, como solução para uma séria crise na França com o enfraquecimento do parlamentarismo.

Mas esse semipresidencialismo nasceu na França com um presidente forte, de caráter forte, como Charles de Gaulle, herói naquele país. Sobreviveu até hoje, passando por Georges Pompidou, Valèry Giscrd d´Estaing, François Mitterrand, Jacques Chirac, Sarkozy, até chegar a François Hollande, todos eles hábeis governantes. Em Portugal, temos hoje um premiê vinculado ao partido socialista e um presidente da República que não é do mesmo partido. Na França, o atual presidente Macron adota um modelo centrista, diante da derrota do modelo socialista anterior e da direita, nas últimas eleições presidenciais, e tem no Parlamento um evidente apoio conquistado nas últimas eleições.

Digo isso porque o semipresidencialismo não convive com um presidente inábil e fraco politicamente.

A Constituição de 1988 não fala num modelo próprio francês, a partir de 1958, semipresidencial (em que, na França, o Presidente é responsável pela política externa e o primeiro-ministro pela política interna). É frequente o fenômeno da coabitação no qual o chefe de governo (Primeiro-ministro) e o chefe de Estado (Presidente) são eleitos separadamente num mecanismo de freios e contrapesos. Ficou, na França, o chamado sistema gaullista, com mais de quarenta anos de existência, que corresponde a um sistema semipresidencial, pôr o governo, livremente nomeado pelo Chefe do Estado (mas não livremente demitido), ser responsável politicamente perante o Parlamento. Ali o centro principal da decisão política tem residido desde o início, no Presidente da República, por virtude da autoatribuição de um “domínio reservado”, como revelou Jorge Miranda (Teoria do Estado e da Constituição, 2003, pág. 105), em política externa e da defesa, da subalternização do Primeiro-Ministro, do apelo ao referendo e do exercício do poder de dissolução. Esse sistema se distancia do chamado semipresidencialismo português, em que o presidente preside, não governa, tendo poderes para dissolver o Parlamento, só com condicionamentos temporais, demitir o governo, quando o exija o regular funcionamento das instituições, decidir sobre a convocação dos referendos, exercer o poder de veto por inconstitucionalidade etc. Já, na França, o Presidente tem o poder de submeter a referendo projetos de lei relativos à organização dos poderes e à ratificação dos tratados (artigo 11 da Constituição de 1958) e o de assumir, embora com consulta prévia de outros órgãos, poderes excepcionais em caso de estado de necessidade (artigo 16).

Na França, junto com o semipresidencialismo há o sistema do ballottage.

É praticado atualmente na França, desde a instauração da Quinta República, com o breve interlúdio da lei nº 85-690, que instaurou o sistema proporcional para as eleições de 1985, sendo restaurado pela lei nº 86-825. De acordo com a lei francesa, a eleição de deputados ocorre em distritos uninominais em dois turnos. O candidato que obtiver maioria absoluta é considerado eleito. Não sendo alcançada a maioria absoluta, é convocado um segundo turno no qual participam os partidos que tenham alcançado um mínimo de 17% dos votos no distrito. Para o segundo turno não é necessário alcançar maioria absoluta, sendo considerado eleito o candidato ou a coligação mais votada. Segundo Sartori, a principal característica é que, ao contrário de outros sistemas, ele permite um segundo  voto ao eleitor, tornando possível a sua mudança de preferências.

A adoção de parlamentarismo ou outro sistema de governo forma um debate que cresce sempre em épocas em que o Presidencialismo está em crise.

Na França, o semipresidencialismo é forte com um Presidente da República que está a frente da política externa e dos principais temas de governo. Em Portugal, o Presidente da República é o responsável por vetos às leis emanadas do Parlamento e tem poder de nomear o Primeiro-Ministro.

No presidencialismo o presidente é chefe de Estado e de Governo. No parlamentarismo o presidente é chefe de Estado deixando a tarefa de governar a um primeiro-ministro e seu conselho de ministros (modelo que tivemos na República, entre 1961 e 1963).

Na França, temos um sistema presidencialista e um regime semi-presidencialista.

Na Polônia há um sistema parlamentarista (que se aproxima da Bélgica, Dinamarca, Itália, Países Baixos) e um regime semipresidencial, onde se fala, na experiência recente num parlamentarismo bicameral que quer propor ao país um modelo autocrático.

Em Portugal, assim como na Áustria, na Irlanda, na Islândia, temos um sistema governamentalista e um regime semipresidencialista. São seus traços estruturais, segundo J.J.Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª edição, pág. 574):

  1. a) dois órgãos (presidente da República e o parlamento eleitos por sufrágio direto; b) dupla responsabilidade do governo (gabinete) perante o presidente da República e perante o parlamento; c) dissolução do parlamento por decisão e iniciativa autônomas do

 presidente da República (diferentemente do que existe quer no regime presidencial quer no regime parlamentar); d) configuração do gabinete como um órgão constitucional autônomo (diversamente do regime presidencial e anologamente ao regime parlamentar); e)presidente da República com poderes de direção política próprios (à semelhança do regime presidencial, mas diversamente do regime parlamentar).

Ainda na lição de Canotilho, o critério da posição jurídica e política do presidente da República no funcionamento das instituições assume no caso particular relevo. Em certas engenharias constitucionais, como é o caso da França e da Finlândia o complexo de

 poderes do presidente da República sugere uma base presidencial temperada pelas exigências da confiança parlamentar, significando uma atribuição de poderes políticos relevantes ao presidente da República uma correção de forma ao governo parlamentar, como disse Canotilho. Daí, na lição de M. Shugart e J. Carry (President and assemblies, pág. 24) com relação a forma caracterizadora “governo parlamentar com um correto presidencial”. Sendo então assim a fórmula mais abrangente será a de um sistema presidencial parlamentar ou parlamentar presidencial consoante a matriz dominante.

Fica a lição de Canotillho (obra citada, pág. 574), à luz de Aguilera de Prat e R. Martinez (Sistemas de Gobierno, pág. 103 e seguinte, dos regimes da Finlândia, França, Polônia, Portugal e Armênia), de que qualquer que seja a matriz, a forma de governo semipresidencial adquiriu contornos autônomos, não circunstanciais, justificadores de sua qualificação como uma forma de governo contemporâneo em que as dimensões funcionais e institucionais do sistema político desempenham um papel dinamicamente conformador. Por isso, disse ainda Canotilho, que um autor (Volpi) alude aqui a uma forma de governo como categoria a se stante em que se tem de atender não apenas aos elementos estruturais constitucionais, mas também aos elementos funcionais.

Lembremos que, em 1993, a população chamada a responder, escolheu o presidencialismo e não o parlamento.

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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Câmara Municipal inicia nova legislatura com cheiro de mofo da República Velha

A Câmara Municipal de Mossoró inicia uma nova legislatura na próxima terça-feira. Nova do ponto de vista formal porque politicamente voltamos 100 anos no passado quando os atuais poderes de prefeito e presidente da Câmara Municipal estavam concentrados numa única pessoa: o chefe da intendência.

Isso mesmo.

Na República Velha (1889/1930) o prefeito era também presidente da Câmara e era chamado de chefe da intendência.

Mas porque a comparação? Se você é leitor assíduo do Blog do Barreto já entendeu no primeiro parágrafo, mas vamos lá: Allyson Bezerra (UB) governa Mossoró e exerce desde 1º de janeiro um controle jamais visto na Câmara Municipal.

Além de escolher quem seria o presidente, ele vai controlar a gestão do legislativo com a direção geral, a comunicação, as compras e as nomeações. Todas as pessoas responsáveis por estas áreas são pessoas da confiança do prefeito.

O presidente da casa, Genilson Alves (UB), cumpre apenas um papel formal de presidente. Quem dá as cartas de fato no legislativo é Allyson, o intendente tiktoker.

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Sagração do orçamento impositivo

Por Rogério Tadeu Romano*

Como salientou o Estadão, em editorial, no dia 4.2.24, “que a preocupação maior dos deputados e senadores não é outra senão a apropriação de um volume cada vez maior de recursos por meio de emendas ao Orçamento da União indicadas, distribuídas e executadas de forma opaca, em respeito a sabe-se lá quais critérios”

Costuma-se se dizer que orçamento é o processo e o conjunto integrado de documentos pelos quais se elabora, se expressa, se aprova, se executa e se avalia os planos e programas de obras, serviços e encargos governamentais, com estimativa de receita e fixação de despesas de cada exercício financeiro.

O Orçamento além de ser peça pública, deve ser apresentado em linguagem clara e compreensível a todas as pessoas e suas estimativas devem ser tão exatas quanto possível de forma a garantir a peça orçamentária um mínimo de consistência.

Mas o orçamento é uma peça que é formalmente instrumentalizada por meio de lei, mas, que, materialmente, se traduz em ato político-administrativo. Tem-se a posição do Supremo Tribunal Federal já delineada:

“EMENTA: – DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PROVISÓRIA SOBRE MOVIMENTAÇÃO FINANCEIRA – C.P.M.F. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE “DA UTILIZAÇÃO DE RECURSOS DA C.P.M.F.” COMO PREVISTA NA LEI Nº 9.438/97. LEI ORÇAMENTÁRIA: ATO POLÍTICO-ADMINISTRATIVO – E NÃO NORMATIVO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO: ART. 102, I, A, DA C.F. 1. Não há, na presente Ação Direta de Inconstitucionalidade, a impugnação de um ato normativo. Não se pretende a suspensão cautelar nem a declaração final de inconstitucionalidade de uma norma, e sim de uma destinação de recursos, prevista em lei formal, mas de natureza e efeitos político-administrativos concretos, hipótese em que, na conformidade dos precedentes da Corte, descabe o controle concentrado de constitucionalidade como previsto no art. 102, I, a, da Constituição Federal, pois ali se exige que se trate de ato normativo. Precedentes (…)”. (ADI 1640 / DF, Relator (a): Min. SYDNEY SANCHES, Julgamento: 12/02/1998).

Como lei, o orçamento se submete ao controle abstrato de constitucionalidade (ADI 4048 MC/DF, Relator Ministro Gilmar Mendes, 14 de maio de 2008).

A legislação e a execução prática do orçamento da União, no Brasil, consideram a despesa fixada na lei orçamentária como uma “autorização para gastar”, e não como uma “obrigação de gastar”. Isso abre espaço para que o Poder Executivo não realize algumas despesas previstas no orçamento. Trata-se do chamado “orçamento autorizativo”, no qual parte das despesas pode ser “contingenciada”.

A ideia de “orçamento impositivo” é mudar essa prática, tornando obrigatória a execução de todo o orçamento nos termos em que ele foi aprovado pelo Congresso Nacional.

“Orçamento impositivo” quer dizer que o gestor público é obrigado a executar a despesa que lhe foi confiada pelo Legislativo. Que apenas alguma coisa muito excepcional poderia liberá-lo desse dever.

Fala-se que hoje o orçamento não é mais autorizativo, mas impositivo.

O orçamento impositivo é uma medida legislativa que visa tornar obrigatórias determinadas despesas públicas, garantindo que emendas parlamentares sejam cumpridas.

Trata-se, na verdade, de um dinheiro paralelo ao reservado para as emendas individuais a que todos os congressistas têm direito – aliados e opositores – e que o Executivo tem a obrigação de pagar.

A cada ano, deputados e senadores fazem essas indicações, para que o recurso federal seja aplicado nos redutos eleitorais deles em todo o país.

Há quatro tipos de emendas:

  • Emendas individuais, feitas por deputado ou senador com mandato vigente;
  • Emendas de bancada, que reúnem os parlamentares do mesmo estado ou do Distrito Federal, ainda que sejam de partidos diferentes;
  • Emendas de comissões, propostas pelas comissões permanentes ou técnicas da Câmara e do Senado;
  • Emendas do relator do Orçamento, incluídas pelo relator a partir das demandas feitas por outros políticos.

Nessa linha de ideias, lembra-se que, em 2015, o Congresso promulgou uma mudança na Constituição para tornar impositivas (de execução obrigatória) as emendas individuais.

Em 2019, os parlamentares voltaram a mudar a Constituição para tratar do tema. Desta vez, tornaram obrigatória a execução das emendas de bancada.

Com essa mudança importante, as relações entre o Poder Executivo e Legislativo deixam de representar um presidencialismo de coalização, para termos um verdadeiro semiparlamentarismo, em que o Legislativo cada vez mais orienta os atos de governo ao Executivo.

Os parlamentares ganham maior influência e controle sobre a execução do orçamento.

Por certo, é mister que nesse procedimento sejam exigidos transparência e eficiência, princípios pelos quais a Administração Pública deve se nortear.

De toda sorte, o orçamento não poderá ser secreto.

Aliás, lembre-se que a ministra aposentada Rosa Weber, então presidente do STF, votou no dia 14.12.22, para considerar o orçamento secreto inconstitucional.

A relatora da ação, ministra aposentada Rosa Weber, entendeu que o pagamento destas emendas parlamentares de relator viola o direito à informação e a separação de Poderes, indo contra os princípios da Constituição. “O modelo em prática viola o princípio republicano e transgride os postulados informadores do regime de transparência dos recursos financeiros do estado”, ressaltou.

A ministra destacou ainda que o mecanismo desequilibra o processo democrático e criticou o uso destas emendas para interesses eleitorais. “A captura de recursos públicos por emendas parlamentares no Brasil não encontra paralelo na comparação com outros países”, disse Weber, relembrando em seu voto escândalos relacionados ao Orçamento, como a dos anões do Orçamento, no qual parlamentares se envolveram em várias fraudes para o desvio de recursos nos anos 1990.

Preocupa, sobremaneira, um orçamento secreto que agrida a necessária e essencial transparência no uso de gastos públicos.

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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INDIGESTÃO CULTURAL EM MOSSORÓ – para Janaína, com muita luta.

Por Dinízio do Apodi*

Professor de Economia Etevaldo Almeida, produtor cultural Igor Belleza, advogado Kadson Eduardo, administrador Frank Felisardo e jornalista Janaina Holanda. Em quatro anos e um mês da gestão do atual prefeito de Mossoró já são cinco secretários de cultura para a cidade que se gaba em ser a capital cultural do estado. Esse número tem passado despercebido, mas mostra os porquês dos artistas e grupos independentes de Mossoró sofrerem tanto ao longo dessa gestão: falta de continuidade e um eterno recomeço.

Em mais de quatro anos, não temos estruturas básicas que são obrigatórias para o município continuar recebendo recursos federais para a cultura, como por exemplo o Conselho Municipal de Políticas Culturais (esfacelado e pisoteado pela gestão) e o Plano Municipal de Cultura (sem perspectiva nenhuma de debate sobre isso). O apagamento do Conselho enfraquece a participação dos grupos e artistas na construção de políticas culturais que atendam as necessidades de quem faz cultura. E a ausência de um plano de cultura de acordo com as atuais demandas do setor cultural prejudica a continuidade de qualquer ação, pois cada secretário ou secretária que entra faz as coisas de acordo com o que lhe convier, sem atentar para um plano construído pelo setor, tirando o caráter coletivo e focando no individualismo e bondade de quem está à frente da pasta. Se não tem plano de cultura, não vai ter continuidade.

A cada nova entrada de secretário(a) na pasta são seis meses perdidos para as discussões e efetivação das políticas culturais que precisam ser efetivadas, quando são efetivadas. Se os secretários que já passaram (com exceção do Kadson Eduardo que não recebeu a gente) forem honestos, darão o crédito de quem sempre procurou diálogo com a secretaria para alertar, para compartilhar as informações do Ministério da Cultura, e se reunir para tratar destes assuntos, foi a gente da Cooperativa de Cultura Potiguar, o Comitê de Cultura do RN, juntamente com diversos grupos e artistas independentes de Mossoró. Mas na maior parte dos casos, quando a gestão toma ciência, por nosso intermédio, das coisas que precisam fazer, nos passam para trás. Se houvesse um plano de cultura e este fosse respeitado, cada secretário que entrasse daria continuidade, mas a Secretaria de Cultura de Mossoró é a cara da esculhambação, sem eira nem beira, aos Deus dará, funcionando numa “ex-biblioteca” que é o retrato do abandono da cultura no município.

Por questão de justiça é necessário falar sobre a passagem do secretário Igor Belleza, o único, nessa gestão, que dialogou, de verdade, com o setor cultural e quis fazer o que estava sendo orientado e determinado pelo Ministério da Cultura. Com ele Mossoró foi o primeiro município do estado a receber recursos da PNAB, em dezembro de 2023, e sem ele ainda estamos esperando os pagamentos, que foram prometidos pela equipe do então secretário que agora saiu, Frank Felisardo, diante do Ministério Público, numa reunião virtual, da qual participei, onde o mesmo garantiu que sairia no ano passado.

O antigo secretário Frank e sua equipe mostraram total desprezo pelo setor cultural e até pelo Ministério Público, sem respeito nenhum às instituições democráticas, sociedade civil. Não compareceram em nenhuma audiência pública para debater as políticas culturais para Mossoró (como pode?). Sem respeito algum, passando por cima do Ministério Público e de nós, trabalhadoras e trabalhadores do setor cultural. Quando solicitamos mais tempo, pelo menos mais dois dias, para as inscrições dos projetos dos artistas, um grito de todo o setor cultural, o ex-secretário falou, numa reunião virtual, com presença de uma promotora, que não podia aumentar o prazo, alegando que se fizesse isso não daria tempo pagar em 2024. O resultado é que não aumentaram o período de inscrições para que mais artistas pudessem se inscrever mas aumentaram o prazo para os avaliadores, e ainda por cima os recursos não foram pagos até agora, 2025.

O ex-secretário Frank Felisardo, com respeito ao cidadão e ao que ele é, fora da cultura, juntamente com sua equipe, não vai ser nem lembrado que um dia passou pela Secretaria de Cultura de Mossoró. Entrou, saiu. Não vai fazer falta, não deixa nenhum legado, uma vírgula que pudesse melhorar a vida de quem faz cultura em Mossoró. Cadê o Prêmio Fomento 2024 (Lei Maurício de Oliveira) que foi prometido para outubro do ano passado, e já estamos em 2025 esperando os editais de 2024? Cadê os pagamentos da Aldir Blanc prometidos para o ano passado (os recursos FEDERAIS estão na conta desde dezembro de 2023)?

Na escuta do Plano Anual de Aplicação de Recursos (PAAR) nos passaram para trás. Tiraram seiscentos mil reais que o setor cultural, na escuta pública, exigida, gravada e enviada para o Ministério da Cultura, aprovou por unanimidade para ser utilizada como fomento aos projetos culturais e colocaram para a reforma da Escola de Artes, que tem outras possibilidades de recursos, enquanto a gente não. Inclusive o ex-vereador Pablo Aires destinou emenda para o início da reforma da escola e a emenda não foi levada em consideração pelo prefeito municipal, e agora retiram o direito que a gente tem de decidir sobre o destino dos recursos da Aldir Blanc, que são para o nosso setor e federais (a Prefeitura é só repassadora), de acordo com o Ministério da cultura.

Na apresentação pública do Comitê de Cultura do Rio Grande do Norte em Mossoró (programa importantíssimo do Ministério da Cultura), o então secretário foi convidado a participar, com direito a fala, para saudar os trabalhadores e trabalhadoras da cultura e não foi. Na Conferência Livre de Cultura de Mossoró e Região, onde o setor cultural se reuniu para debater política pública, o secretário não compareceu também, nem mandou qualquer pessoa de sua equipe, mas no mesmo dia, participaram de uma feira que acontecia na praça ao lado de onde era realizada a Conferência. No lançamento do Centro de Cultura do BNB que está chegando em Mossoró, momento importante para a cultura da cidade, nenhuma representação. Essa ausência é o que nos é ofertada todos os dias em Mossoró, por essa gestão.

Aos artistas indignados de ocasião, aqueles que ficam por trás, sem coragem de se desgastar com o poder público, mas secretamente vem “manifestar apoio”, o nosso total desprezo por serem frouxos e deixarem companheiros na frente desta luta para serem mortos, esperando “se der certo eu estou, se der errado não conheço eles”. O mesmo vereador ou gestor que agrada você, individualmente, para enfraquecer a luta coletiva, só faz isso porque sabe que você é fraco, e pode te usar, como os poderosos da casa grande, historicamente, fizeram. Camarada, infelizmente é esse o seu papel.

As consequências desse texto já sei, previsto e previsível: babões, comissionados, blogueirinhos, influencis, burros (como diz caetano “você é burro cara, você é muito burro!”), sem pensamento crítico nenhum, nos atacando, sem conhecimento nenhum do que a gente tá falando, mudando o foco para algo que não condiz com o que colocamos, para confundir o pensamento das pessoas mais simples. Acham que nós temos prazer em discordar dessa gestão? É desgastante e adoece. Acham que não queríamos uma Mossoró com oportunidades para todo mundo? Mas a gente segue, firme, por aqui, como pode e como dá, mas seguimos com os que restam e não têm preço.

Isso, de forma alguma, é uma afronta para a nova secretária Janaina Holanda, com quem até já trabalhei por um tempo no extinto jornal Gazeta do Oeste, mas uma maneira de buscar a sensibilidade dela, não para atender a um grupo de artistas ou qualquer seletividade, mas para facilitar a efetivação das políticas públicas que já estão indicadas no Sistema Nacional de Cultura e na Política Nacional Aldir Blanc, principalmente através do fortalecimento do Conselho Municipal de Políticas Culturais e da construção coletiva do nosso Plano de Cultura de Mossoró.

Adoraria dizer que uma mulher na Secretaria de Cultura foi capaz de dar voz aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura de Mossoró, sem perseguições, e construído junto conosco o Plano de Cultura do município, e colaborado para o fortalecimento do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Isso já seria um legado imenso, secretária Janaína, e a garantia que na próxima troca de secretário já teríamos avançado para não termos nenhum prejuízo. Isso, o tempo mostrará se a nova secretaria seguirá o modelo do seu secretário anterior ou contribuirá com o sofrido setor cultural de Mossoró.

Abraços e há braços!

Dionízio do Apodi.

*É artista em Mossoró.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

 

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A lei de migração no brasil e o acordo de repatriação do Brasil com os Estados Unidos da América

Por Rogério Tadeu Romano*

Entrou em vigor, no dia 21 de novembro de 2017, a nova Lei de Migração, em substituição ao Estatuto do Estrangeiro, legislação oriunda do regime militar que abordava a migração do ponto de vista da segurança nacional.

Um dos princípios contidos na lei, por exemplo, é a “não discriminação em razão dos critérios ou dos procedimentos pelos quais a pessoa foi admitida em território nacional”.

Passa-se a ter, pela Lei, uma visão mais humanista na matéria consentânea com direitos e garantias constitucionais.

O eixo central da nova lei é a proteção de direitos humanos na temática das migrações, intuída já na escolha da epígrafe: trata-se de uma lei de migração, aplicando-se ao migrante que vive no Brasil e, inclusive, ao brasileiro que vive no exterior. O reconhecimento da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos como princípio de regência da política migratória brasileira (artigo 3º, I) é decorrência da proteção da dignidade humana, vetor axiológico da Constituição (artigo 1º, III) e dos tratados de direitos humanos celebrados pelo Brasil e princípio constitucional impositivo.

Visando facilitar a regularização dos migrantes que entram no país, foram trazidas as seguintes novidades: i) racionalização das hipóteses de visto (com destaque para o visto temporário para acolhida humanitária); ii) previsão da autorização de residência; iii) simplificação e dispensa recíproca de visto ou de cobrança de taxas e emolumentos consulares, definidas por mera comunicação diplomática. Ainda, os integrantes de grupos vulneráveis e indivíduos em condição de hipossuficiência econômica são isentos do pagamento de taxas e emolumentos consulares para concessão de vistos ou para a obtenção de documentos para regularização migratória.

Importante inovação é o regramento do impedimento de ingresso. Foi assegurado que ninguém será impedido de ingressar no País por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertinência a grupo social ou opinião política, possibilitando-se a responsabilização dos responsáveis pela prática de atos arbitrários na zona primária de fronteira.

Migrar é um direito e esta é a essência da nova Lei. Deve ser editado decreto com objeto de regulamentar a Lei.

Diversas foram as alterações promovidas pela Lei com relação a situação do imigrante no país.

Ficou mantida a proibição de exercício de atividade remunerada ao portador de visto de visita, porém com a facilitação em transformar para autorização de residência dentro do território brasileiro.

A concessão de vistos temporários para acolhida humanitária foi institucionalizada com a nova lei, que dá visto de um ano “ao apátrida ou ao nacional de qualquer país” em “situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses.”

Os vistos temporários poderão ser concedidos em 10 (dez) hipóteses, sendo que a concessão para trabalho está inserida nesta previsão. Dependerá de regulamento posterior os requisitos para sua concessão. Poderá ser concedido ao imigrante que venha exercer atividade laboral, com ou sem vínculo empregatício, desde que comprove oferta de trabalho, dispensando esta exigência se o imigrante comprovar titulação em curso de ensino superior ou equivalente.

O decreto adia a regulamentação dos vistos e autorizações de residência por motivos humanitários, que são grandes inovações da Lei de Migração. No artigo 36, o texto determina que um “ato conjunto dos Ministérios das Relações Exteriores, da Justiça e Segurança Pública e do Trabalho definirá as condições, prazos e requisitos para emissão do visto”. Tal sentido que o regulamento deu à Lei, certamente, poderá burocratizar tal procedimento, o que poderá demandar ajuizamento de diversos mandados de segurança por eventuais atos omissivos.

A autorização de residência poderá ser concedida para trabalhos, estudos, missão religiosa, reunião familiar e investimentos, dentre outros. Os procedimentos para autorização de residência serão dispostos em regulamento.

Os vistos de visita e cortesia poderão ser transformados em autorização de residência.

Há a criação, ainda, do visto de caráter humanitário, concedido a pessoas oriundas de países em situações de crise. Com a vinda nos últimos anos de haitianos e senegaleses para o Brasil, o Conselho Nacional de Migração chegou a abrir uma portaria para concessão de vistos humanitários, mas, sem caráter de lei, a decisão dependia da vontade do governo.

A Polícia Federal continuará responsável pela fiscalização marítima, aeroportuária e de fronteiras em relação à presente lei nos termos da Constituição.

A nova Lei de migração proíbe no artigo 123, expressamente, a privação de liberdade por razões migratórias.

O decreto, no entanto, tem aspectos claramente contrários à própria Lei de Migração, como a previsão de prisão do migrante que será deportado, quando o artigo 123 da lei expressamente proíbe privação de liberdade por razões migratórias.

Tal norma secundária afronta a Constituição. A uma, porque a lei não a instituiu; a duas, porque afronta o princípio da reserva legal, já que há reserva de Parlamento para a matéria.

Outro dispositivo no decreto de constitucionalidade duvidosa se refere à regulamentação da reunião familiar de solicitantes de asilo político –pelo decreto, os familiares precisam estar em território nacional. Na maioria das vezes, no entanto, solicitantes de asilo político chegam ao país sozinhos, em fuga. A norma, portanto, fere a razoabilidade, razão pela qual deve ser extirpada.

O Brasil é o único país da América do Sul que ainda não garante direitos políticos (votar e ser votado) aos imigrantes em nenhum nível: municipal, regional ou nacional. Em todos os outros países do sub-continente os imigrantes têm direito a participação eleitoral em um ou mais níveis. Observa-se, entretanto, que tal mudança não poderia estar contida na Lei de Migração, por consistir em uma modificação da Constituição, o que só pode ser alcançado através de uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional).

O artigo 48 obriga o chefe da unidade da Polícia Federal a representar perante um Juízo, “respeitados os direitos à ampla defesa e ao devido processo legal”. Na prática inviabiliza deportações pela PF, por discricionariedade, sem ouvir o Judiciário, o que caracterizaria afronta a garantia constitucional.

São medidas de retirada compulsória (art. 47): repatriação; deportação; e expulsão. Em todos os casos, deve-se observar os dispositivos da Lei 9.474/97 (Estatuto dos Refugiados) e os tratados ratificados pelo Brasil sobre a proteção jurídica aos apátridas.

A REPATRIAÇÃO (art. 49) consiste em medida administrativa de devolução de pessoa em situação de impedimento (impedido de ingressar em território nacional pela fiscalização fronteiriça – DPF, em razão da ausência de documento ou visto, por exemplo) ao país de procedência ou de nacionalidade. Comunicação imediata do ato de repatriação deverá ser feito à autoridade consular do país de procedência ou de nacionalidade do migrante ou visitante a ser repatriado. A lei veda (art. 49, par. 4) medida de repatriação à pessoa em situação de refúgio ou de apatridia e ao menor de 18 anos desacompanhado, não podendo haver qualquer devolução para país em situações de risco à vida.

A DEPORTAÇÃO (art. 50) consiste na retirada compulsória de pessoa que se encontre em situação migratória irregular em território nacional, e deve ser precedida de notificação pessoal ao deportando apontando as irregularidades e o prazo para a regularização. Essa notificação não impede a livre circulação em território nacional. Vencido o prazo sem que se regularize a situação migratória, a deportação poderá ser executada. Prevê-se que a DPU (Defensoria Pública da União) deverá prestar assistência jurídica ao deportando nos procedimentos administrativos de deportação, em respeito aos princípios da ampla defesa e do contraditório. Além disso, reproduzindo a regra do Estatuto do Estrangeiro, “não se procederá à deportação se a medida configurar extradição não admitida pela legislação brasileira” (art. 53). Esta será precedida de notificação pessoal do deportando, sendo que será ofertado um prazo de, no mínimo, 60 (sessenta) dias, prorrogável por igual período, para sua regularização migratória. Será assegurado o contraditório e a ampla defesa, com a garantia de recurso administrativo com efeito suspensivo, ou seja, a medida não poderá ser executada enquanto não houver decisão final da administração.

A EXPULSÃO (art. 54) consiste em medida administrativa de retirada compulsória de migrante/visitante do território nacional, com impedimento de reingresso, na hipótese de condenação judicial transitada em julgado relativa à prática de: I – crime de genocídio, crime contra a humanidade, crime de guerra ou crime de agressão; ou II – crime comum doloso passível de pena privativa de liberdade.

Não se procederá à repatriação, à deportação ou à expulsão de nenhum indivíduo quando subsistirem razões para acreditar que a medida poderá colocar em risco a vida ou a integridade pessoal.

O artigo 50, em seus parágrafos 1º, 2º, 3º e 4º, institui prazo de 60 dias (renováveis por igual período) para a deportação, retirando da PF o poder de deportação sumária.

O artigo 51, caput e parágrafo 1º, abre espaço para a Defensoria Pública da União poder exercer a devida defesa do estrangeiro.

O artigo 55, impede a expulsão quando o ilegal tiver filho brasileiro, ou cônjuge e companheiro residente no Brasil.

 O artigo 75, inclusive, permite o reconhecimento do filho depois da notificação de expulsão.

A nova Lei de Migração permite ao estrangeiro organizar e participar de reuniões para agremiação política, por força do princípio de liberdade. A prisão por exercer atividades de natureza política já teria sido revogada pela Constituição de 1988.

A Lei de migração ainda prevê normas sobre o asilo político e o refúgio.

Para que uma pessoa possa ser considerada asilada política, é fundamental que ela esteja sendo perseguida por motivos políticos em seu país de origem. Para receber o benefício, o solicitante de asilo não pode ter cometido crime comum ou estar em aguardo de julgamento relacionado a um crime comum.

Diferente do asilo, que somente se refere a uma perseguição política, o refúgio pode ter relação com os mais diferentes tipos de perseguição: de etnia, religião, nacionalidade, grupo social, convicção política, entre outros. O refúgio também pode ser solicitado quando há uma situação de guerra ou conflito interno no país de origem.

Outra grande diferença é que, enquanto a decisão de receber um asilado político é exclusivamente do Estado, consistindo em uma relação direta deste com o indivíduo, o refugiado faz parte de um grupo que sofre perseguição por um mesmo motivo, não cabendo ao Estado decidir de forma política acolher ou não esses indivíduos que chegam a seu território após fugir de uma situação de risco.

A regulamentação internacional referente ao refúgio se baseia principalmente na Convenção de Genebra de 1951, que, dentre outros benefícios, garante aos refugiados o direito de não serem expulsos ou retornados a seus países de origem enquanto permanecerem os riscos à sua vida ou liberdade.

A Lei brasileira reconhece o direito de circular livremente, pois a todos é dado o amplo direito de ir e vir.

A Lei também garante que o estrangeiro não deve ser deportado ou repatriado se correr risco de morrer ou de sofrer ameaças à sua integridade pessoal ao retorna ao país de origem.

A nova Lei de Migração prevê uma anistia para migrantes sem documentos que entraram no país até 6 de julho de 2016, conforme consta no artigo 118. Seu objetivo é bem claro: ajudar a regularizar os migrantes que já contribuem com o Brasil e possuem uma vida estabelecida por aqui, mas ainda se encontram em situação indocumentada – causada, em grande parte, pelos empecilhos presentes no Estatuto do Estrangeiro.

O uso indiscriminado de algemas e correntes viola os termos de acordo com os EUA, que prevê o tratamento digno, respeitoso e humano dos repatriados.

Discute-se, por fim, o caso dos brasileiros que tem sido repatriados dos Estados Unidos para o Brasil, por conta da nova política pública adotada pelo novo governo estadunidense na matéria.

Segundo o portal Migalhas, em 27,1,25, o acordo citado, firmado entre Brasil e Estados Unidos em 2017, proíbe o uso “indiscriminado” de algemas e correntes em brasileiros deportados, de acordo com informações do ex-ministro das Relações Exteriores Aloysio Nunes, que atuou no governo Temer.

Ainda ali se disse:

“Em entrevista ao portal UOL, Aloysio explicou que o tratado prevê que apenas indivíduos que esgotaram todas as possibilidades de recurso na Justiça norte-americana podem ser incluídos nos voos de repatriação. Os deportados, em sua maioria, são pessoas detidas por entrar de forma irregular nos Estados Unidos e que já não possuem alternativas legais para permanecer no país.

Desde 2018, voos de repatriação vêm sendo realizados para evitar que esses brasileiros permaneçam presos por tempo indeterminado em centros de detenção norte-americanos. O tratado também estabelece que o governo brasileiro não autoriza a inclusão nos voos de deportação de pessoas que ainda tenham chances de revisão de suas sentenças.

Além disso, o documento garante diretrizes específicas para o “tratamento digno, respeitoso e humano” dos repatriados, em linha com os valores de direitos humanos defendidos pelo Brasil.”

Em verdade, o uso indiscriminado de algemas e correntes viola os termos de acordo com os EUA, que prevê o tratamento digno, respeitoso e humano dos repatriados.

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

 

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O sistema do ius soli e a décima quarta emenda à constituição norte-americana

Por Rogério Tadeu Romano*

Como ensinou Oscar Tenório (Direito internacional, privado, 1942, pág. 115) “pelo sistema do ius soli, a nacionalidade é estabelecida pelo lugar de nascimento, independentemente da nacionalidade dos pais.”

Esse sistema foi revigorado no continente americano sob outras formas e emprestando uma tendência liberal e democrática.

Ainda como lecionou Oscar Tenório (obra citada, pag. 116)), “a formação e o povoamento dos países americanos exigiram como necessidade de defesa político-nacional a adoção do ius soli. Disse ele: “Afluírem às nossas plagas caudalosas correntes imigratórias, de seculares sentimentos e tradições europeias, vigiadas pelos respectivos governos. Se as legislações americanas estipulassem o ius sanguinis, dentro de algumas gerações brotariam infinitas colônias estrangeiras, como ameaças à soberania.”

Assim, como, por exemplo, no Brasil, o “jus soli“, que assegura nacionalidade com base no local de nascimento e não na ascendência familiar, está na 14ª emenda à Constituição estadunidense.

Como dito, o jus soli foi forjado principalmente visando ao povoamento de países do Novo Mundo, como Brasil, Estados Unidos, Canadá, Argentina, Uruguai entre outros, que receberam o grande fluxo das grandes emigrações europeias dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX e primeira metade do XX.

Ainda hoje, a maioria dos países americanos adota o jus soli, embora tenha havido crescentes movimentos na direção de limitar certas ações nascidas da imigração ilegal, principalmente nos EUA e Canadá.

A nacionalidade é conceituada como o vínculo jurídico-político entre o Estado e um indivíduo, o qual torna este um membro integrante da comunidade que constitui o Estado.

A forma de aquisição originária, também conhecida como aquisição primária, é adquirida por meio de um fato natural, o nascimento. Ela resulta no chamado cidadão nato.

Dito isso, informou o portal de notícias da BBC News Brasil, em 21.1.25, que “o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, disse que planeja acabar com a “cidadania por direito de nascença” — a cidadania americana automática concedida a qualquer pessoa nascida nos EUA.”.

Minutos após sua posse, ele assinou uma ordem executiva abordando a definição de cidadania por direito de nascença, embora os detalhes até agora não estejam claros.

A iniciativa do republicano foi oficializada como uma ordem executiva, assinada nas primeiras horas do governo. Ela se compromete a bloquear a política de cidadania por direito de nascença, que garante que bebês nascidos no país sejam cidadãos norte-americanos automaticamente.

Essa medida, como dito, é inconstitucional, por afrontar a 14ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos.

Dezenas de estados, cidades e organizações já entraram com ações judiciais contra a medida.

A matéria deve ser objeto de análise pela Suprema Corte norte- americana. que estabelece o princípio da “cidadania por direito de nascença”:

A 14ª Emenda foi adotada em 1868, após o fim da Guerra Civil. A 13ª Emenda aboliu a escravidão em 1865. Já a 14ª resolveu a questão da cidadania de ex-escravos libertos nascidos nos Estados Unidos.

Decisões anteriores da Suprema Corte, como Dred Scott vs Sandford em 1857, decidiram que os afro-americanos nunca poderiam ser cidadãos dos EUA. A 14ª Emenda anulou isso.

Acentuou, a propósito, o portal Wikipedia sobre o tema:

Wong Kim Ark, que nasceu em São Francisco em 1873, teve negada a reentrada nos Estados Unidos após uma viagem ao exterior, sob a Lei de Exclusão Chinesa, uma lei que proíbe praticamente toda a imigração chinesa e proíbe imigrantes chineses de se tornarem cidadãos norte-americanos naturalizados. Ele contestou a recusa do governo em reconhecer sua cidadania, e a Suprema Corte decidiu a seu favor, sustentando que a linguagem de cidadania na Décima Quarta Emenda abrangia as circunstâncias de seu nascimento e não poderia ser limitada em seu efeito por um ato do Congresso.

O caso destacou divergências sobre o significado preciso de uma frase na Cláusula de Cidadania — a saber, a disposição de que uma pessoa nascida nos Estados Unidos que esteja “sujeita à jurisdição dos mesmos” adquire cidadania automática. A maioria da Suprema Corte concluiu que essa frase se referia à obrigação de obedecer à lei dos EUA; com base nisso, eles interpretaram a linguagem da Décima Quarta Emenda de uma forma que concedeu cidadania dos EUA a crianças nascidas de estrangeiros (um conceito conhecido como jus soli), com apenas um conjunto limitado de exceções baseadas principalmente no direito comum inglês. Os dissidentes do tribunal argumentaram que estar sujeito à jurisdição dos Estados Unidos significava não estar sujeito a nenhuma potência estrangeira — isto é, não ser reivindicado como cidadão por outro país via jus sanguinis (herdar a cidadania de um dos pais) — uma interpretação que, na visão da minoria, teria excluído “os filhos de estrangeiros, por acaso nascidos deles enquanto passavam pelo país”.

Em uma decisão de 6–2, emitida em 28 de março de 1898, a Suprema Corte decidiu que Wong Kim Ark adquiriu a cidadania americana ao nascer e que “a cidadania americana que Wong Kim Ark adquiriu ao nascer nos Estados Unidos não foi perdida ou retirada por nada que tenha acontecido desde seu nascimento”. A decisão da Corte foi escrita pelo Juiz Horace Gray e foi acompanhada pelos Juízes David J. Brewer , Henry B. Brown , George Shiras Jr. , Edward Douglass White e Rufus W. Peckham (Wikipedia).

Sobre o tema, lembrou João Ozorio de Melo, em artigo, em 21.1.25, em artigo para o portal Consultor Jurídico, que “a Suprema Corte abriu três exceções à sua decisão de 1898, das quais apenas uma permanece em vigor: filhos de diplomatas estrangeiros não têm direito à cidadania americana por nascimento porque seus pais “não estão sujeitos à jurisdição dos Estados Unidos”. Eles têm imunidade diplomática às leis americanas.

Mas, ainda como lembrou João Ozorio de Melo, naquela manifestação:

“O decreto do presidente Trump, que proíbe órgãos do governo de “emitir documentos reconhecendo a cidadania dos Estados Unidos ou de aceitar documentos emitidos por órgãos estaduais ou municipais” de filhos de imigrantes “não sujeitos à jurisdição dos Estados Unidos”, aponta a direção da estratégia da equipe presidencial, na via judicial, em dois de seus parágrafos:

“A 14ª Emenda nunca foi interpretada para estender a cidadania universalmente a todos os nascidos nos Estados Unidos. A 14ª Emenda sempre excluiu da cidadania por direito de nascença pessoas que nasceram nos Estados Unidos, mas não são ‘sujeitas à jurisdição do mesmo’. Consistente com esse entendimento, o Congresso especificou ainda mais por meio de legislação que ‘uma pessoa nascida nos Estados Unidos e sujeita à jurisdição do mesmo’ é um nacional e cidadão dos Estados Unidos ao nascer, 8 U.S.C. 1401, geralmente refletindo o texto da 14ª Emenda”;

“Entre as categorias de indivíduos nascidos nos Estados Unidos e não sujeitos à jurisdição do mesmo, o privilégio da cidadania dos Estados Unidos não se estende automaticamente a pessoas nascidas nos Estados quando a mãe dessa pessoa estava ilegalmente presente nos Estados Unidos e o pai não era cidadão dos Estados Unidos ou residente permanente legal no momento do nascimento da referida pessoa, ou (2) quando a presença da mãe dessa pessoa nos Estados Unidos no momento do nascimento da referida pessoa era legal, mas temporária (como, mas não se limitando a, visitar os Estados Unidos sob os auspícios do Programa de Isenção de Visto ou visitar com um visto de estudante, trabalho ou turista) e o pai não era cidadão dos Estados Unidos ou residente permanente legal no momento do nascimento da referida pessoa”.

 É interessante notar que, apesar da oposição à imigração fomentada por Trump e a direita, é graças a ela que os EUA estão numa situação demográfica e econômica muito mais confortável do que a de outros países ricos., como bem concluiu o portal de notícias da Folha, em 23.1.25, em editorial.

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.