Por Rogério Tadeu Romano*
I – A ANVISA E O PAPEL DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
Horas após o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciar o começo da vacinação no Estado em 25 de janeiro, a ANVISA) reforçou, em nota, que só libera o uso da vacina após a análise de diversos documentos.
Entre os papéis exigidos, lembra a ANVISA, estão os de dados de “fase 3” da pesquisa para desenvolvimento do produto, que ainda não foram apresentados pelo Instituto Butantã, laboratório que participa do desenvolvimento da Coronavac em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac, como informou o site do Estadão, em 7 de dezembro do corrente ano.
Isso quer dizer que qualquer vacinação no Brasil deverá ser aprovada pela ANVISA.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) é uma autarquia fundada pela Lei 9.782/99 com o intuito de exercer o controle sanitário dos serviços e produtos que são submetidos à vigilância sanitária, sejam eles nacionais ou importados, como por exemplo os alimentos, medicamentos, cosméticos, derivados de tabaco, entre outros.
Caberá à ANVISA o papel determinante de aprovação com relação a aplicação de vacinas que combatam o terrível mal da COVID-19.
O papel da ANVISA, dentro de uma devida discricionariedade técnica, é de ser agente normatizador na área de saúde.
Como informou a Carta Capital, “no Brasil, quatro vacinas na fase 3 – a que abrange a testagem em voluntários – tiveram estudos clínicos autorizados pela Anvisa: a de Oxford, desenvolvida também pelo laboratório Astrazeneca e pela Fiocruz; a Coronavac, da Sinovac e Instituto Butantan, a Pfizer-Wyeth e a Janssen-Cilan, da Johnson & Johnson (atualmente em pausa para estudo de efeitos adversos).”
As duas primeiras estão em fase de “submissão contínua”, o que permite que a Anvisa inicie a avaliação de dados do produto e de fases já concluídas da pesquisa enquanto outros dados são gerados para compor um dossiê final, afirmou a agência em nota a CartaCapital. “Para ambos, a Anvisa já avaliou os dados submetidos e emitiu exigências às empresas para complementação de informações e dados”.
Até o momento, o Ministério da Saúde tem acordos com os dois estudos. O anúncio mais recente é de terça-feira 20, quando a pasta confirmou a compra de 46 milhões de doses da Coronavac para o SUS.
Os principais objetivos da regulamentação como instrumento de regulação são:
- Subsídios às ações sanitárias.
- Diminuição de desigualdades resultantes dos conflitos trazidos pela relação de produção e consumo.
- Prevenir e evitar riscos à saúde de toda a população.
- Indução de comportamentos em benefício da coletividade.
- Transparência, harmonização e igualdade de tratamento.
A ANVISA, como as demais agências regulatórias, têm o poder de exercer uma função normativa secundária, e não primária, como faz o Legislativo, por lei, ou o Executivo, por medidas provisórias (com os limites de urgência e necessidade dados pela Constituição).
Não cabe ao legislador primário uma função regulatória. Esta cabe às agências reguladoras. Disse bem Justen Filho (Direito das Agências Reguladoras Independentes, 2002) que” a função regulatória (ou reguladora) visa realizar o gerenciamento dos múltiplos e antinômicos interesses da sociedade, traduzindo “em restrições à autonomia privada para evitar que o exercício abusivo de certas prerrogativas ponha em risco a realização de outros valores”.
Daí porque bem resumiu Carlos Roberto Siqueira Castro (A Constituição aberta e os direitos fundamentais, pág. 213) que a competência normativa exercida pelas Agências Reguladoras, inserida no sistema de separação de poderes e considerando-se a proeminência da instituição legislativa para a positivação das regras jurídicas, é inconfundível com o “poder regulamentar”, primário, de competência do chefe do Poder Executivo, que se faz através de regulamentos de execução (reproduzindo de forma analítica a lei, ampliando-a, se for o caso, e completando-a segundo o seu espírito e o seu conteúdo, sobretudo nos aspectos e detalhes que a lei expressa ou implicitamente outorga à esfera regulamentar). O poder regulamentar do Executivo, lembre-se, envolve regulamentos (decretos) de regulamentação e regulamentos de organização, não autônomos, pois a Constituição não os permite.
As Agências Reguladoras, verdadeiras autarquias, como é o exemplo da ANVISA, têm o poder de exercer uma função normativa secundária, desde que observadas as normas hierarquicamente superiores. Essa função normativa é secundária, repita-se.
Qualquer iniciativa que seja tomada, seja pelos governos estaduais ou municipais, sem o amparo da ANVISA, estará sujeita às penas da lei.
II – A QUESTÃO DA VACINAÇÃO
A Constituição de 1988 impõe ao Estado o dever de proteger a saúde das pessoas (art. 196), por meio de uma série de ações, dentre as quais a vigilância sanitária (art. 200, I). Portanto, a Constituição admite a vacinação compulsória, desde que haja indicação médica, com segurança ao cidadão e efetividade na proteção da coletividade. No Brasil, tal avaliação é de competência da ANVISA (que aprova a comercialização e uso de fármacos no país) e do Ministério da Saúde, com apoio da CONITEC (que incorpora novas tecnologias ao SUS).
Fala-se que a obrigatoriedade deve decorrer da exigência do certificado de vacinação para a prática de determinados atos, como viajar de ônibus ou avião, ou para a emissão de documentos oficiais.
Mas a obrigatoriedade quanto à vacinação somente virá de lei, norma típica primária.
No Brasil, promulgada em 1975, a Lei 6.259, que instituiu o Programa Nacional de Imunizações, já ressaltava a obrigação de se vacinar. Nela, há previsão até mesmo da edição de medidas estaduais — com audiência prévia do Ministério da Saúde — para o cumprimento das vacinações.
A Lei nº 6.259/75 foi regulamentada pelo Decreto nº 78.2314, de 12 de agosto de 1976, agregando o detalhamento da forma como a vacinação obrigatória deveria ser executada no Brasil. Conforme descrito no Art. 27 do regulamento, “serão obrigatórias, em todo o território nacional, as vacinações como tal definidas pelo Ministério da Saúde, contra as doenças controláveis por essa técnica de prevenção, consideradas relevantes no quadro nosológico nacional“.
O Decreto editado, de nº 78.231, tem natureza de regulamento de execução.
O Decreto dispõe ainda, no Art. 29, que é dever de todo cidadão submeter-se à vacinação obrigatória, juntamente com os menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade. A dispensa da vacinação obrigatória somente é permitida à pessoa que apresentar Atestado Médico de contraindicação explícita da aplicação da vacina.
Essa norma de 1975, como se lê daquele artigo 196 da Constituição, foi recepcionada pelo novo sistema constitucional de 1988, Constituição-Cidadã, que impõe a saúde como direito do cidadão, a ser exercido por ele.
A obrigatoriedade de vacinação de menores foi reforçada posteriormente pelo disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069/905 – que regulamentou o artigo 227 da Constituição Federal de 1988, visando estabelecer os direitos e a proteção integral a essa população. O ECA, no parágrafo único do Art. 14, estabelece que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias“.
A obrigatoriedade da vacinação representa uma proteção ao bem público comum da prevenção e promoção da saúde. Tal somente poderá ser flexibilizado, nos limites da razoabilidade e da proporcionalidade, quando não houver riscos relevantes para a saúde pública.
Sabe-se que o Supremo Tribunal Federal está a se debruçar sobre o assunto em sede de controle concentrado da constitucionalidade.
Se for confirmado o entendimento com relação a essa obrigatoriedade, ela virá através de medidas que visem a induzir a sociedade a aderir à vacinação à nível nacional, valorizando as regras da ciência, que têm conteúdo descritivo(alético), ao contrário das normas jurídicas cujo conteúdo é prescritivo.
Nâose pode obrigar ninguém a ser submetido a determinado procedimento médico. Porém, a opção individual não poderia sacrificar o direito coletivo à saúde, previsto na Constituição Federal. Portanto, quem não quiser tomar vacina, não poderia colocar em risco o restante da população.Será o reconhecimento de uma verdadeira solidariedade social que determine a universalização da vacinação.
III – O PAPEL DAS UNIDADES FEDERATIVAS
Por fim, cabe acrescentar que tal ação, à luz de uma política de vacinação, que existe desde a década dos 70, deverá ser nacional, necessariamente fulcrada na atuação conjugada da União, via ministério da saúde; estados membros; distrito federal e municípios.
Uma eventual medida provisória gestada pelo governo federal para comprar e centralizar a distribuição de todas as vacinas, antecipada pela imprensa, seria “desnecessária” e também como possível violação do Pacto Federativo, na medida em que retire, a favor da União e contra os demais entes federativos sua competência comum, à luz do artigo 23 da Constituição Federal.
Nessa linha de pensamento trago a elucidativa lição de Dalmo Dallari (Normas gerais sobre saúde: cabimento e limitações):
“No caso da Constituição brasileira de 1988 pode-se dizer que, em linhas gerais, mesmo sem atribuir superioridade à União sobre as unidades federadas, foram estabelecidos critérios que dão ao Legislativo federal a competência para legislar quando se considera conveniente uma disciplina legislativa uniforme para toda a Federação, o que implica certa centralização. Entretanto, não foi esquecida a hipótese de competência concorrente, ou seja, competência que não é exclusiva da União, além de se ter reconhecido que em determinados casos a competência pode ser exclusiva dos Estados ou dos Municípios. Para conhecimento do assunto, convém começar examinando a competência legislativa da União.
De acordo com o disposto no § 1º, quando se tratar de matéria em que a competência legislativa é concorrente a União somente poderá estabelecer normas gerais, deixando aos demais a legislação sobre pontos específicos. Evidentemente, nesse caso a legislação que tratar de aspectos especiais não poderá contrariar as normas gerais estabelecidas pela União. O § 2o. confere aos Estados uma competência suplementar para legislar sobre as matérias que tiverem sido objeto de norma geral federal e o § 3o. dá aos Estados competência legislativa plena para legislar sobre as matérias que não tiverem sido objeto de norma geral federal. Neste caso, entretanto, dispõe o § 4º que sobrevindo uma norma geral federal a lei estadual já existente que lhe for contrária terá suspensa sua eficácia, passando-se a aplicar a regra do § 1º.”
Como ficariam as normas gerais editadas pela União Federal?
Raul Machado Horta, um dos teóricos brasileiros que mais têm dedicado atenção ao tema do federalismo, considera que o constituinte de 1988 “enriqueceu a autonomia formal, dispondo que a competência da União consistirá no estabelecimento de normas gerais, isto é, normas não exaustivas, e a competência dos Estados se exercerá no domínio da legislação suplementar”. Complementando essa observação, oferece em seguida uma noção muito precisa: “A lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma moldura legislativa. A lei estadual suplementar introduzirá a lei de normas gerais no ordenamento do Estado, mediante o preenchimento dos claros deixados pela lei de normas gerais, de forma a afeiçoá-la às peculiaridades locais” (Estudos de Direito Constitucional, Del Rey, Belo Horizonte, 1995, págs. 419/420).
Concluiu Delmo de Abreu Dallari, naquele artigo citado:
“Em vista de tudo o que foi exposto, e tendo em conta, de modo especial, as questões relativas à saúde, pode-se concluir que a União tem duas espécies de competência legislativa. Uma delas é a competência para legislar sobre o que se pode dominar”sistema federal de saúde”, cuja existência decorre do disposto no artigo 23 da Constituição, segundo o qual”é da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: II. Cuidar da saúde e assistência pública…”. A par disso, a União pode legislar fixando normas gerais, tanto para todo o conjunto do sistema nacional de saúde, denominado sistema único. Com efeito, de acordo com o que foi estabelecido no artigo 24 da Constituição, “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: XII. Previdência social, proteção e defesa da saúde;” No tocante ao exercício dessa competência pela União, o § 1o. do artigo 24 dispõe que “no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais”.
Da combinação desses dispositivos pode-se concluir que é possível a existência de leis federais tratando de aspectos particulares do sistema federal de saúde, mas essas leis não têm qualquer interferência na legislação dos Estados e dos Municípios sobre os respectivos sistemas de saúde. A par disso, a União pode legislar sobre normas gerais de saúde, fixando princípios e diretrizes genéricas que serão de observância obrigatória pelos legisladores estaduais e municipais.”
*É procurador da República com atuação no RN aposentado.
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