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Um pedido à prefeita Rosalba Ciarlini

Blog Carlos Santos

Prefeita Rosalba Ciarlini,

Peço-lhe que ordene os editores e responsáveis por blog apócrifo que atende aos legítimos interesses políticos da senhora e do seu grupo, mesmo sob anonimato (ou máscaras), a retirada do ar de matéria chula, de duplo sentido, que ridiculariza em tom misógino e objetificação sexual a governadora Fátima Bezerra (PT).

Esse, com certeza, não deve ser um prazer pessoal à senhora, mesmo que anime e galvanize centenas ou milhares de internautas e eleitores, às gargalhadas, com essa desprezível postagem.

Lembro bem à época em que a senhora foi atacada de forma vil nos anos 90 num jornal impresso de Mossoró, sem que o algoz a poupasse como mulher e mãe, a mãe de jovens/crianças como Kadu (está ouvindo?), Marlus, Karla e Lorena.

Com certeza, isso não é jornalismo, não é política nem deve ser tratado como marketing político-eleitoral. É vômito, esgoto. Insalubridade moral.

Por respeito não apenas à Fátima, mas principalmente a todas as mulheres, às mães, filhas, irmãs, avós, bisavós, não publicamos aqui o link e o print da postagem em relevo – que está sendo disparada há horas em grupos de WhatsApp, como estratégia de divulgação em massa.

Não concorreremos para emporcalhar mais ainda a Internet nem nodoar esta página que é sempre crítica, mas nunca baixa e imunda.

É só.

Carlos Santos – Editor do Blog Carlos Santos.

Nota do Blog do Barreto: faço minhas as palavras do mestre Carlos Santos. Vamos manter um bom nível nas críticas.

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Carta de Manuela d’Ávila à Joyce Hasselmann

Cara Joice,

Como vai? Espero que se sinta um pouco melhor e mais forte no dia de hoje. Nunca estivemos juntas mas recentemente participamos, através do telefone, da gravação do podcast do “agora que são elas”. Rimos um bocado em nosso debate.

Naquela ocasião você ainda era líder do governo e divergia de mim com relação a existência do machismo no congresso nacional.
Bastava “se impor no grito que tudo estaria resolvido”. Fico sinceramente triste por você ter percebido, na prática, que aquilo que eu dizia era real de uma maneira tão brutal e cruel. O machismo existe ali porque existe no mundo.

Eu lhe escrevo para ser solidária com tudo o que você tem passado.

Não é fácil. Não é mesmo nada fácil ser mulher e cair nas mãos da milícia virtual que governa o Brasil.
Não é fácil ver como eles envolvem aos nossos filhos para buscar nos destruir emocionalmente. Eles buscam nos liquidar, Joice, nos levar as lágrimas. Como te levaram na tribuna ontem, como me levam quase todos os dias há longos quatro anos.

Eles fazem isso, Joice, pra depois nos chamarem de fracas. Eles querem provar que não somos capazes de desempenhar aquilo que nos propomos.

Eu entendo bem o que você está sentindo. No ano de 2015, Joice, enquanto você estava nos caminhões de som da Avenida Paulista, ao lado daqueles meninos que divulgavam imagens terríveis da Presidente Dilma, eu estava grávida e vivia o momento mais feliz da minha vida. Aí eles, aqueles meninos, inventaram que eu fiz uma viagem – com dinheiro público – para Miami para comprar um enxoval para Laura. Eu não conheço Miami, Joice. Nem sequer fiz enxoval. Jamais viajaria com dinheiro público. Para espalhar a mentira, eles utilizaram uma foto minha, com meu marido e meu enteado. O Gui tinha onze anos. Por isso, Joice, sei bem como é horrível ver o filho de onze anos receber mentiras pela internet a respeito da mãe. E digo mais: sei como é quando ele recebe mentiras sobre si próprio. Pouco tempo depois, Joice, em outubro, Laura tinha 45 dias e tomou um tapa durante um show de meu marido. Ela tinha 45 dias e uma mulher bateu nela!!!! Sabe por que? porque acreditou que o pano que a enrolava havia sido comprado em Miami.

Essa é uma parte das histórias que marcam minha maternidade.

Esses dias eu chorei muito, Joice. Laura me perguntou se vocês, sim, vocês porque você ainda era líder do governo Bolsonaro, se vocês do governo odiavam também a nossa gatinha. Ela me disse que sabia que vocês odeiam a mim e a ela (pelo número de vezes que foi agredida). Mas ela precisava saber se a gata estava protegida da ira física que sofremos em função daquilo que as milícias virtuais constroem com suas mentiras.

Isso não acontece só comigo. Maria do Rosário viu sua filha exposta. Jean Wyllys saiu do Brasil. Marielle Franco tem sua memória destruída todos os dias. Não é por nada que dedico parte de minha vida ao combate de fakenews e a contar essas histórias. Para que as pessoas tenham ideia do que passamos

Joice, eu sou sinceramente solidária a você porque sei o que você está vivendo.

Mas queremos e precisamos que você fale. Sobre voce, claro. Sobre sua dor. Diferente de mim, que fui vítima e pouco sabia sobre meus algozes, você esteve com eles até a pouco. você pode e deve falar. Você pode informar a polícia, ao poder judiciário e a opinião pública tudo o que sabe sobre essa gangue que espalha mentiras para destruir as pessoas e que assim, governar ao Brasil.

Precisamos que você faça isso para que nenhuma outra pessoa passe pelo estamos passando, para que mais nenhuma filha ou filho sofra em meio a esse jogo sujo.

Um abraço solidário,
Manuela d’Ávila

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A civilização está muito doente. Há saída?

 

Desesperar, jamais.
Aprendemos muito nestes anos…

Do balanço de perdas e danos.
Já tivemos muitos desenganos.
Já tivemos muito que chorar…

Mas agora acho que chegou a hora de fazer valer o dito popular…

Ivan Lins

 

Por Robério Paulino

A sociedade humana está profundamente doente. Há uma grave crise moral e de perspectiva da civilização. Que futuro queremos? Que tipo de sociedade almejamos? O modo de vida humano hoje, sob o capitalismo, é sustentável para o planeta? Temos o direito de extinguir milhares de espécies para nosso bem-estar? Parte importante das populações de alguns países questiona se a limitada democracia parlamentar dos regimes capitalistas é desejável ou é melhor regressar a regimes autoritários que restaurem a “ordem” perdida. Uma sociedade alternativa, como o socialismo, ainda é possível? A saída é individual ou coletiva? Trata-se de um declínio de valores morais e de profunda insegurança quanto ao futuro comum da humanidade.

Apesar de todas as desigualdades sociais, raciais, de gênero, ainda evidentes sob o capitalismo, de todos os desastres humanos e guerras observados ainda no século XX, da volta da elevação da pobreza e dos retrocessos nos direitos sociais dos últimos 40 anos, da crise de perspectiva discutida neste texto, a população humana está muito maior que há 100 anos, mais rica, mais saudável e mais longeva. Os avanços na tecnologia e na comunicação, nos transportes, na educação, na medicina e na saúde, nos remédios e vacinas, na agricultura e na produção de alimentos, se vistos em perspectiva, são indiscutíveis e impressionantes. No entanto, o sapiens, o animal que se tornou um deus, o senhor do planeta, subjugando as demais espécies, como disse Yuval Noah Harari em seu penúltimo livro, não sabe o que quer, aonde vamos, e destrói sua própria casa.

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Existe um profundo mal-estar na sociedade global, um clima de desilusão, pessimismo e ansiedade, uma grande incerteza em relação ao futuro próximo que nos aguarda, se ele será melhor ou se estamos caminhando para o abismo social e ambiental, talvez para um retorno à barbárie, um futuro de ódio e intolerância, de mais desigualdade, conflitos e novas guerras. Essa crise moral e civilizacional se estende a todos os setores, países, classes e grupos sociais e inclusive aos movimentos socialistas, às esquerdas. Ao contrário do que observava na segunda metade do século XIX, um clima de grande otimismo em relação a um futuro melhor, hoje há um clima geral de desencanto, de grande apreensão quanto ao destino da civilização. Todos sabem que algo está errado. Ouvimos muitos dizerem que desistiram do ser humano.

Na Europa, continente que se supunha mais avançado, onde nasceram grande parte das ideias políticas que embasam a civilização global atual, berço da Ciência moderna, das ideias e lutas sociais organizadas, observa-se a volta de governos nacionalistas autoritários e mesmo fascistas em vários países, da intolerância racial, do ódio e da xenofobia, que muitos imaginavam já serem parte do passado, depois da dolorosa experiência nazifascista, com a qual a humanidade parecia ter aprendido. Esse continente, que invadiu quase todo o mundo nos últimos 500 anos, que teve milhões de refugiados da ocupação nazista bem acolhidos em outros países durante a Segunda Guerra Mundial, hoje dá as costas em grande medida para os imigrantes que lhe pedem socorro, numa grande demonstração de insensibilidade, indiferença e desumanidade.

Após uma nova experiência frustrante com os democratas, os EUA elegeram um presidente conservador e bruto, Trump, eleito explorando a insatisfação e o sentimento geral contra a decadência, a desindustrialização do país, o desemprego e a insegurança, que Barack Obama, em sintonia com Wall Street, se negou e enfrentar. Este país, fundado sobre a invasão das terras alheias nos últimos 5 séculos, sobre a morte de milhões de indígenas e a escravidão negra, hoje ergue altas muralhas contra os imigrantes. Desde os anos 80 com Bush, os governos destruíram praticamente qualquer sistema de proteção social e, nas periferias de várias de suas grandes cidades, centenas de milhares voltaram a viver em barracas e acampamentos, sem fonte de renda fixa ou qualquer proteção social.

Na Ásia, a China regressou ao capitalismo e poderá ser a primeira economia mundial em poucos anos, mas seu elevado desenvolvimento econômico e elevação do nível de escolarização e de vida de sua imensa população de 1,4 bilhão de pessoas ocorre ao mesmo tempo que uma destruição ambiental sem precedentes, com a continuidade de um regime ditatorial e com suas centenas de milhões de filhos únicos educados já na lógica capitalista do enriquecimento pessoal e não mais em princípios igualitários.

No Brasil, observa-se uma onda de polarização política, com a manipulação da população pelos meios de comunicação, com eleições sendo decididas com manobras contra a candidato melhor colocado e o envio de milhões de fake news, ou seja, uma indústria de mentiras. Com a ajuda de uma imprensa golpista, o país elegeu um candidato que confessou para todo país em rede nacional na votação do impeachment, antes das eleições, ser defensor da tortura, um crime internacionalmente condenado, sem que isso tivesse maior importância para os milhões que o ouviram e votaram nele assim mesmo, o que denota um retrocesso moral e civilizatório no país. O clima doentio de polarização política destrói grupos, amizades, divide famílias.

No terreno ambiental, a degradação do planeta é assustadora e muito mais rápida do que previam os mais pessimistas dos cientistas. Muitos ecossistemas, espécies, populações selvagens, diversas variedades de plantas e animais estão diminuindo ou desaparecendo anualmente. Segundo relatórios de cientistas sérios, as emissões de gás carbônico dobraram desde 1980, levando a um aumento das temperaturas do mundo em pelo menos 0,7 C. Os mares e rios transformam-se grandes depósitos de lixo.  O imediatismo, a lógica estimulada pelo capital e suas mídias, de que tudo que importa é lucro e o consumo, a satisfação imediata e a afirmação pessoal, dissolve o espírito coletivo, a coesão social e reduz o senso de preservação de nossa casa comum.

Com o retorno do neoliberalismo mais voraz e a desindustrialização no Ocidente, as desigualdades voltaram a crescer em quase todo o mundo (talvez exceção da China e poucos países). Mas isso, até agora, não alimentou um novo ciclo de nítida luta de classes. Uma grande proporção das lutas e conflitos sociais têm tomado, antes e infelizmente, a forma de nacionalismo, racismo e xenofobia contra imigrantes, de rivalidades étnicas e religiosas que destroem países inteiros, de homofobia e outras patologias.

Infelizmente, cresce, mesmo entre os trabalhadores e os mais pobres, a visão imediatista, a crença de que ganhar é a única coisa que conta e de que ganhar – ainda que por quaisquer meios, mesmo não tão lícitos – é, em última instância, a única coisa correta a fazer. Honestidade virou artigo raro. No Brasil essa lógica ficou conhecida como Lei de Gerson. Olhando para esse quadro, o cientista político e historiador Achille Mbembe, hoje professor na Universidade de Witwatersrand, África do Sul, afirmou recentemente, de forma pessimista, que a era do humanismo está terminando, ou seja, que vivemos um uma época de retrocesso moral e civilizacional.

Na música e na cultura, ao contrário do espírito de protesto, de luta pela paz, esperança e solidariedade social entre os povos, de valores mais elevados, que se observava em parte importante da produção cultural nos anos 50 e 60 do século XX (Imagine, John Lennon, Blowin’ in the wind, Bob Dylan, Apesar de você, Chico Buarque de Holanda), hoje o que se constata é em grande medida uma banalização e a quase exclusiva erotização das letras das músicas e da produção cultural.

Em todo o mundo, os elementos de desagregação social e corrosão moral são evidentes. Nessa nova modernidade, de avanço e rápida mudança nos costumes, quebra de preconceitos, por um lado, mas por outro de relações mais efêmeras, hoje realizadas em grande medida pelas redes sociais, tudo é líquido, para usar as palavras de Zigmunt Bauman. Das amizades virtuais até os valores como solidariedade, igualdade, generosidade, condescendência, compaixão, respeito, tudo é descartável, efêmero. Declinam o sentimento coletivo, de responsabilidade social, as ideias de uma sociedade mais igualitária e solidária, tolerante e generosa, que acolha os mais pobres e mais frágeis. Estimula-se e cresce o individualismo, a indiferença, a desonestidade, o salve-se quem puder.

Nesse ambiente de insegurança econômica, corrosão moral e desesperança, surgem as tentações para a volta de governos autoritários, cresce o espaço para as seitas e religiões messiânicas, fundamentalistas, e para as psicopatias coletivas, como o ódio, a xenofobia, a intolerância e a violência. É como se o capitalismo e a humanidade mesmo não tivessem aprendido nada com o passado e com a barbárie nazista. Lembremos que Hitler ascendeu ao poder na Alemanha surfando a destruição da economia alemã e o desespero dos trabalhadores com as consequências sociais da crise do capital de 1929.

Nesse tempo de incerteza e insegurança, as religiões fundamentalistas e líderes conservadores, fascistas ou protofascistas, como Bolsonaro e Trump, crescem exatamente por prometer um retorno a certo estado de segurança, ordem, hierarquia, de grandeza nacional, volta à religião, à tradição, ainda que eles próprios não pratiquem nada disso. As massas populares mais vulneráveis e atemorizadas, acreditam que o mundo atual virou algo como um pântano amoral, que precisa ser drenado, saneado, que o mundo atual deve dar marcha a ré em todos os costumes e ideias.

Ao lado dessas patologias sociais como individualismo, o ódio, a intolerância, a desonestidade, o cinismo, a desumanidade, a falta de solidariedade, a busca do ganho individual por quaisquer meios, o declínio do sentimento coletivo, crescem outras, como a depressão, as doenças cardiovasculares etc. No Brasil, entidades de psicanalistas têm relatado um aumento na frequência aos consultórios de pessoas doentes, vítimas destas patologias coletivas, sociais, o que pode ser um fenômeno mundial.

A constatação é que, ao lado do frenético desenvolvimento econômico e especialmente tecnológico, da aceleração das comunicações e do advento das redes sociais, que encurta o tempo de todos os processos e experiências, que a tudo revolve e transforma rapidamente, a sociedade humana vive um novo período de  aumento das desigualdades entre países e classes sociais, ao mesmo tempo em que uma erosão de valores, uma corrosão do caráter, uma grave crise moral. Quais causas estão por baixo deste quadro? Neste texto queremos tentar identificar alguns desses fatores que explicam esse fenômeno e ao final sugerir algumas linhas de como enfrentá-los. Ao nosso modo de ver, identificamos pelo menos 5 razões que levam e esse cenário de declínio moral, individualismo, desesperança e ceticismo quanto a um futuro melhor.

A DECADÊNCIA DO CAPITALISMO LEVA A UM DECLÍNIO MORAL DA CIVILIZAÇÃO

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Existem fatores mais conjunturais e outros mais de longo prazo, seculares, ou de ondas longas, se assim podemos falar. Quando estudamos a história das civilizações num espaço de tempo mais dilatado, pode-se constatar que as distintas formações sociais, em geral, em sua ascensão têm um código moral um pouco mais elevado. Já seu declínio é acompanhado de uma corrosão de valores também. Estudando o império formado por Alexandre, o Grande, por exemplo, mesmo sem negar aqui os terríveis efeitos da opressão e subjugação pela violência dos povos dominados, pode-se perceber também certo ideal de “levar a civilização e a cultura” a esses povos por parte dos conquistadores. Mesmo dominados, tais povos terminavam por assimilar aspectos positivos da cultura mais desenvolvida do conquistador, como a escrita, a arquitetura e a higiene, por exemplo, e ao mesmo tempo lhes era permitido manter até certo ponto suas próprias tradições. Nos primeiros séculos do Império Romano ocorreu o mesmo. Já sua decadência foi acompanhada por uma severa decomposição nos princípios morais.

O capitalismo em seus primórdios, com sua ética protestante de sacrifício consumo de hoje em função da acumulação primitiva para a amanhã, apresentava um padrão moral um pouquinho mais elevado (Como se pode perceber em A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber); na Inglaterra, vitoriano. Mas hoje esse sistema social já é decadente e isso tem implicado em uma profunda decomposição moral de todo corpo social. O único princípio do capital atualmente é o ganho imediato a qualquer custo, a acumulação por quaisquer meios, lícitos ou ilícitos, a corrupção, ainda que isso custe mais pobreza e desigualdade social, a decomposição dos regimes políticos e a degradação do planeta. Isso termina por impregnar toda sociedade de valores imediatistas e individualistas.

O NEOLIBERALISMO, A DESINDUSTRIALIZAÇÃO E A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO NO OCIDENTE

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Até a crise econômica global dos anos 1970, empregos industriais mais estáveis e que pagavam melhores salários permitiam uma vida mais previsível aos trabalhadores e suas famílias, às vezes por décadas, e, portanto, valores morais menos imediatistas. A volta do neoliberalismo mais radical aos governos de países centrais, como nos EUA e na Grã-Bretanha, com Reagan e Thatcher – do que decorreu o processo de desindustrialização planejada nos EUA e em todo o Ocidente, com o fechamento de milhares fábricas e a contratação da produção na Ásia e na China -, implicou na perda ou transferência de centenas de milhões empregos mais estáveis e melhor remunerados do setor industrial para o setor de serviços, de menores salários, de muita sazonalidade (pular de galho em galho), part time, sem qualquer previsibilidade, contribuindo não só para uma precarização nas relações de trabalho como também para um declínio moral, dos valores, nas sociedades ocidentais. Esse processo ocorre em todo Ocidente, na Europa e inclusive no Brasil. Analisando esse quadro nos Estados Unidos, o sociólogo e historiador Richard Sennett, professor do MIT e da London School of Economics, sugeriu no título de seu livro mais conhecido (A corrosão do caráter) que ele estava implicando num declínio moral do tecido social.

Coloco aqui dentro, como parte do mesmo processo, como um fator que poderíamos considerar como paralelo ao neoliberalismo (ou um sexto fator, se quisermos), as novas formas de produção oriundas do Japão, conhecida como Toyotismo, que contribuiu imensamente para a erosão da solidariedade entre os trabalhadores, estimulando a competição e o individualismo entre eles, fenômeno de amplas consequências para reduzir o sentimento coletivo entre as populações.

O SIGNIFICADO DA A EXAUSTÃO DAS EXPERIÊNCIAS SOCIALISTAS E SEU IMENSO PASSIVO

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A luta contra o capital e por um mundo melhor não é apenas uma luta social, física, nas ruas e empresas, mas também uma intensa batalha ideológica. Ideias e experiências sociais mobilizam ou paralisam milhões, encantam ou desmoralizam outros tantos. O século XX começou com uma grande revolução socialista, a Revolução Russa, que prometia um mundo de igualdade, mas também de liberdade e fraternidade. Infelizmente, não foi isso que se viu. Existiram inegáveis avanços sociais nas experiências socialistas, que sempre defendemos e inclusive obrigaram o capitalismo a acelerar o passo em suas concessões sociais no Ocidente, por medo. Mas, por diversas razões, como a permanente  agressão das potências capitalistas e toda destruição gerada, o atraso material e cultural dos povos soviéticos, o isolamento internacional daquela experiência, o que se observou de fato foi uma completa deformação dos objetivos e promessas iniciais daquela revolução e a instauração de um regime de terror, monolítico, de partido único, corrupção e perseguição a todos os críticos, mesmo aqueles mais autênticos socialistas que lutaram na revolução, como Leon Trotsky.

Esse regime igualmente ditatorial terminou por conduzir à exaustão da principal tentativa de construção de uma sociedade alternativa superior no século XX, contribuindo para o grande descrédito do socialismo ainda hoje, um imenso passivo que a esquerda até hoje não entendeu, com grande parte dela negando-se a passar a limpo aquela experiência. Toda vez que discutimos com um quadro de direita em qualquer espaço, a pergunta automática que ouvimos é: “diga ai onde o socialismo deu certo?” A exaustão, a desmoralização temporária, o descrédito da ideia de uma sociedade alternativa superior ao capitalismo, contribuem para o quadro atual de desencanto e declínio moral da sociedade.

A DECEPÇÃO COM A DEMOCRACIA PARLAMENTAR CAPITALISTA E MESMO COM OS GOVERNOS PROGRESSISTAS OU DE ESQUERDA NO MUNDO

Nada tem um efeito tão desmoralResultado de imagem para democraciaizante

Nada tem um efeito tão desmoralizante e para causar revolta nas pessoas e nas sociedades do que as frustrações, as decepções com promessas não cumpridas. Elas contribuem severamente para o quadro de desesperança, ceticismo, descrença no futuro, imediatismo e corrosão dos valores na sociedade atual. Vejamos apenas alguns exemplos.

A democracia parlamentar capitalista, com eleições, é uma conquista em relação a regimes autoritários e de força, às ditaduras, mas ao mesmo tempo uma casca oca, uma máquina de enganação e desmoralização das populações. A regra é que políticos e partidos prometem aos povos aquilo que de antemão sabem que não vão cumprir, ou seja, esse sistema é a arte da enganação. Prometem governar para o povo, mas depois governam para o capital, para as grandes empresas. Basta ver a composição dos parlamentos nas democracias capitalistas hoje em dia: a maioria dos parlamentares ou são diretamente empresários, latifundiários, ou apoiados por eles. Atualmente, os parlamentos de todos os países capitalistas do mundo governam antes de tudo para o grande capital financeiro. Essa falência das democracias capitalistas em produzir avanços e, pelo contrário, gerar retrocessos sociais, abre espaço para as tentações autoritárias, para regimes de força e para a contínua desmoralização dos povos, o ceticismo e a descrença.

O efeito desmoralizante das decepções com partidos ou líderes progressistas ou de esquerda é ainda mais danoso. Pela primeira vez em sua história, os EUA elegeram um presidente de origem negra, Barack Obama. Ele prometeu em sua campanha transformações positivas, como (1) parar o processo de exportação de empregos dos EUA para a Ásia, que afetava especialmente os mais pobres e os próprios negros, e (2) construir algum sistema público de proteção social e saúde, já que nos EUA ela se dava por dentro das empresas e, com a perda de milhões de empregos, muitos trabalhadores se viram sem qualquer cobertura. Obama não fez nem uma coisa nem outra, além de discursos elegantes e polidos, governando em sintonia com Wall Street, o que levou os democratas a perderem a última eleição. Trump se elegeu em grande medida capturando esse desgaste. Nas eleições, ele foi às portas das fábricas dizer que não mais aceitaria mandar os empregos dos norte-americanos para a China. Essa é em parte a explicação do atual conflito de seu governo com aquele país. Grande parte dos trabalhadores, inclusive uma parcela dos negros, votaram em Trump, quase que como um castigo a Obama e aos democratas.

Na Grécia, depois da tremenda crise que arrasou a economia do país, que ceifou centenas de milhares de empregos e gerou muita pobreza e desespero (2008-2010) a população deu uma oportunidade ao partido de esquerda Syriza, de governar o país e mudar o quadro em favor do povo. Este partido, no entanto, contradizendo sua vocação de esquerda, não enfrentou a altura as imposições do FMI e da União Europeia, terminando por aplicar igualmente planos de austeridade contra os trabalhadores gregos e a favor dos financistas. Resultado: o povo grego acaba de dar maioria novamente a um partido conservador, a Nova Democracia, nas recentes eleições de julho de 2019.

E no Brasil? O que a decepção de setores importantes da população brasileira com os governos do PT contribuiu para o quadro atual e a ascensão de Bolsonaro? Muito. Sei do custo e da antipatia de dizer isso aqui, num momento em que a esquerda é atacada e fica clara a perseguição a Lula, pelo que defendemos sua imediata libertação. Mas, infelizmente, é uma avaliação que devemos considerar, que ainda não foi feita, mas que nenhuma análise realmente séria pode deixar de lado. Os inegáveis avanços conseguidos nos governos do PT não justificam a frustração das expectativas e a repetição das mesmas políticas liberais, a não realização de reformas prometidas ou necessárias, como a agrária, a política e a tributária. Tampouco podem justificar as alianças ou integração nos governos durante anos dos mesmos partidos e políticos capitalistas que depois produziram o impeachment, como Eduardo Cunha, Temer, Meirelles, Joaquim Levy.

Evidentemente que o papel da imprensa golpista foi essencial para o golpe contra Dilma Rousseff e para tirar Lula do páreo nas eleições. Mas o desencanto de amplos setores da população com os governos do PT pela frustração das expectativas também contribuiu para que parte do povo fosse capturado pela direita e por Bolsonaro. O único sentido desta discussão feita aqui é aprender para não cometer os mesmos equívocos futuramente.

Como dissemos ao inicio deste ponto, a frustração, a decepção das massas com a democracia capitalista e com a esquerda nas experiências nos governos tem sido um fator fundamental para o quadro de desesperança, desencanto, ceticismo e declínio moral que observamos no mundo, pois grande parte das massas dizem que “todos são iguais”, recuam politicamente ou se desencantam.

O FUTURO REPETINDO O PASSADO, DE IGNORÂNCIA, VIOLÊNCIA E PRECONCEITOS

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Há outro fator, igualmente estrutural, de longo prazo, que é o fato de que todo processo de industrialização, formação das classes trabalhadoras, urbanização dos países e educação política das massas populares ainda é muito recente. Nossa mente tende a querer que as situações e a história avancem mais rapidamente. Mas a história tem seu próprio ritmo. Saímos do feudalismo ainda ontem. O capitalismo é uma formação que só recentemente chegou à maioria dos países, antes agrários, rurais. No início do século XX, poucos países eram industrializados. Em 1950, a imensa maioria da população humana ainda estava no campo e era analfabeta, como na China, Índia, África e a maior parte da América Latina, com pouca experiencia política. Em 1850, o mundo não era a Europa industrializada sobre a qual Marx e Engels construíram seu pensamento. Mesmo a França era um país rural em 1871, época da Comuna de Paris. A população urbana do mundo só ultrapassou a população rural recentemente, em 2007.

A China, o maior país do mundo, só se industrializou e escolarizou nos últimos 70 anos; até 1949 era um país rural e analfabeto. Em 1960, o Brasil também era um país agrário e de analfabetos. Quem ler Trotsky com mais atenção, verá que a Revolução Russa não foi traída e derrotada pelo stalinismo somente, mas antes de tudo pelo atraso e pela ignorância. O stalinismo foi antes fruto desse atraso dos povos soviéticos naquele momento. Em todos esses processos, o velho se agarra ao novo como o musgo se agarra na pedra, se negando a morrer. Toda formação nova é construída em grande medida combinando elementos herdados do passado. Apesar do frenético avanço tecnológico, da vertigem das comunicações, da escolarização em massa que avança a passos largos, todo passado de incultura e ignorância da humanidade ainda está aqui bem presente, hoje, e embasa toda ideologia alienante e individualista das classes ricas. Infelizmente, como dizia Cazuza, as vezes o futuro repete o passado.

É óbvio que a direita brasileira e do mundo, as igrejas obscurantistas, estimulam o medo, o preconceito, o individualismo e o atraso. Mas é uma relação dialética, em dois sentidos. Se elas crescem é também porque se nutrem desse atraso do povo, decorrente de nosso recente passado de ignorância e incultura, desde sempre alimentado pelas elites reacionárias. Ao se sentirem abandonadas pelo Estado, parcelas importantes da população são presas fáceis para as igrejas fundamentalistas e os políticos populistas de direita. A elitização da esquerda e seu afastamento das periferias também contribuiu para isso.

Alguém pode objetar que não são só as massas populares as bases dos partidos conservadores e igrejas fundamentalistas, mas grande parte das classes médias escolarizadas também. Basta ver que o Nordeste menos escolarizado votou pela esquerda na contramão do resto do país. Com certeza. Mas aí entra também o papel da ideologia, o tipo de educação recebida por essas camadas médias, igualmente elitista, a manipulação da imprensa, além de todos os demais fatores que colocamos acima.

Bem, todos esses fatores contribuem para o quadro de declínio moral, corrosão do caráter, individualismo e desesperança que vemos no mundo hoje. Obviamente, esses elementos são potencializados pelos poderosos mecanismos de reprodução da ideologia dominante, os meios de comunicação, com a imprensa à frente, que têm um papel central neste quadro.

E A ESQUERDA E OS MOVIMENTOS SOCIAIS ESTÃO FORA OU SÃO PARTE DESSA CRISE MORAL?

O capitalismo, com sua voraz sede de lucros, seus partidos “democratas” ou conservadores, os partidos ou dirigentes fascistas, autoritários, as igrejas fundamentalistas e toda sua mídia não têm o que oferecer à humanidade, senão o risco de nos levar à destruição da civilização, nos conduzir de volta à barbárie. Se alguma saída para melhor pode ser dada para a humanidade ela tem que vir das classes trabalhadoras, dos povos, dos movimentos sociais, da juventude irreverente que luta nas ruas, dos partidos socialistas e de esquerda, porque só eles se propõem explicitamente a dar uma alternativa à decadência do capital.

Mas infelizmente, quem espera coerência total e santidade nas esquerdas e nos movimentos sociais quebra a cara. Os movimentos sociais, as classes trabalhadoras, os partidos de esquerda, por mais progressistas, socialistas, revolucionários, que se proclamem e se proponham, também estão imersos nesse meio decadente e moralmente podre que observamos no mundo e, portanto, também vivem uma corrosão moral. Muitas vezes repetem em sua prática ou em seu meio os mesmos métodos que condenam em seus discursos.

A primeira manifestação dessa constatação é a incoerência, ou mesmo as traições, a distância entre o que propõem às massas populares em eleições para chegar aos governos e o que de fato fazem quando chegam ao controle de países, estados, prefeituras etc., contradizendo as promessas. Isso contribui fortemente para a desmoralização das populações, como já analisamos acima.

Mas além da incoerência na política, a maior parte da esquerda, mesmo aquela que se propõe mais pura, autêntica e revolucionária, pratica nos seus espaços muitas vezes os mesmos métodos autoritários, burocráticos e grosseiros que critica nas organizações e partidos capitalistas ou conservadores. Essa é uma das razões para as suas constantes divisões, a histórica fragmentação do campo da esquerda.

Uma constatação disso é que a maioria desses grupos ou organizações até hoje, mesmo depois do desastre no Leste Europeu no final da década de 1980, não fez qualquer autocrítica, uma discussão aprofundada sobre as razões daquele processo, ou rompeu com as concepções stalinistas autoritárias de organização ou governos, baseados em partido único e repressão aos opositores, mesmo quando são de esquerda. Essa parte da esquerda ainda não entendeu o imenso passivo que carregamos, aproveitado pelos ideólogos do capital. Não percebeu que sem passar a limpo toda a experiência socialista do século XX e reconhecer suas conquistas, mas também seus graves erros, será difícil ganhar novamente a confiança das populações para uma sociedade alternativa.

Tristemente, são comuns também no campo da esquerda, os métodos igualmente burocráticos, a grosseria, a desonestidade, as manobras de todo tipo, as atitudes ilícitas, mesmo ilegais, usadas por certos grupos para ganharem um sindicato, uma entidade, a direção em um partido, ou um mandato eletivo contra outro grupo do mesmo campo. Contradizendo o que criticam nos partidos da ordem, algumas correntes de esquerda socialista se comportam como verdadeiros grupos nacionais de trapaceiros na defesa de seus interesses imediatos e do crescimento de seu grupo, sacrificando os interesses gerais de todo movimento, sem ver como isso contribui para fragmentar, enfraquecer e desmoralizar os movimentos sociais, as entidades, as pessoas. Constroem destruindo.

Para justificar tais práticas argumentam que sua política está sempre correta e que, portanto, os métodos, os procedimentos, passam a ser secundários, numa espécie de “os fins justificam os meios”, sejam eles quais forem. Mas ninguém acerta sempre. Infelizmente, honestidade, humildade e autocrítica são também artigos raros mesmo dentro da esquerda. Um exemplo é que grupos de esquerda socialista apoiaram com entusiasmo a Operação Lava Jato em seus inícios. Mas mesmo com as revelações recentes do Intercept e a denúncia das manobras daquela operação contra as esquerdas, ou seja, seu caráter reacionário, esses grupos até hoje não tiveram a dignidade e a humildade de fazerem qualquer autocrítica.

Todas essas práticas, que ocorrem não só no Brasil, mas em todo o mundo, seja na política seja em seus métodos, em seus procedimentos equivocados, joga água no moinho do fenômeno que analisamos neste texto, que é o declínio moral, a corrosão do caráter, a desmoralização, o desencanto das pessoas, que se observa nas sociedades capitalistas. Essa discussão, obviamente, não tem qualquer objetivo de atacar a esquerda, da qual faço parte, mas servir como um humilde alerta de que, se ela quer ganhar novamente a confiança de populações mais amplas, precisa antes de tudo mudar radicalmente seus próprios métodos, não podendo agir igual aos partidos da ordem que critica.

O QUE FAZER?

Nesta simples carta não tenho qualquer intenção de dar aula para ninguém , apenas ajudar a refletir, identificar e contrapor uma tendência muito perigosa para a civilização humana que é a decadência moral ou dos valores, a onda de individualismo, que se observa na sociedade global e também no Brasil, que, como já dito, ameaça a própria civilização. O que fazer? Não falo aqui apenas para as pessoas de esquerda, mas para todos aqueles que têm lido minhas cartas, me retornado com comentários e almejam um mundo melhor. Arrisco aqui três simples sugestões, sem nenhuma pretensão de pregar a verdade a ninguém.

Primeiro reforçar a luta coletiva, as mobilizações dos trabalhadores, dos oprimidos, as entidades e grupos sociais, apoiar a luta por demandas justas e progressivas dos povos, dos trabalhadores, dos jovens. Não há saídas individuais para uma sociedade de 7 bilhões de seres, para países com centenas de milhões de pessoas. Somos cada vez mais um mundo só. Evidentemente que essa luta será travada também em todos os espaços. Nas ruas, nas entidades, mas igualmente no campo das ideais, nas redes sociais (com todo cuidado necessário e sem agressões), nas empresas, nas escolas, nos grupos sociais, nas famílias, em todos os espaços onde possamos agir. Mas só o movimento de milhões de pessoas nas ruas será capaz de impor medo e limites à ganância e à vocação destrutiva do capital e seus defensores.

Em segundo, é preciso estudar, estudar e reestudar a história humana, das civilizações, das sociedades e dos países, do Brasil, das lutas sociais, para entender de onde viemos, para onde podemos ir. A partir do estudo da história, compreender os riscos que nos cercam e o que precisamos fazer.

Por último, fazer a coisa certa. Não adianta apenas jogar na cara das pessoas arrogantemente nossa visão de mundo futuro, como um tijolo, e depois praticar barbaridades. É possível agir de forma solidária, honesta, verdadeiramente democrática, humilde, paciente, tolerante, fraterna, ambientalmente sustentável. Ao mesmo tempo respeitar o esforço e a história de todos, não somente daqueles que nos agradam ou de nossos grupos. Ou seja, agir de acordo com o que pregamos em nossos discursos, em todos os espaços em que estamos. Isso não é coisa de religiosos, declaração de santidade, mas sim de todos aqueles que se propõem a construir um mundo novo. Uma coisa que aprendemos em todos estes anos é a força do exemplo, como exemplos de ações coletivas ou individuais corretas, solidárias, generosas, encantam e motivam as pessoas, ajudando a contrapor todo o processo de desencanto, de declínio moral e busca de saídas individuais que observamos no capitalismo atual e no mundo hoje, discutido neste texto.

Do que se trata é de evitar o pior para a humanidade, o risco de volta da civilização à barbárie. Felizmente, nem tudo é negativo. Surgem novos movimentos sociais, uma nova juventude irreverente está nas ruas em muitos países, o mundo avança rapidamente na escolarização, as pessoas estão cada vez mais informadas, setores sociais antes oprimidos se organizam e se apresentam. Os governos montados em fraudes, mentiras, rapidamente se desgastam. A situação durante a ocupação nazista na Europa na Segunda Grande Guerra era muito pior que hoje. Nos milhares de anos de nossa evolução, nossa espécie foi capaz de superar as dificuldades e achar o caminho correto. Poderá novamente encontrar a saída para salvar a civilização e preservar todos os tipos de vida no planeta. Mas é preciso acelerar o passo. Enquanto é tempo.

 

Londres, 31/08/2019

Robério Paulino

 

 

 

 

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Lembrar a escravidão negra transatlântica para que nunca mais aconteça: o Museu Internacional da Escravidão em Liverpool

A função da educação é ensinar a pessoa a pensar intensamente e a pensar criticamente. Inteligência mais caráter – esse é o objetivo da verdadeira educação.

Martin Luther King Jr.

Estamos no ano 1630 no Brasil. Ele tem apenas 15 anos, mas já trabalha duro de sol a sol como escravo nas lavouras de cana de açúcar sob vigilância de cruéis capatazes, em um engenho na capitania que seria depois o atual estado de Pernambuco. Sua jornada de trabalho é intensa, extenuante, a alimentação muito rala e, nas quentes e superlotadas senzalas, as condições de moradia são degradantes. As mortes são tão frequentes que pouco geram choro, mas antes um misto de resignação e revolta. Como Olaudah Equiano uns 100 anos depois, um dos líderes da luta pelo fim da escravidão na Inglaterra, ele também chegara à América ainda criança, com sua mãe, mas logo dela foi separado, ao ser vendido para outro engenho, e provavelmente nunca mais a verá.

No navio negreiro que os arrancou da África que nunca mais veria, viu um primo seu ser jogado ao mar ainda vivo, por estar doente, para não contaminar o restante da “carga”. Eventualmente, outros que se rebelassem contra a tripulação podiam ter a mesma sorte, como castigo, para dar exemplo aos demais do preço da desobediência. Nesses momentos, a maioria dos cativos acorrentados chorava, protestava ou clamava por clemência contra aquela atrocidade, sem sucesso, rangendo os dentes de justo ódio enquanto eram levados de volta ao porão e o navio se afastava do castigado, deixado a morrer no meio do Atlântico. Uma cena similar foi mostrada por Steven Spielberg em seu filme Amistad.

Como os demais escravos jovens, muitas vezes ele já pensara em fugir, mas nas conversas à noite na senzala era alertado pelos mais velhos dos perigos de se evadir num território desconhecido e, portanto, hostil para os africanos. Ouvia que muitos fugitivos morriam ou terminavam voltando famintos, feridos e assustados e sabia que, quando recapturados, eram submetidos a castigos dos mais cruéis. Mas alguns poucos não voltavam e haviam rumores que se agrupavam em locais desconhecidos e distantes, livres do alcance dos senhores de engenho e seus de capitães do mato. Nunca desistiu de seu sonho e anos depois ajudou seu filho a fugir para a liberdade e juntar-se a Zumbi no Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, na divisa de Pernambuco com Alagoas, aproveitando a perturbação nos engenhos causada pela segunda invasão holandesa no Nordeste da colônia.

Essa pequena história fictícia poderia bem lembrar um pouco da história da escravidão no Brasil e em todas as Américas, com todo sofrimento que causou a milhões de indivíduos escravizados, arrancados de suas terras para fazerem a riqueza das potências imperialistas europeias no novo continente. A motivação desta carta nasceu de minha visita ao Museu Internacional da Escravidão em Liverpool, meu primeiro destino na cidade, lembrando também de minhas aulas de Formação Econômica do Brasil.

Minha expectativa ao avançar em direção ao norte da Grã-Bretanha era encontrar um país mais conservador, branco e formal, mas constatei que, como Londres, Liverpool é felizmente uma cidade igualmente globalizada em sua composição racial e nos seus costumes, culta e relativamente politizada, com uma comunidade negra muito ativa, uma grande Chinatown, muitos muçulmanos e indianos e gente de todo lado do mundo. Lembremos que Liverpool foi por excelência o grande porto da Revolução Industrial na Grã-Bretanha. Por aqui chegava todo algodão que vinha das Américas e ia às fábricas de Manchester, que fica no interior, e saia grande parte dos tecidos com os quais a Inglaterra inundou o mundo. Entre essas duas cidades surgiu também a primeira ferrovia do planeta.

Como outros desastres humanos, a história da escravidão transatlântica é uma essencial, trágica e dolorosa experiência humana que precisa ser contada e recontada para que nunca seja esquecida e jamais volte a acontecer. Essa é a função daquele museu, cuja visita procuro aqui dividir um pouco com os leitores dessa carta, recorrendo para isso propositalmente a muitas fotos, para partilhar com todos um pouco da experiência.

Em números de mortes que causou, essa gigantesca tragédia talvez só seja superada nas Américas pelo verdadeiro holocausto ocorrido contra a população indígena originária que, segundo estudos mais recentes, foi morta em mais de 90% pelas armas, mas especialmente pelos germes trazidos pelos europeus, contra os quais eles não tinham defesa. Quem quiser conhecer melhor essa história, recomendo vivamente aqui mais uma vez a leitura de Armas, germes e aço, de Jared Diamond, um livro essencial para entender nosso mundo. Como se pode ver pela Tabela e figura abaixo, em torno de 10 milhões de escravos desembarcaram nas Américas nos navios negreiros entre 1500 e 1870, sendo que desses, somente o Brasil recebeu 4 milhões de indivíduos. Não se leva em conta aqui os inumeráveis mortos na travessia do Atlântico por doenças, maus tratos ou castigo.

O tráfico negreiro operava numa relação direta com a acumulação de capitais na economia açucareira no Brasil e outros países e, no sul dos EUA e no Maranhão, em estrita ligação com o capital da indústria têxtil que demandava o algodão para as fábricas inglesas. Muitos, dos dois lados do Atlântico, enriqueceram imensamente com ele. Boa parte dos capitais acumulados na Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco até o século XIX, por exemplo, vieram desse comércio infame. Em suas salas, o museu de Liverpool busca retratar o lucrativo negócio da escravidão, com sua terrível história de sofrimento e crueldade, mas também lembrar a história de lutas, de coragem, insurreições, rebeliões, a maioria delas desconhecida.

Tão grande quanto o sofrimento dos escravos foi a luta pela liberdade, pelo fim da escravidão. As rebeliões negras foram inúmeras nas Américas. Em toda história da civilização, a história da luta pela liberdade foi sempre uma saga de resistência, sacrifício e coragem.

Desde os anos 1500 com certeza, houve resistência e tentativas de organizar pequenos Estados-território livres da escravidão na América. Em 1649, houve uma forte revolta dos negros em Barbados contra os brancos escravistas. Em 1663, explodiu outra grande conspiração dos escravos em Gloucester County, na Virgínia. Em 1712 outra insurreição negra ocorreu em Nova Iorque. Essas lutas cruzaram os séculos XVIII e XIX, culminando com uma grande onda de rebeliões simultâneas na Virgínia, Jamaica, Barbados, Guiana Britânia e Brasil por volta de 1820-30. Entre 1789 e 1816, ocorreram mais de 30 insurreições negras nas Américas. Sob pressão e por um cálculo econômico, de que estava perdendo em seus negócios para outros países como Portugal e Espanha com sua manutenção, em 1807 o parlamento britânico aboliu a escravidão em suas colônias.

Particularmente dramática foi a Revolução Haitiana (1791-1804), a primeira insurreição negra vitoriosa nas Américas, que literalmente incendiou o Haiti e suas fazendas de cana, também conhecida por Revolta de São Domingos, um conflito brutal na colônia francesa de Saint-Domingue, que conduziu precocemente à eliminação da escravidão e à independência do Haiti, tornando-o a primeira república governada por líderes de origem negra. Infelizmente, a destruição da economia açucareira, com o incêndio dos engenhos, ao não ser esta substituída por outra fonte de geração de riqueza, manteve o país e a população em grande pobreza. Mas não há bem maior que a liberdade: antes ser pobre e livre, que escravo.

No museu em Liverpool também está registrada a história de Zumbi do Palmares, por aqui conhecido também como Black Spartacus. Por uma questão de justiça, deveria estar também no museu o nome de Dandara. Ao contrário do que sempre escondeu a História oficial brasileira até recentemente, a resistência em Palmares também foi heroica e pioneira no Novo Mundo. O primeiro registro histórico conhecido que faz menção ao Quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga, na divisa de Pernambuco com Alagoas, data de 1597, mas há alguns historiadores que afirmam que ele pode ter surgido ainda antes.

Durante os anos 1600, Palmares, na verdade uma confederação de vários quilombos, que chegou a ter 20.000 moradores, resistiu e venceu militarmente várias expedições de portugueses e holandeses para destruí-lo, com técnicas de guerra apuradas para a época, só tendo sido finalmente derrotado em 1694, pelas tropas de milhares de jagunços de Domingos Jorge Velho, que precisou usar até mesmo canhões para vencer a resistência dos quilombolas.

Muitos de nós talvez não tenhamos noção de que uma aglomeração de 20.000 pessoas era algo imenso para os padrões do século XVII. Poucas cidades no Brasil colonial tinham tal população, mesmo no século XIX. O Quilombo dos Palmares foi na verdade um proto-Estado livre, nos primórdios do Brasil, que deveria merecer mais espaço na História do país. Há dez anos, subi a pé a escarpada Serra da Barriga, em União dos Palmares, para ver de perto o sítio do Quilombo e levar meu tributo a esse símbolo precoce e heroico de luta pela liberdade nas Américas.

No museu em Liverpool estão também registrados tributos a grandes figuras da luta pelo fim da escravidão ou contra a segregação, como Olaudah Equiano, Martin Luther King e Nelson Mandela, ao lado de muitos outros. Mesmo após o fim da escravidão em todos os países do mundo, a batalha por igualdade de direitos ainda não foi vencida e não é fácil.

Nos EUA, a luta contra a escravidão motivou reações furiosas dos escravistas, com o surgimento no Sul dos Estados Unidos de grupos como a Ku Klux Klan, fundada em 1866 no Tennessee, na sequência da derrota do sul no conflito contra o norte. Entre 1825 e 1860, mais de 100.000 escravos tiveram que escapar dos estados sulistas em direção ao norte usando um caminho secreto, a Underground Railroad.

A sangrenta Guerra Civil nos EUA, entre 1861 e 1865, a que mais matou nas Américas, que opôs o norte mais liberal capitalista e industrial ao sul agrário e escravista, tinha também como um de seus panos de fundo a continuidade ou não da escravidão e, em grande medida, a definição do que se estenderia para o oeste do país, se o modelo agrário, latifundiário e escravista do sul ou o capitalismo liberal industrializante e mini fundiário estabelecido no norte. Em um exercício de história contrafactual, alguns historiadores chegam a afirmar que se o sul escravista tivesse vencido aquele conflito, ou EUA provavelmente seriam até hoje um país tão atrasado quanto o Brasil.

Mesmo depois de expulsas da América no século XVIII e na primeira metade do século XIX, as potências europeias ainda empreenderam outra onda de colonização no mundo na segunda metade dos anos 1800. Partilharam o que ainda não estava colonizado na África e na Ásia. Depois da Segunda Guerra Mundial, no entanto, aproveitando-se do enfraquecimento das potências europeias, as colônias africanas e asiáticas lutaram e conseguiram sua independência. Mas em muitos deles, a segregação racial continuou, como na África do Sul, onde a resistência contra o apartheid imposto pela minoria branca tornou-se um símbolo da luta mundial por igualdade racial. Nelson Mandela, um dos líderes dessa luta, recebe destaque no Museu.

Nos EUA, mesmo com a vitória do norte na Guerra Civil em 1865 e o fim da escravidão, a segregação não acabou. Os negros não eram reconhecidos como cidadãos com direitos iguais. A mentalidade escravista, racista e de vingança continuou no sul derrotado. Entre 1882 e 1950, a Ku Klux Klan matou por linchamento 4.000 negros. Já em 1932, esse grupo reunia 1 milhão de membros formais, com apoio de outros milhões.

Neste contexto, já nos anos 1960, emerge o movimento Black Power e se insere a luta de Martin Luther King e Malcolm X, depois assassinados por extremistas supremacistas brancos. Eles também têm sua história registrada no museu. King, como Malcolm X, tinha muito claro que os Direitos Civis para os negros não seriam concedidos voluntariamente, sem muita luta.

O Museu relembra ainda muitas outras figuras de destaque mundial de origem negra, como Desmond Tutu, Cassius Clay, Obama, Gilberto Gil e Pelé.

A longa exposição termina apontando que a luta por igualdade de direitos está longe de terminar, afirmando que uma política de reparações ainda se faz necessária, porque não é possível igualar os ainda hoje desiguais em termos socioeconômicos e de oportunidades. Essa é a lógica que está por trás das políticas de cotas raciais no Brasil e que gera tanto ódio na direita brasileira.

A função central do museu de Liverpool, como já disse ao início, é não deixar esquecer o monumental crime que foi a escravidão transatlântica negra. Infelizmente, no Brasil, o maior destino dos escravos nas Américas, ainda há pouca consciência sobre a questão e existem poucos museus sobre o tema. Há um bom museu em Salvador, mas no Rio de Janeiro, Recife e São Luís, por exemplo, faltam grandes e educativos museus sobre o tema, que sirvam de educação às novas gerações, fundamentalmente para as crianças. Talvez possam surgir por iniciativa de alguns parlamentares de esquerda.

A escravidão negra transatlântica é um desses gigantescos crimes da história humana que deve ser sempre lembrado para que nunca volte a se repetir. Como o massacre contra a população indígena das Américas, que pode ter matado até 20 milhões de indivíduos, ou o holocausto que assassinou 6 milhões de judeus na Segunda Guerra Mundial, ela deve ser sempre lembrada e relembrada para que nunca mais aconteça. Tão importante quanto não deixar esquecer o saldo negativo desse processo, no entanto, é lembrar a tenaz história das lutas contra a escravidão, cada uma das milhares de vidas perdidas, dos líderes e dos anônimos, heroicamente empenhadas na luta pela liberdade nas Américas.

Londres, 19/08/2019

Robério Paulino  

 

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A depredação do túmulo de Marx, Cristo, Galileu: o mérito e o alto preço de andar à frente do seu tempo

Por Robério Paulino

Em mais um de meus fins de semana após uma jornada intensa de trabalho, em um sábado, logo cedo fui ao Cemitério de Highgate, onde está o túmulo de Marx e de sua esposa Jenny, que teve a placa com seus nomes vandalizada em fevereiro desse ano, muito provavelmente por grupos fascistas. Lá chegando, realmente emocionado, porque para mim aquele momento se revestia de um imenso significado, de uma grande simbologia, já que, como eu, muitos de minha geração construímos grande parte de nossa visão de mundo e guiamos nossa ação transformadora em boa medida sob a influência das ideias desse gigante, encostei minha mão no seu túmulo e perguntei a ele: “Marx, já não é hora de descansar?” Ele me respondeu: “bem que eu gostaria, mas não me deixam”.

Seguimos numa boa prosa por quase uma hora, sobre toda situação do mundo, do capitalismo, dos povos, dos trabalhadores. Ele me confessou seguir maravilhado com as imensas possibilidades da humanidade com a Revolução Tecnológica e a Ciência, mas ao mesmo tempo extremamente preocupado com os perigos de retorno à barbárie que nos rondam, com a gravíssima degradação ambiental que vê no planeta, com a volta da desigualdade e da pobreza, a possibilidade de novas guerras arrasadoras, decorrentes da irracionalidade do capital. O percebi muito esperançoso com as recentes mobilizações da juventude no Brasil neste 2019.

Deixando a brincadeira de lado – que faço apenas para mostrar como Marx está mais vivo do que nunca -, quero nesta carta discutir e dividir com vocês uma questão que me afligiu por muitos anos, que só vim a entender razoavelmente depois de muito tempo, que é: por que aqueles que andam na frente de seu tempo no terreno das ideias e do comportamento, em seus países, regiões, empresas, organizações, partidos, departamentos, grupos sociais, famílias, pagam um preço tão alto por isso, são em geral incompreendidos, perseguidos, tão hostilizados em sua época, pelos poderosos que controlam esses estruturas sociais ou mesmo pela maioria da gente simples? Sabemos que isso ocorre até mesmo dentro da esquerda, com os que questionam seus erros.

Mais ao final quero discutir também porque o velho Marx teima em não morrer, a atualidade e a potência de suas ideais, um fantasma que assombra os poderosos em pleno século XXI, como também destacar o valor e o mérito de todos daqueles que se adiantam ao seu tempo em toda a história. Para isso, vou analisar brevemente o caso de Marx e de outras grandes figuras humanas, como Cristo, Galileu, Babeuf, Lenin e Trotsky.

Marx foi e ainda é uma das figuras mais influentes da história humana, um dos maiores construtores da ciência social moderna. Suas ideias conquistaram e mobilizaram milhões de trabalhadores, jovens, intelectuais, sindicatos, partidos políticos por todo o mundo. Por outro lado, a reação a elas, o anticomunismo, envolveu outros milhões de indivíduos em todo o planeta e os esforços contrários de centenas de governos capitalistas, sejam ditatoriais ou liberais, nos últimos 170 anos. Mesmo muitos pensadores e indivíduos que não o admitem, partilham ou se beneficiam de suas ideias, ainda que indiretamente ou sem se dar conta disso, pela grande influência que o pensamento de Marx teve sobre todas as Ciências Humanas e Sociais, mudando profundamente todo o modo de pensar sobre a realidade e a questão social.

Juntando o que havia de mais avançado no pensamento humano da época – o socialismo francês, a filosofia alemã e a economia política clássica britânica – Marx construiu uma poderosa teoria científica de explicação do funcionamento das sociedades e do capitalismo e propôs superá-lo. Andar a frente de seu tempo e tentar mudar o mundo, no entanto, o levou a pagar um altíssimo preço em sua vida particular. Foi reverenciado e seguido por milhões, mas ao mesmo tempo muito odiado, caluniado, perseguido por tantos outros.

Marx nasceu em 1818, em Tréveris, Prússia, reino da Alemanha, mas apesar de ter nacionalidade alemã, em função das seguidas perseguições teve que futuramente renegar sua nacionalidade e viver grande parte de sua vida em Londres, até sua morte. Na sua juventude, mesmo com um título de doutor em Filosofia, obtido pela Universidade de Jena, nunca conseguiu ingressar na carreira acadêmica e virar professor universitário, como era seu sonho profissional inicial. Para sobreviver, teve que começar a escrever artigos como colaborador de distintos jornais na Alemanha, até que se tornou redator-chefe da Gazeta Renana.

Até ali Marx não era comunista, mas sim um jovem acreditando nas ideias de Hegel, de que a realidade se move através do embate de ideias contraditórias, pelo choque dos opostos (tese, antítese, síntese), sendo, portanto, um idealista, que via as coisas como conflitos oriundos do campo do pensamento, não ainda de forças sociais. Poucos anos mais tarde, ele viria a perceber que as transformações não ocorriam a partir do campo das ideias, que elas não eram a origem dos processos, mas que a própria realidade material, com seus movimentos, contradições, e as lutas sociais são sim as fontes das mudanças, e que estas sim se refletiam no pensamento, na ideologia. Aqui está o que se chamou de materialismo dialético, um poderoso instrumento de compreensão da realidade, unindo o materialismo científico de Feuerbach à dialética de Hegel.

Em função dos seus ideais liberais e das críticas ao regime prussiano, a Gazeta Renana foi vítima de censura e depois fechada em 1843. Com apenas 25 anos, Marx foi expulso de seu país e mudou-se com a família para Paris, passando a escrever para o jornal Anais Franco-Alemães, que lutava por democracia na França. Desde Paris, ajudou a editar um jornal de reduzida circulação em seu país, o Vorwärts!, que criticava o regime político alemão. A pedido do governo prussiano, Marx seria expulso também da França em 1845, indo para Bruxelas com a família, já junto com seu amigo Engels. Foi na Bélgica que os dois redigiram o Manifesto do Partido Comunista. Em 1848, Marx foi novamente expulso, agora da Bélgica, depois do que, junto com Engels muda-se para Colônia, fundando a Nova Gazeta Renana.

Seria mais uma vez expulso, de Colônia, já em 1849, indo a Paris, já com a família em grave crise financeira. O governo francês não os deixou fixar residência. Somente com uma campanha de donativos encabeçada por Ferdinand Lassale na Alemanha, entre os já muitos simpatizantes, Marx conseguiu migrar com sua família para Londres, onde havia um clima mais liberal e viveria até o final de sua vida. Como apontei ao início, em função de suas ideias e ação, a vida de Marx e sua família foi de perseguições, restrições financeiras e sofrimento.

As condições financeiras da família não foram fáceis. Dos sete filhos do casal, quatro morreram ainda crianças ou jovens, por problemas de saúde. Tanto Marx como sua companheira morreram cedo, aos 65 anos. Mas como vimos na depredação de seu túmulo, mesmo depois de quase um século e meio de sua morte, em pleno século XXI, não o deixam em paz, tamanha é ainda hoje a potência de suas ideias e a ira contra elas. É um espectro que continua a rondar o mundo. Em seu funeral, seu amigo de longa data, Friedrich Engels, o segundo violino, pronunciou as seguintes palavras:

Marx era, antes de tudo, um revolucionário. Sua verdadeira missão na vida era contribuir, de um modo ou de outro, para a derrubada da sociedade capitalista e das instituições estatais por esta suscitadas, contribuir para a libertação do proletariado moderno, que ele foi o primeiro a tornar consciente de sua posição e de suas necessidades, consciente das condições de sua emancipação. A luta era seu elemento. E ele lutou com uma tenacidade e um sucesso com quem poucos puderam rivalizar. (…) Como consequência, Marx foi o homem mais odiado e mais caluniado de seu tempo. Governos, tanto absolutistas como republicanos, deportaram-no de seus territórios. Burgueses, quer conservadores ou ultrademocráticos, revezavam-se entre si para lançar difamações contra ele.

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Cristo

Outro exemplo de perseguição a uma grande figura muito adiante de seu tempo foi o de Cristo. O cristianismo é a maior religião mundial ainda hoje e o nascimento de seu fundador dividiu épocas. Quando alguém olhar o calendário hoje, em qualquer lugar do planeta, goste ou não, o ano presente estará se referindo ao nascimento desse personagem absolutamente marcante da história humana, o ano zero, tão amplo e poderoso foi o movimento que ele iniciou, concordemos ou não com seus preceitos.

Em função da burocratização posterior do cristianismo e de sua utilização para fins reacionários, conservadores e alienantes, como foi a Inquisição ou são as atividades de muitas seitas religiosas, muitos não entendem que em seu tempo as ideias de Cristo cumpriram um papel muito progressivo, ao seu modo, pelo que foi perseguido e teria sido morto crucificado. Os apóstolos contaram depois que ele teria sido condenado por ser acusado pelos sacerdotes de heresia, por desrespeitar os costumes judeus de não pregar aos sábados, realizar falsas curas milagrosas, blasfêmia etc. Mas a verdade parece ser outra.

A Palestina foi dominada pelos romanos em 62 a.C. Estes tinham como prática utilizar lideranças locais corrompidas para manter seu poder. Assim, nomearam Herodes, que governou entre 37 a.C. e 4 d.C. Depois da invasão, a Palestina, que vivia antes certa prosperidade, foi se tornando um lugar de miseráveis, maior desigualdade e injustiça, o que levava a uma verdadeira guerra civil latente entre judeus e romanos, com seguidas revoltas contra esses últimos. A terra era muito mal distribuída e os trabalhadores rurais eram espoliados, pagando altos impostos. Quando algum fugia, sua família ou seus vizinhos eram hostilizados ou mesmo mortos para dar exemplo as demais, uma situação de grande opressão.

Os romanos saqueavam tanto a população pobre quanto cobravam pesados impostos em ouro dos comerciantes, numa verdadeira espoliação. Lembre-se também que o Império Romano funcionou por muitos séculos em base à escravidão de centenas de milhares de nativos, enviados para Roma ou para outras partes do império, como o Egito. Esse é o ambiente em que surge Jesus Cristo. Mais do que as ideias mesmo que ele pregava, o que atemorizava as autoridades romanas e os sacerdotes corrompidos parecia ser antes de tudo a perturbação que elas provocavam, em uma situação já de tanta tensão e revoltas.

As ideias de igualdade entre todos as pessoas, justiça, bondade, simplicidade, condenação da riqueza de uns poucos frente ao sofrimento de tantos, o questionamento da autoridade e da divindade dos imperadores, eram revolucionárias àquela época contra a exploração e a opressão romana, a luxúria e corrupção do sacerdotes, a pobreza, a miséria, a escravidão, e ameaçavam incendiar o barril de pólvora pronto para explodir que era a Palestina naquele momento. Por isso, os romanos, com apoio dos sacerdotes corrompidos, logo prenderam, torturaram e mataram Cristo.

Há muito de criação, ficção, fantasia, ideologia, feitas pelos apóstolos posteriormente em torno da figura de Cristo, necessária à construção do arcabouço de uma forte religião, da tentativa de explicação do mundo e das origens da humanidade. O que é compreensível para aquele momento, já que eles não tinham condições de dar uma explicação científica para as coisas e os fenômenos, pois a Ciência moderna não havia sequer começado. Os fenômenos sociais, os limites e as ideias dos que as difundem têm que ser analisados em seu contexto. Mas o fato é que Cristo e seus seguidores nos primeiros séculos cumpriram um papel muito progressivo, fortemente civilizatório, questionando as injustiças, a exploração, a desigualdade, a escravidão. Uma religião não teria se tornado tão ampla, forte e duradoura sem ideias poderosas que conquistaram milhões. Uma sociedade não pode se estabilizar sem regras básicas como as que estão nos dez mandamentos, sem um mínimo de valores, ainda que eles sejam descartados rapidamente por muitos quando não lhes convém.

Por se adiantar ao seu tempo, Cristo foi caçado e morreu em grande sofrimento, segundo os poucos relatos históricos sobreviventes da época, pagando com a própria vida por isso. Essa é a explicação também do porquê de os primeiros cristãos terem sido tão perseguidos por séculos no Império Romano, até que este adotasse o cristianismo como sua religião oficial no ano 380. Mas muito sangue correu antes disso. Depois de se institucionalizar e se burocratizar, contrariando sua origem, essa religião passou a ser usada também nos séculos seguintes para o terror contra os dissidentes, de forma reacionária, como foi depois na Inquisição. Até Hitler justificou seus crimes em nome de Cristo. Hoje, em nome do Deus cristão, muitos praticam as maiores atrocidades, defendem a desigualdade e a injustiça, difundem nas redes sociais a mentira e o ódio. Como disse uma vez Gandhi, os cristãos de hoje são tão diferentes do seu Cristo. Aprenderam a odiar os diferentes, a hostilizar os que pedem transformação e progresso, renegando a sua própria história.

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Galileu    

Galileu foi outro gigante do pensamento que também pagou caro por questionar pilares básicos do pensamento de seu tempo. No ano em que ele nasceu, 1564, a Igreja católica, já poderosa e burocratizada, estava adotando uma política de fechamento cultural, de obscurantismo, de perseguição à difusão de novas ideias, a Inquisição, como uma reação ao avanço do luteranismo – naquele momento progressivo – que ameaçava tomar toda a Europa. Em toda formação social, o objetivo da censura é sempre evitar as mudanças, manter determinada situação presente. Além das ideias de Lutero, que agora se propagavam rapidamente pela imprensa de tipos móveis de Gutenberg e corriam como incêndio por toda a Europa, circulavam também as ideias científicas revolucionárias de Copérnico – questionando o sistema aristotélico, que colocava a Terra no centro do universo – que a Igreja logo cedo tratou de condenar.

Toda mudança de paradigma ou ideias novas questionam a divindade, o saber, portanto a autoridade e o poder daqueles que defenderam os postulados errados por tanto tempo. O clima, portanto, era de censura, perseguição, fogueiras. Giordano Bruno fora condenado e queimado vivo na fogueira pouco antes, em 1600, por questionar a finidade do universo e denunciar a corrupção e a hipocrisia na Igreja. Antes já havia sido decapitado e queimado também Francesco Pucci, por propor de certa forma um retorno da Igreja aos ideais originais, de uma igreja universal.

Mesmo ciente dos riscos, Galileu, que só não teve o mesmo destino de Bruno e Pucci por ter mais autoridade que aqueles e ser muito hábil, decidiu desafiar os postulados eclesiais do sistema aristotélico. Foi perseguido e condenado por isso, passando os últimos dias de sua vida recluso em sua pequena propriedade, depois de ter sua pena de morte comutada para prisão domiciliar. Viria depois de séculos a ser apontado como a pai da Ciência moderna, mas morreu isolado, em sofrimento, humilhado, pagando caro por sua ousadia de se adiantar ao seu tempo, por sua coragem de questionar as ideias estabelecidas e os que as defendiam.

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Babeuf

François Noël Babeuf, nascido em 1760, mais conhecido como Graco Babeuf, o “Tribuno”, foi uma das figuras mais emblemáticas da segunda fase da Revolução Francesa iniciada em 1789, sendo uma fonte de inspiração para muitos revolucionários dos séculos XIX e XX. Alguns o consideram um dos primeiros socialistas de fato. A Revolução Francesa teve um caráter dual, burguesa e popular/proletária/camponesa ao mesmo tempo. Com o passar dos anos, no entanto, foi perdendo seu ímpeto revolucionário, sofrendo internamente um retrocesso conservador, processo conhecido também como Termidor. Os interesses burgueses passaram a predominar exclusivamente, mantendo os pobres no mesmo lugar, além do que os novos líderes passaram a perseguir aqueles que questionavam esses limites. O espírito genuinamente revolucionário de certa forma se esgotou já por volta de 1794, com todo tipo de autoritarismo e perseguições sendo cometidos em nome da Revolução.

Babeuf percebia a miséria dos camponeses e da população pobre abandonados pelos novos dirigentes da Convenção e pelos jacobinos e passou a protestar junto com um grupo contra isso, escrevendo a obra O Sistema de despovoamento, em 1794, onde denunciava a deriva ou o retrocesso ideológico da Revolução de 1789. Ali ele fornece boas pistas para se entender o declínio do movimento revolucionário, mostrando os equívocos dos novos governantes, saindo em defesa dos pobres, dos camponeses, das mulheres, das crianças, da gente humilde, que eram chamados de sans-coulottes, por usarem roupas grosseiras, vítimas agora dos novos tiranos.

Por ter a coragem de manifestar abertamente sua oposição aos desmandos dos novos governantes e deflagrar um movimento contra eles, dizendo que estes levavam adiante uma contrarrevolução, pervertendo os ideais da Revolução, Babeuf foi condenado a morte e executado em 27 de maio de 1797. Morreu, no entanto, altivo, dizendo o que esperava da História e lucidamente sabedor do porque era condenado, ou seja, por se adiantar ao seu tempo. No seu discurso final perante o tribunal que o condenou, ele disse “… é bonito ter seu próprio nome inscrito na coluna das vítimas do amor pelo povo. Tenho certeza que o meu estará lá! Feliz é você, Graco Babeuf, por morrer pela virtude!”

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Lenin

Lenin foi provavelmente a figura humana de maior influência para a história do “breve século XX”, como Eric Hobsbawm chamou o período que vai de 1917 a 1991, tendo sido o principal dirigente da primeira revolução socialista do mundo, que fez todo o mundo capitalista ficar aterrorizado, em guarda. Há muita polêmica sobre as concepções de Lenin e poucos personagens da história foram tão admirados por tantos milhões, mas ao mesmo tempo tão temidos, atacados, caluniados e odiados como ele. Suas ideias e ação marcaram o mundo não só por terem contribuído decisivamente para a construção da ex-URSS, por terem dado o sinal para a libertação de muitos povos, como também por toda reação e medo que geraram no campo capitalista, dividindo o mundo em dois campos.

Grande parte da História do século XX foi uma reação à Revolução Russa e às ideias de Marx e Lenin. Além dos grandes avanços sociais obtidos na própria URSS, poucos entendem que muitas conquistas sociais no Ocidente, as chamadas políticas públicas, foram concedidas pelo capital pelo medo que este sentia de que novas revoluções sociais, como aquela, acontecessem no mundo. A maior prova disso é que com a desagregação da ex-URSS em 1991, o capital acelerou muito o corte nos direitos sociais e nos sistemas de proteção em todo mundo, pois já não havia a quem fazer frente. Lenin cometeu alguns erros em minha opinião, mas a degeneração stalinista, com todas as suas perseguições, não tem a ver com suas ideias, mas, como analisou Trotsky, com outras razões objetivas mais poderosas, como o atraso material e cultural da velha Rússia e dos povos que constituíram a URSS e de que a revolução não foi pra frente na Europa Ocidental, como os revolucionários russos tanto esperavam, deixando a experiência soviética isolada. As condições para tentar construir uma sociedade igualitária eram muito desfavoráveis, terríveis, não ajudavam.

Mas cumprir esse papel essencial também custou muito caro a Lenin em sua vida pessoal. Na sua juventude, por viver num regime totalitário, seu irmão mais velho, Alexandre, estudante da Universidade de São Petersburgo, que tentou assassinar o czar em 1887, foi condenado e executado por isso; um choque imenso para Lenin, que o marcou para sempre, pois era muito próximo a ele. Sua família passou a ser hostilizada daí em diante, mesmo pelos amigos, que se afastavam. Apesar de ser excelente aluno, Lenin teve seu ingresso negado na Universidade de São Petersburgo, tendo que ir estudar na distante cidade de Kazan.

Por sua atividade contra o regime, foi preso pela primeira vez em 1897 e mandado para a Sibéria, onde ficou três anos. Libertado, foi exilado na Suíça. Durante o exílio de 17 anos – excetuando-se um breve retorno entre a Revolução de 1905 e 1907 – peregrinou por toda Europa, de cidade em cidade, tendo que viver precariamente em Genebra, Londres, Paris e Munique, driblando as forças de repressão. Historiadores contam que viveu precariamente, usando até mesmo caixas de madeira de embalagens como móveis. Faltavam-lhe às vezes algum dinheiro mesmo para manter a família, pelo que já aos 40 anos precisava de ajuda da mãe. Pouco se importava com tudo isso, era uma figura extremamente humilde; estava focado em outros grandes objetivos, mudar o mundo. E sabia o papel que podia cumprir.

Mas a vida de seguidos conflitos, perseguições, fugas, dificuldades, incertezas, decepções, o levava a ter seguidas explosões de estresse, problemas de pressão e fortes e frequentes dores de cabeça. Mesmo tendo cumprido um papel essencial na Revolução Russa e para toda história do século XX, essa figura central da história humana do século XX sofreu um atentado a bala, com o projétil se alojando em seu corpo, teve seguidos derrames e morreu cedo, aos 53 anos.

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Trotsky

Incluo aqui o exemplo de Trotsky também para assinalar que a reação contra quem se adianta em dizer a verdade ou questionar o que está errado em seu meio ocorre mesmo dentro das fileiras da esquerda socialista, que se pretende revolucionária e inovadora. O capitalismo já é uma formação moralmente decadente e, afinal, a esquerda também está inserida nesse meio podre, nesse sistema, e esse declínio de valores a afeta gravemente em seus métodos. A esquerda não é constituída de santos.

Em sua juventude, Trotsky foi preso na Sibéria, de onde fugiu, passando a viver exilado em vários países da Europa, como Lenin. Voltando à Rússia, ele foi um dos maiores dirigentes e responsáveis pela vitória da Revolução Russa, tendo participação destacada tanto em 1905 quanto especialmente em 1917, chegando a ser o presidente do soviét de Petrogrado, epicentro da revolução. Dirigiu o Exército Vermelho, vitorioso contra as forças reacionárias na guerra civil que se seguiu. A URSS sofreu um verdadeiro cerco das potências capitalistas por todos os lados, saiu vitoriosa, mas arrasada.

Depois de consolidada a vitória e após a doença de Lenin, ao perceber que a Revolução, por várias razões, começava a se burocratizar, a sofrer um retrocesso, um declínio, uma espécie de Termidor Soviético, Trotsky passou a criticar e se enfrentar com a nova burocracia nascente e seus privilégios. Muitos acham que a questão se tratou apenas de uma briga pessoal entre ele e Stalin. Não foi isso. Este último encarnava e incentivava a burocratização, o retrocesso, e instalou um regime monolítico de partido único, de perseguição e massacre dos críticos e oponentes, mesmo os que estavam a sua esquerda. O ambiente de isolamento, retrocesso e cansaço ajudou Stalin. Trotsky previu que se não houvesse uma nova revolução por dentro da Revolução, que regenerasse seus objetivos iniciais, ou uma revolução internacional, que socorresse os soviéticos, algum dia a URSS se perderia. A história, infelizmente (!), deu razão a ele.

Foi exilado por Stalin, peregrinou por diversos países sem que os governos capitalistas o aceitassem. Ao final, exilado e isolado no México, foi morto por um agente da burocracia stalinista com uma picaretada na cabeça. Pagou com a própria vida por ver e denunciar antes da maioria os erros e o processo de burocratização que envergonharam o socialismo, o que deu argumentos ao capital para atacá-lo e desmoralizá-lo como um sistema totalitário e levou depois ao seu colapso. Aqui é importante lembrar que a maioria da gente simples do partido, muitos revolucionários, que não entendiam exatamente o que estava se passando, ficaram ao lado de Stalin contra Trotsky, o que demanda uma explicação, que é um dos objetivos dessa minha carta.

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Além desses nomes que citei, poderíamos com certeza dizer que ao longo da história, milhões de seres humanos perderam a vida ou pagaram caro por se adiantar ao seu tempo, questionar as injustiças, a desigualdade, os sistemas totalitários, as ideias erradas e anacrônicas, os velhos costumes, por defenderem a verdade ou apenas por serem diferentes. Eu poderia falar aqui de Mandela, Ghandi, Martin Luther King e tantos outros, mas essa carta iria ficar maior do que já está. Milhares de mulheres morreram na Idade Média simplesmente porque eram ruivas ou porque não queriam casar ou se submeter aos homens, caçadas como bruxas. A epopeia humana sobre o planeta é bela, mas também bárbara, cruel.

Mesmo entre a burguesia, muitos dos que se adiantaram ao seu tempo terminaram rejeitados, incompreendidos, perseguidos, derrotados. No Brasil, temos os casos de Mauá e Gurgel, por exemplo. Os primeiros capitalistas foram hostilizados pela aristocracia rural no final da Idade Média e tiveram que fazer revoluções contra ela para impor o seu sistema econômico e político. Hoje perseguem os que querem suplantá-lo.

A tentativa de mudança é inerente aos seres humanos. Quem entre nós nunca pensou em mudar a realidade em que nascemos e vivemos? Quem não pensou em mudar as ideias anacrônicas para melhorar a sociedade? Quem não enfrentou a família e os pais quando estes se apegam a ideias do passado?  Mas cada um que algum dia já questionou ou enfrentou o que vemos de errado, dentro de nosso país, de nossa empresa, de nosso partido, de nossa escola, nosso departamento, ou mesmo em nossas famílias, sabe do que falo aqui, dos altos custos dessa opção para suas vidas.

As perguntas que devemos responder são: por que as formações, sistemas, estruturas ou organizações sociais repelem, perseguem os que questionam as ideias estabelecidas, na maioria das vezes erradas, sobre as quais se assenta seu funcionamento? Por que tanto medo e mesmo ódio aos diferentes? E além disso, por que, muitas vezes, mesmo a maioria das pessoas simples, vítimas desses sistemas, ficam contra os que querem mudanças para melhorar a sociedade e se colocam ao lado dos algozes? Por que muitas vezes simplesmente dizer a verdade e fazer a coisa certa gera tanta aversão e ódio nos medíocres, quando devia ser o contrário? Martin Luther King disse uma vez que para arranjar inimigos não se precisa fazer mais nada do que dizer a verdade.

Teoria dos Sistemas

Depois de muito tempo buscando entender porque tudo isso ocorria encontrei alguma resposta na Teoria dos Sistemas, que incorpora também princípios da Física, da Biologia, da Química, teoria que pode muito bem ser aplicada às Ciências Sociais. Impérios, regimes políticos, sociedades, partidos, ou mesmo empresas, repartições, universidades, grupos humanos, famílias, ou seja, as estruturas humanas, funcionam como sistemas socioculturais, complexos sociais.

Todo sistema, apesar de estar em constante transformação, tem um certo equilíbrio. Quando esse equilíbrio é perturbado, o sistema tende a remover a perturbação e tenta restabelecer o equilíbrio anterior. Na Química, isso é conhecido como o Princípio de Le Chatelier. Da Física, conhecemos o princípio newtoniano de ação e reação; a toda ação corresponde uma reação. Por isso em Ciências Sociais e na política os conservadores são chamados de reacionários, porque reagem contra as tentativas de mudança das coisas, ao progresso. Da Biologia, sabemos que o sistema imunológico detecta, cerca, tenta matar e expelir os elementos invasores, os germes, o que nos lembra que nem sempre toda mudança é boa. Mas esse já seria outro assunto.

Por isso, os sistemas políticos e sociais e as demais estruturas humanas, especialmente quando muito atrasadas e conservadoras, e mesmo as ciências, tenderam a rejeitar, hostilizar, perseguir, os que propõem transformação, os diferentes, os que se adiantam em relação às ideias de seu tempo, os revolucionários, para manter o status quo, a ordem, em geral sistemas de opressão e desigualdade, ou paradigmas errados, como o sistema aristotélico.

As ciências também se comportam como sistemas complexos de ideias e reagem inicialmente contra as mudanças dos paradigmas por muito tempo estabelecidos. Para quem quiser se aprofundar no assunto sobre a relação dialética entre permanência e mudança no campo do conhecimento e das ideias, sugiro também ler ou reler as teorias de Thomas Kuhn, sobre As Estruturas das Revoluções Científicas, para entender as imensas dificuldades em se substituir um velho paradigma por outro novo no campo da Ciência.

Mas a outra pergunta essencial que colocamos acima é porque mesmo grande parte das pessoas simples, mesmo quando vítimas desses sistemas sociais injustos, hostilizam os que querem mudanças progressivas e ficam ao lado dos opressores, dos conservadores e mesmo dos fascistas. Isso ocorre porque os sistemas não se compõem apenas dos governantes, das camadas superiores. A grande massa da gente simples, mesmo as mais pobres e exploradas, muitos trabalhadores, são também parte integrante e reprodutora do complexo, são pequenas engrenagens de todo o sistema. A maioria das pessoas foram educadas com as ideias predominantes em sua época nessas estruturas sociais humanas por muito tempo, ou seja, com a ideologia dos opressores, dominante por longos períodos.

Mesmo nas correntes de esquerda esse mecanismo pode ser observado, com grande parte da militância das organizações socialistas hostilizando os que se adiantam em ver corretamente um fenômeno que nega a visão predominante no grupo ou questionar sua política e seus métodos equivocados.

Aceitar o novo, o desconhecido, traz insegurança, enseja perigo. Portanto é mais seguro continuar com o conhecido, o estável, mesmo que ele seja precário, seguindo a força das velhas ideias, dos costumes, dos preconceitos, dos hábitos, aprendidos por gerações. Por isso, as pessoas de menor formação tendem a reagir com medo e aversão ao novo, são capturadas facilmente pelas seitas conservadoras. Querem mudança, mas ao mesmo tempo estabilidade, segurança.

Como os demais animais, os seres humanos também são territoriais e reagem inicialmente de forma hostil a qualquer elemento novo perturbador, intruso, diferente, em seu espaço, seu sistema, que não conseguem entender ou pensem que possa implicar para eles alguma ameaça à sua segurança, ao seu modo de vida relativamente estável, mesmo que este seja precário. Isso é antropológico, tem origem na nossa longa história como animais no planeta em luta pela sobrevivência contra todos os tipos de ameaças. Essa é a base psicológica da xenofobia, a aversão ao estrangeiro, ao diferente, que vemos em muitos países, muito bem explorada pelos partidos conservadores ou fascistas. É também a explicação do preconceito das pessoas de menor compreensão, mais conservadoras, contra as mudanças no campo da sexualidade, dos costumes, contra a população LGBT, por exemplo.

Muitas vezes as pessoas mais conservadoras acham que ao defender ideias ultrapassadas, anacrônicas, apoiando os governantes que as aplicam, mesmo quando são opressores ou reacionários, propagando o ódio e a violência, estão fazendo a coisa certa, defendendo a sociedade, sua religião, seu Deus. É a ideologia da manutenção da ordem, tão comum entre alguns agentes de segurança.

Apesar de toda tecnologia, a humanidade não se livrou ainda dos seus fantasmas, de seus medos, seus diabos, suas velhas tradições, de seu longo passado de incultura, obscurantismo e misticismo. A Ciência e o mundo moderno e urbano são muito recentes e os poderosos e religiosos desonestos atacam a Ciência conscientemente, porque sabem do risco que ela implica ao seu domínio de ignorância. As grandes redes de comunicação estimulam todas as velhas tradições e fantasmas na mente da gente simples, propositalmente, mesmo quando seus proprietários já não acreditam neles. O passado está bem aqui entre nós, hoje, lado a lado com o futuro, como o musgo que se agarra na pedra ao lado da correnteza. Vemos isso hoje no Brasil com pessoas pobres apoiando um presidente de ideias fascistas.

Muitos funcionários nazistas achavam que estavam fazendo o certo, defendendo sua sociedade, sua religião, seu Deus, ao serem cúmplices das piores atrocidades de Hitler. Hannah Arendt discutiu isso em seu livro no qual trata do julgamento do carrasco nazista Eichmann, em Israel, analisando o que chamou de A banalidade do mal, ao descobrir, durante o julgamento daquele carrasco, que ele não passava de um funcionário medíocre, apenas uma peça menor da máquina nazista, uma alma pequena. Ele realmente achava estar fazendo a coisa certa, insensível a todo mal que provocou a centenas de milhares de seres humanos no campo de concentração que dirigiu, dizendo que apenas cumpria ordens.

Torna-se importante entender esse mecanismo mental de toda essa gente para saber dialogar com essas pessoas, quando não sejam mal caráteres, gente perversa, má. Com esses últimos não há diálogo, se combate duramente. Mesmo que Bolsonaro venha a ser derrubado, o fato de que tantos milhões de pessoas tenham sido conquistados para ideais fascistas no Brasil é uma derrota para nós que defendemos um mundo melhor. Será um grande desafio reverter isso. Infelizmente, como eu já disse aqui outras vezes, os erros recentes da esquerda no governo passado pavimentaram o caminho para o crescimento da direita fascista no Brasil, o que muitos se negam a reconhecer, sem um mínimo de autocrítica.

Mas mesmo a esquerda que se propõe revolucionária e a construir um mundo novo, hostiliza e penaliza dentro de suas fileiras, ou seja, em seus microssistemas, aqueles que se adiantam ao seu tempo nas ideias, nas análises, na ação. Já dei o exemplo de Trotsky, um revolucionário genuíno, que foi perseguido, caluniado e por fim morto por dirigentes de partidos que se propunham comunistas. E tem gente que acha isso normal

Quantas vezes a própria esquerda não hostilizou ou expulsou de suas organizações os que se adiantaram em analisar corretamente um fenômeno, por contrariar sua visão errada do que se passa na realidade, por criticar suas alianças ou políticas danosas, por criticar seus métodos internos equivocados e autoritários, na maioria das vezes, e infelizmente, com o apoio da ampla maioria dos militantes, que achavam estar com isso defendendo seu partido. Isso também acarreta desmoralização de muitos, sofrimento, dispersão. Essa é uma das razões da desagregação e da fragilidade atual da esquerda socialista. A esquerda que quer mudar o mundo carrega ao mesmo tempo os germes do novo e do velho em seus métodos. Sem entender isso, demorará mais para construir uma alternativa. Reconhecer os erros e mudar é sempre difícil. Mas é também uma demonstração de grandeza da alma.

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O mérito de andar na frente

Bem, fizemos toda essa longa discussão até aqui, começando por Marx, Cristo, Galileu, para mostrar o alto preço em perseguições, constrangimento, sofrimento, que pagaram ou pagam todos aqueles que se adiantam ao seu tempo, os contestadores, os rebeldes, os diferentes, os inquietos, os revolucionários. Mas para fecharmos esta carta, porque ela já está demasiado longa, devemos apontar também, como diz o seu título, o imenso mérito destes, a essencialidade de todos aqueles que caminham na frente do seu tempo, dos que ousam desafiar as estruturas e ideias erradas de sua época. São eles que constroem um mundo novo, melhor, uma civilização mais elevada, não os seus algozes.

Todos se referem a Cristo todos os dias ao lembrar do ano atual no calendário. Mas alguém lembra dos nomes dos sacerdotes que o entregaram aos romanos para ser crucificado? Alguém lembra do nome dos cardeais do tribunal que condenou Galileu? Alguém lembra dos verdugos de Babeuf? O pensamento de Marx segue cada vez mais vivo, como eu disse no início, enquanto seus perseguidores serão esquecidos na história. E mesmo os déspotas, os ditadores e opressores de todo tipo que serão lembrados no futuro ficarão para a história humana ao lado do mal, como Hitler, Mussolini. Os nomes de Lenin e Trotsky serão lembrados no futuro como os grandes dirigentes da Revolução Russa; o de Stalin, como seu coveiro.

O futuro reserva um lugar de júbilo na história para todos aqueles que ousaram e ousam construir um mundo melhor, mais justo, solidário, educado, esclarecido, tolerante, humano, democrático, de paz entre todos os povos, como esperava Babeuf em seu último discurso. A questão é que queremos que isso chegue logo e nos desesperamos com a demora, com os revezes, pois a vida é tão breve. No entanto, mesmo tendo uma vida tão curta, temos que ter paciência histórica, lembrar que se passaram 380 anos antes de o cristianismo virar o jogo e chegar a ser aceito como religião no Império Romano. Mas desde o tempo de Marx decorreram apenas 130 anos. Fazem apenas 100 anos da Revolução Russa. E a história é caprichosa, parece adorar dar voltas, nos torturar.

Mas é preciso lembrar também que muito desse atraso de o futuro chegar decorre das grandes oportunidades desperdiçadas, perdidas, das traições de partidos de esquerda quando chegam ao poder ou aos governos, o que abre o campo para o capital e a direita atacarem a ideia de uma nova sociedade, os movimentos sociais e para os retrocessos, criando desmoralização. Não fazemos história contrafactual, mas imagine-se que se na ex-URSS, em vez de um sistema totalitário, tivesse havido um socialismo genuíno, democrático, fraterno: que atração verdadeira teria exercido sobre todos os povos. Se alguns governos de esquerda não tivessem sido tão covardes e aplicado as mesmas políticas do capital, a situação atual podia ser bem diferente. Talvez o mundo hoje fosse outro, com o capitalismo já suplantado.

Apesar de tudo, o futuro será daqueles que ousaram e ousam mudar o mundo para melhor, ainda que a um custo altíssimo em sua vida pessoal. Por isso, quero dedicar essa carta a todos eles, em toda história, aos reconhecidos e aos tantos esquecidos, aos milhões que perderam a vida na luta contra o obscurantismo, a injustiça, a mentira e o mal, e também a todos vocês que estiveram nas ruas do Brasil nesses dias, o que nos enche de esperança, lutando ao lado do bem por um novo tempo, por um país melhor, mais justo, em defesa da civilização e da vida no planeta. Enquanto é tempo. Gigantes como Marx, Cristo, Galileu e tantos outros estão mais vivos que nunca. É deles que herdamos o que de melhor tem a humanidade hoje.

 

Londres, 01 de junho de 2019        

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O 15m 2019 no Brasil e o desgaste precoce do governo Bolsonaro: como as redes sociais e o mundo em rede aceleram todas as experiências e encurtam o tempo histórico

Por Robério Paulino

Muitas vezes quando estamos imersos no turbilhão de um processo social não conseguimos compreender exatamente seu real significado e sua dimensão. Para isso, torna-se necessário parar, tomar distância, se elevar, ver de cima o que se passa, de forma panorâmica, ao mesmo tempo que recorrer à História, a processos passados, comparar. Além disso, se não queremos ser impressionistas, é importante levar em conta todos os elementos da realidade, não apenas alguns que nos afetam mais.

Recorrendo a um exemplo histórico para exemplificar a questão, historiadores apontam que os que viveram o tempo da Revolução Industrial aqui na Grã-Bretanha, iniciada por volta de 1760/80, não se deram conta em sua época da real dimensão do processo revolucionário que estavam vivendo. O termo Revolução Industrial só veio a entrar na literatura com esse nome já por volta de 1850, ex-post. Nem mesmo Marx e Engels o usaram no seu célebre Manifesto Comunista.

Em minha segunda carta daqui de Londres, escrita antes das manifestações de 15M no Brasil, afirmei que a Revolução Tecnológica que vivemos e as redes sociais estavam acelerando todos os processos e as experiências com governos, partidos, ideias, e que, portanto, o desgaste do governo Bolsonaro seria provavelmente rápido. Nenhum de nós, imaginava, no entanto, que tão rápido. Amigos de várias partes do Brasil que leram aquela carta entraram em contato comigo para dizer que eu estava muito otimista, que não estava vendo a dificílima situação pela qual passamos no Brasil com a ascensão de um radical de direita ao governo. Alguns me disseram mesmo que a vitória de Bolsonaro era uma derrota histórica dos trabalhadores e que tínhamos que nos preparar para um longo inverno, no que toca à situação política no Brasil.

Penso que as manifestações de 15/05 no Brasil – que nos enchem de ânimo e orgulho, especialmente por nossa juventude, e nos dão muitas esperanças de dias melhores – ajudam a esclarecer a questão e revermos juntos nossas visões, o que há de negativo e o que há de positivo na situação política do país. Lutas sociais e mesmo revoluções não acontecem quando os povos estão bem, mas exatamente quando os direitos sociais e as condições de vida das populações são fortemente atacados, quando a situação se torna insuportável. O tamanho do ataque às universidades públicas e à educação turbinou as mobilizações. A estupidez e inabilidade de Bolsonaro e seus ministros também.

As manifestações de junho de 2013 foram progressivas, porque, apesar de começarem lutando contra os aumentos das passagens, questionavam de certa forma também a farra da construção de gigantescos estádios com dinheiro público desviado para a corrupção, entre várias outras bandeiras que levavam ao descontentamento. Mas tiveram aquele caráter difuso e terminaram por serem aproveitadas mais ao final também por grupos de direita para engatarem o processo de impeachment de Dilma Rousseff depois.

O 15M 2019 é claramente diferente, é uma grande manifestação nitidamente política contra Bolsonaro e contra a direita, com uma potência que alterou um pouco a situação nacional a favor dos trabalhadores e da juventude, colocando na pauta inclusive a possibilidade de impeachment do presidente, ampliando a crise no campo conservador. O 15M está mais para um maio de 1968 do que para junho de 2013.

Não devemos de forma alguma menosprezar a séria derrota que sofremos nas últimas eleições, nem os ataques que estão por vir. O governo ainda não foi derrubado, a Reforma da Previdência continua tramitando no Congresso, os cortes nas universidades não foram suspensos. O movimento ainda é essencialmente limitado à juventude e aos trabalhadores da educação. Os demais trabalhadores ainda não se envolveram. O teste será dia 14/06. E mesmo que Bolsonaro caia, pode assumir um vice-presidente igualmente conservador e duro contra os movimentos sociais e os trabalhadores, talvez mais hábil, que vai tentar manter aquela reforma e os ataques às universidades e à educação. A grande burguesia liberal já se articula para essa substituição e começa a descartar Bolsonaro, porque já percebeu que ele pode incendiar os movimentos sociais e o país com seus arroubos.

Mas o fato é que a reação contra os ataques aos direitos do povo já começou, muito forte e muito rápida, depois de apenas 4 meses e meio da posse do novo governo. E pode contagiar outros setores da população e dos trabalhadores e mesmo derrubar Bolsonaro em pouco tempo, se as lideranças mais uma vez não vacilarem. Se a greve geral de 14 de junho for mantida e for forte, bastaria depois dela marcar uma nova paralisação nacional por um período maior ou por tempo indeterminado e governo estaria nas cordas. O que parece é que podemos estar vivendo apenas o prólogo de uma nova grande jornada de lutas no país, se algumas lideranças não se apropriarem e abortarem o movimento, tentando desvirtuar tudo apenas para o funil de um projeto eleitoral no próximo ano. Além disso, não podemos colocar a mão no fogo pela maioria de nossas centrais sindicais, pelo que já vimos de outras vezes. Mas agora trata-se de buscar toda unidade possível e preparar com força a greve geral para que ela se torne irreversível.

Eu havia escrito outra carta, sobre outro assunto, que envio nas próximas semanas, mas, em função dos acontecimentos no Brasil, optei por mais uma vez abordar a questão de como a Revolução Tecnológica vem acelerando todos os processos e experiência sociais, como se relacionam com o 15M 2019. A comunicação em tempo real e as redes sociais explicam em muito a velocidade da mudança da situação política no Brasil.

Muitos analistas sérios em todo mundo têm mostrado o lado ruim de como as redes sociais vêm servindo a governos, a mega-empresas e conglomerados de comunicação para o controle das massas populares e de dados, ao monitoramento de cidadãos do mundo inteiro pelo governo norte-americano e apontam a nossa desvantagem na capacidade no impulsionamento em relação aos grandes grupos econômicos etc. São conhecidos os casos de manipulação de eleições, com disparos em massa de mensagens, fake news, inclusive por robôs, o que pode ter, inclusive, alterado o resultado das eleições no Brasil em 2018. Outros apontam que as pessoas estão passando tempo demais ligados em seus smartphones ou computadores nas redes sociais, que isso vem afastando e até mesmo alienando as pessoas, viciando crianças e jovens.

Na última carta falei do pessimismo de Zygmunt Bauman com as redes sociais e que Umberto Eco chegou a dizer que elas têm dado voz a milhões de imbecis. Tudo isso é certo. Esse é o aspecto negativo desse processo, que não menosprezo. Mas é apenas um lado da questão. Todo fenômeno em geral é contraditório, tem dois lados. A Revolução Tecnológica que vivemos e as redes sociais também têm também um papel extremamente progressivo, revolucionário, sem que as vezes não nos demos conta.

Nunca na história humana a informação viajou tão rápido. Temos informação em tempo real sobre tudo. Um fato corre o globo em minutos. Veio na minha cabeça a lembrança de um vídeo gravado na escotilha da ISS, Estação Espacial Internacional, há alguns anos por astronautas orbitando sobre o Atlântico, quando cruzaram aquele oceano em poucos minutos. Que diferença de um veleiro, que, ainda em 1850, demorava semanas para levar as novidades de um continente a outro.

Andando aqui pelas ruas de Londres notei também que, com a disseminação dos smartphones, por toda cidade as cabines telefônicas vermelhinhas – que cumpriram a função de nossos antigos orelhões aí no Brasil – estão vazias, abandonadas. Nem sei porque não foram ainda retiradas da paisagem urbana ou revertidos para outros usos. No Museu de Londres, que visitei no último fim de semana, existem expostos um aparelho de telex e um dos primeiros microcomputadores da década de 1980, como parte da história da cidade. Estavam ali literalmente como peças de museus. Mas isso foi ontem. A velocidade estonteante das mudanças encurta o tempo de tudo.

Hoje, com a comunicação em tempo real pelas redes sociais e portais hospedeiros, possibilitados pela Revolução Tecnológica que vivemos, todas as pessoas que quiserem podem ter uma página com milhares de amigos com os quais se comunicam instantaneamente. Bilhões estão em aplicativos como FACEBOOK, WhatsApp, Twitter, etc. Essas páginas e milhões de blogs e sites independentes vinculam notícias antes das grandes redes de comunicação, quebrando de fato seu monopólio da informação, como já afirmei anteriormente. Toda cidadezinha perdida nos mais distantes rincões do globo tem suas páginas próprias, que reproduzem as notícias nacionais e internacionais em tempo real. Mesmo o rádio e a televisão têm que ecoar o movimento das redes.

Mas vai muito além disso. Hoje, universidades, cientistas, profissionais, empresas, grupos sociais de todo tipo mantém comunidades virtuais, muitas vezes com integrantes localizados em diferentes países do mundo. Isso vem acelerando, por exemplo, a disseminação dos resultados das pesquisas e do conhecimento, a ajuda mútua, a colaboração, de forma nunca antes imaginada. Museus trocam informações em tempo real. Universidades e acadêmicos organizam encontros nacionais e internacionais através de grupos. Médicos ajudam em cirurgias do outro lado do mundo. Comunidades de pessoas com doenças raras se encontram e se ajudam. Mesmo uma criança pode ter o conhecimento do mundo em suas mãos através dos mecanismos de busca. Repito que no terreno da tecnologia estamos vivendo uma revolução sem perceber.

Cheguei a Londres com receio de como iria me comunicar com o Brasil, já que minha empresa telefônica do Brasil não me dá acesso aqui. Temor desnecessário. Comprando um simples chip de uma operadora local por 10 libras podemos nos colocar em contato com todos no Brasil imediatamente. Mas nem era preciso, porque em qualquer lugar, residência, faculdade, restaurante ou café da cidade ou do planeta que tenha Wi-Fi hoje você se conecta ao mundo todo instantaneamente com seu celular ou computador, com vídeo, sem pagar ligação telefônica, pelo Skype ou WhatsApp. Vejo imigrantes e turistas falando com seus países de origem no meio da rua, nos museus, o tempo todo, enviando fotos, vídeos. A sociedade toda em rede, como disse Manuel Castells.

Daqui do meu cantinho na biblioteca da LSE (London School of Economics), onde passo a semana pesquisando e escrevendo e de onde comecei a redigir esta carta, a cada duas horas parei para descansar a cabeça e acompanhei em tempo real as mobilizações do 15M no Brasil e inclusive ajudei a mobilizar. Como o mundo ficou pequeno. O Brasil inteiro viu as manifestações do 15M pelas redes sociais em tempo real.

A Globo e demais emissoras já não têm jeito de esconder tudo. Não é só por sua postura de se afastar do governo Bolsonaro não, mas também porque já não podem ocultar os fatos para não perderem credibilidade e se desmoralizarem; as redes sociais os revelam antes. Alguns amigos acharam exagerado quando eu disse que o monopólio da informação está sendo quebrado. Pois está aí o novo tempo para todos que quiserem ver.

É verdade que as redes sociais podem ter dado voz a uma multidão de gente pouco letrada, que escrevem errado, muitos ignorantes, como reclamou Eco. Mas penso que não há qualquer problema nisso; o fato é que elas também deram voz a outras centenas de milhões de pessoas progressistas, esclarecidas, a milhões de jovens, que antes não tinha voz nenhuma e que hoje podem falar com outros bilhões, o que antes era muito mais difícil. As redes provocam o choque de visões, o debate, e isso é bom, apesar das provocações que vemos. Lembremos que as ideias erradas sempre existiram e se apoiaram na ignorância, na escuridão, na desinformação. Não foi à toa que um período da Idade Média foi chamado de Idade das Trevas. Por isso, governos autoritários têm tanto medo e censuram as redes sociais. Têm medo da informação.

Na minha tese de doutorado, mostrei como a ex-URSS começou a ficar para trás na corrida tecnológica no início da década de 1980 a partir do momento em que seus governos tentaram impedir a posse individual de microcomputadores e impressoras, para evitar a disseminação de informações. Um tiro no pé. Penso que nas próximas décadas teremos grandes e boas novidades políticas vindas da China contra seu regime autoritário. É só uma questão de tempo; o caldeirão está cozinhando. O governo chinês monitora e censura as redes, mas aquele país gigante se urbaniza e se escolariza rapidamente e se integra por mil vasos comunicantes. Nos EUA os governos monitoram dados de milhões de cidadãos no mundo através das redes sociais, mas enfrentam resistência a isso.

Os jovens, particularmente, têm sabido usar muito bem as redes sociais, já nasceram em seu tempo, não têm qualquer problema com isso. Lembro do banho que a juventude pobre, filha de imigrantes e discriminada nas periferias de Paris deu na polícia durante a Revolta de 2005, usando as redes sociais para enganá-la. A polícia ia para um local anunciado para as manifestações, mas elas irrompiam em outros bairros.

No Brasil, as manifestações do 15M 2019 foram convocadas essencialmente pelas redes. E a juventude esteve à frente delas. Governos sempre se aterrorizam quando veem milhares de jovens nas ruas, que têm o potencial de contagiar todo um país e iniciar grandes transformações, como foi em maio de 1968 na França, nas mobilizações contra ditadura no Brasil ou no Fora Collor.  Pela primeira vez em muitos meses, a direita perdeu a guerra nas redes sociais nestes dias do 15M, segundo diversos mecanismos de monitoramento.

Por isso, afirmei na última carta que a ascensão da direita no Brasil e no mundo não decorria do advento das redes sociais, mas também das experiências das populações com governos de esquerda. As redes sociais são inocentes. A direita tem sabido usá-las muito bem, talvez melhor que esquerda, porque tem muito dinheiro para impulsionar, para pagar funcionários e robôs, propagar fake news, que confundem as pessoas sem formação mais ampla, apelando aos preconceitos, aos demônios que assustam as cabeças de pensamento mais formalista, mobilizando os subterrâneos mais obscuros da mente humana, o medo, o ódio, a ignorância, a inveja.

Mas a mentira e as farsas têm pernas curtas e uma hora são desmascaradas. A esquerda tem a razão histórica, tem clareza e as melhores ideias. Mas não temos sabido explorar todo o potencial que as redes oferecem. É preciso ser mais ousados e dialogar, convencer, conquistar. Não é necessário insultar, humilhar, as pessoas mais fracas que votaram na direita. As pessoas pensam. Muitos jovens que apoiaram Bolsonaro já estão percebendo o erro e alguns até participaram do 15M. É por isso que eu disse na minha carta anterior que a Revolução Tecnológica, a comunicação em tempo real e as redes sociais poderiam tornar a experiência com Bolsonaro muito rápida, podendo mudar a situação política em pouco tempo.

Além disso, será difícil voltar a ganhar alguns setores populares e de classe média se esquerda não souber ser autocrítica. Porque quando ela chegou aos governos aplicou algumas das mesmas políticas que combatemos hoje, fez alianças com os que nos atacam hoje, teve as mesmas práticas que criticamos hoje. O ódio que vemos atualmente mesmo em setores da população tem a ver em grande medida com as decepções com governos de esquerda. É verdade que houve um golpe contra Dilma, a Lava Jato, contra o que lutamos. Estamos a favor da liberdade imediata de Lula, porque está patente a parcialidade. Mas foram também os erros, as práticas e alianças da esquerda nos governos anteriores que pavimentaram o caminho para o impeachment de Dilma e a subida de Bolsonaro.

Essa discussão vem sendo deixada de lado em função da necessidade de unidade do movimento social para enfrentar os ataques aos direitos sociais. Toda unidade na ação é preciso. Mas deixar de dizer as coisas como de fato foram é um erro. Unidade não pode significar veto ao debate. Afirmar isso que digo aqui com certeza é antipático. Martin Luther King dizia que para arranjar inimigos basta dizer a verdade. Mas é necessário. Não falo isso aqui com sentido de dividir, mas de nos fazer pensar sobre o passado recente para não cometer os mesmos erros.

Dizemos que os apoiadores da direita são alienados, não pensam, são sectários. Mas devemos nos perguntar se, quando está no governo, no controle de algum órgão, partido ou entidade, esquerda é menos intolerante, menos sectária, mais autocrítica, mais democrática. Infelizmente, há pouquíssimo sentimento autocrítico na esquerda sobre seus erros recentes e como eles pavimentaram a ascensão de Bolsonaro. A sociedade está embrutecida. E a esquerda, como parte desse meio, também. Digo isso porque sem uma avaliação autocritica do passado recente, de sua política e de suas práticas, a esquerda cometerá os mesmos erros se chegar novamente aos governos.

Para ir terminando essa carta, voltemos ao nosso assunto que é como entender a situação política atual e o potencial das redes sociais na aceleração do tempo histórico e das experiências com ideias e governos. Por muito tempo, usamos a fórmula de que para seguir adiante precisamos do pessimismo da razão e do otimismo da vontade. Essa formulação é um pouco subjetiva. Não podemos ver a situação através da lente do pessimismo ou do otimismo, mas objetivamente, como ela é de fato, com todas as suas tendências contraditórias em diferentes sentidos, em constante movimento e, como insistia Marx, voltar a estudar toda a história para, com as lições do passado, não repetir os erros no presente. Enquanto bebemos do vigor da juventude, cabe às gerações mais velhas passar essa experiência histórica aos jovens, numa grande troca. Não há nenhuma situação ruim para sempre, tudo é uma questão de tempo. E tudo se acelera.

Quero terminar dizendo de nossa imensa alegria com os últimos acontecimentos no Brasil, que nos enchem a todos o coração de esperança e confiança em que nossa luta não foi nem será em vão. É preciso acreditar que a humanidade tem futuro, acreditar que uma hora a inteligência humana superará a ignorância, a mentira, o egoísmo, a injustiça, o ódio, a maldade. Já fez isso antes em situações muito piores. E sabermos ser ousados, dialogar, empolgar, conquistar corações e mentes para a melhor alternativa.

Londres, 18/05/2019

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Os livros que sumiram do metrô de Londres, as redes sociais e a aceleração do tempo histórico com a revolução tecnológica e a internet

Pessoas trocam livros por celulares (Foto: autor não identificado)

Por Robério Paulino

Nas minhas idas diárias de Metrô até o centro de Londres para meu trabalho de pesquisa na universidade que me recebe, neste primeiro semestre de 2019, observo atenta e discretamente as pessoas, suas atitudes, seus costumes. Antes de vir para cá pela primeira vez, durante boa parte de minha vida, escutei que em um país culto como a Inglaterra as pessoas iam e voltavam do trabalho lendo livros no Metrô e nos ônibus. Era isso que esperava encontrar aqui. Que nada. Contei e contei muitas vezes e, numa média, percebi que hoje, aqui também, de cada 10 passageiros, entre 7 e 8 estão ligados em seus smartphones, até certo ponto alheios ao entorno, trocando mensagens com alguém do outro lado, lendo ou escutando notícias, vídeos, músicas. Alguns poucos leem esses jornais tabloides sensacionalistas de notícias, distribuídos gratuitamente na porta das estações, aqui muito comuns. Quero nesta carta dizer por que considero a Internet e as redes sociais uma pequena revolução, apesar de tudo que vemos também de negativo nelas.

Vi, no bairro onde estou morando temporariamente, Harlesden, um reduto de imigrantes humildes, indianos, árabes, asiáticos do leste, africanos, e muitos brasileiros, as coisas aparentemente mais contraditórias. Aqui tem de tudo, lojinhas e mercadinhos com produtos de todo o mundo, gente falando tudo que é língua. Muitas mulheres muçulmanas – e aqui existem muitas -, com seus véus ou hijabs, ativas e alegres falando em seus celulares nas suas línguas de origem, no que pode parecer um paradoxo. O centrinho comercial do bairro parece uma pequena 25 de março, em São Paulo, só que também com mercadinhos e lojas de produtos e fastfoods de tudo quanto é lugar do mundo, frutas vendidas nas calçadas, casas de jogos, com gente de tudo que nacionalidade, um pequeno mercado de Istambul. Como professor, fiz questão de procurar e visitar a escola infantil do bairro e percebi que mais de 2/3 das crianças são filhos de imigrantes, mas já inglesas.

Londres é uma cidade de fato mundial, com gente de todas as cores, raças, religiões, línguas, em todas as esquinas, especialmente na periferia. Tirando a barreira da língua, torna-se tão parecida com todas as grandes cidades do mundo e do Brasil. Do que vi no Metrô e no bairro, pensei comigo: como o mundo moderno está ficando cada vez mais igual, menor, interligado. Apesar do conservadorismo, de toda xenofobia, do fundamentalismo de direita, do racismo que vemos no continente e no mundo, com a globalização o caldeirão humano se mistura cada vez mais. E isso é bom. Fico pensando em como tudo tem mudado tão rapidamente desde que acordei para a vida consciente.

Mas vamos voltar aos celulares e às redes sociais. Mesmo na Europa, um ser humano do ano 1750, pela forma como se comunicava e se locomovia, em veículos puxados por animais e barcos a vela, estava tecnologicamente muito mais próximo de um habitante do Império Romano do que do seu neto em 1850, tamanha foi a transformação iniciada pela Revolução Industrial, que ligou um botão, iniciou um frenético e pela primeira vez ininterrupto processo de transformação tecnológica que mudou a face do mundo em tão pouco tempo. Quando Abraham Lincoln morreu nos EUA, em 1865, passaram-se 13 dias para a notícia chegar à Europa e possivelmente muito mais até o Brasil, pois as informações viajavam na velocidade dos veleiros que cruzavam os mares, não havia ainda cabos submarinos. Os navios a vapor estavam apenas engatinhando.

Hoje, com centenas de cabos de comunicação estendidos nos leitos dos oceanos e 5000 satélites girando aí em cima, se acontecer agora um terremoto no Japão ou na Bolsa de Londres, em 13 minutos todo o mundo estará sabendo. Depois que o primeiro avião atingiu uma das Torres Gêmeas em Nova Iorque, ainda em 2001, boa parte dos seres humanos, informados do atentado em questão de minutos, correu para frente das TVs em suas casas, escritórios ou lojas e viu o segundo avião bater na outra torre ou visualizou em tempo real o desabamento daqueles prédios. Por vezes, não nos damos conta de como tudo muda cada vez mais rápido.

O fato é que mundo é cada vez mais um só, integrado, uma Aldeia Global, termo criado pelo filósofo canadense Herbert McLuhan na década de 1960, que tinha como objetivo sugerir que as novas tecnologias eletrônicas e o progresso tecnológico tendiam a encurtar distâncias e reduzir todo o planeta a uma mesma comunidade, um único mundo, onde todos estariam, de certa forma, interligados com todos. O cientista social espanhol Manuel Castells, ao final da década dos anos 90, já no início da Internet para todos, também disse que temos hoje uma Sociedade em Rede. Quais têm sido e serão no médio prazo as consequências estruturais na sociedade humana e nas mentes de toda essa vertiginosa mudança?

O escritor inglês Aldous Huxley, impressionado com o que via ainda na década de 1960, chamou tudo isso de um Admirável Mundo Novo, no título de seu famoso livro, que li há quase 40 anos, ainda garoto, encantado. Vendo esse turbilhão de mudanças tecnológicas, que acelera também os processos físicos, socais, históricos, que dá ao ser humano um imenso poder e ao mesmo tempo encurta o tempo de tudo, que nos exige cada vez mais, nos enche de informações até o cérebro não suportar, que a tudo liquefaz, desfaz, como disse o pensador Zigmunt Bauman, fico imaginando, sonhando, aonde iremos como espécie neste novo milênio, se não nos destruirmos antes? Aonde acabará tudo isso? Até onde irá a humanidade? Pena que nossa vida seja tão curta e não possamos acompanhar a saga humana pelos próximos séculos.

A comunicação em tempo real por aparelhos eletrônicos através da Internet e das redes sociais virou uma febre, uma tentação difícil de resistir, incorporada ao modo de vida e trabalho diário, e que está alterando o próprio ethos humano, afastando, mas ao mesmo tempo, contraditoriamente, aproximando as pessoas. Também acelera todos os processos produtivos e sociais. As empresas de todo porte as usam em todos os seus processos intrafirmas. Aparentemente, conversamos cada vez menos com quem está próximo, mas ao mesmo tempo nos ligamos cada vez mais com mais pessoas, com quem está longe ou em fontes de informação que selecionamos, através das redes sociais e aplicativos.

Há apenas 30 anos, os únicos que portavam um equipamento de comunicação portátil eram alguns soldados ou técnicos de empresas, com um aparelho pesando alguns quilogramas e uma antena imensa. Lembremos que o rádio em massa e a TV chegaram mundo e ao Brasil há apenas 60 ou 70 anos. Os primeiros computadores pessoais para o cidadão comum, que hoje parecem coisas de museu, e a Internet para grande massa das pessoas, só existem de meros 25 anos para cá. Quando surgiram, há apenas 20 anos, os celulares mais antigos só faziam ligações para outros aparelhos, pesavam quase 1 Kg, não tinham acesso à Internet, além de serem caríssimos para a maioria.

Os celulares e smartphones têm apenas 10 anos – já estamos tão acostumados com eles que às vezes esquecemos disso -, mas hoje já existem 6 bilhões deles, uma vertigem, até mesmo na mais isolada aldeia africana, na Sibéria ou na selva amazônica. Quase todas as empresas e grande parte das residências já têm um aparelho de Internet sem fio. Tais aparelhos e os computadores vêm mudando consideravelmente o modo de vida humano. Com eles, a mais simples das pessoas pode hoje acessar um site ou conversar instantaneamente com a família ou amigos do outro lado da cidade, do país ou do mundo a qualquer hora, fazer compras em lojas, operar sua conta bancária, monitorar sua casa ou seu filho na escola, receber imagens ou ver filmes, fazer reuniões eletrônicas com pessoas que estão há milhares de quilômetros etc. Um poder considerável se bem usado. E tudo em tão pouco tempo. Que diferença do tempo em que se esperava até meses por uma carta para saber notícias, há apenas meio século, quando o tempo demorava a passar. Hoje é o cérebro que mal consegue acompanhar o ritmo frenético das coisas. Quais estão sendo e serão as implicações mais profundas dessa mudança para a sociedade humana nas próximas décadas?

Bauman e especialmente o pensador italiano Humberto Eco, por exemplo, morreram pessimistas com o que viam, enxergavam em tudo isso, a meu ver, um problema, pois que tais inovações estariam também, segundo eles, liquefazendo os valores positivos que dão coesão à sociedade, o caráter, fragmentando o pensamento mais reflexivo. Há também outros autores que veem um sentido negativo em tudo isso, dizendo que, com o advento da Internet e das redes, estaríamos começando a viver em realidades paralelas, em ambientes apenas virtuais, com o ser humano perdendo sua sensorialidade, seu contato com o mundo real. Outros chegam a afirmar que o caminho das redes sociais é o da imbecilização e massificação da população mundial, que passaria a viver em uma realidade distópica, em telas e mais telas, distante do real.

Tenho cá minhas dúvidas sobre todas essas visões, que considero exageradas. Não deixo de ver esses riscos, mas quero aqui mostrar também o lado progressivo de tudo isso. Confesso que sou um entusiasta da revolução tecnológica, da Internet e das redes sociais. Vejo-as como um processo muito contraditório sim, mas ao mesmo tempo como instrumentos extremamente transformadores, pois estão dando às pessoas comuns um fenomenal poder de comunicação, informação e interação absolutamente inimagináveis para elas há algum tempo. Um poder que um ser humano do ano 1900 ou mesmo 1950, por mais rico ou visionário que fosse, sequer podia sonhar. Por isso os governos ditatoriais, como na China, sabedores desse potencial, monitoram, limitam e censuram as redes sociais, porque as veem também como um grande perigo. Mesmo nos EUA, não nos enganemos, se um dia precisarem, por se se sentirem ameaçados, desligarão o botão da Internet e das redes sociais ou bloquearão metade de seus usuários.

Avalio também que esse processo está de fato quebrando o monopólio da informação na mão dos grandes grupos de comunicação e dos governos. E isso é bom. As maiores fontes de informação continuam nas mãos de grandes empresas capitalistas de comunicação, sem dúvida, que são conservadores. Mas por outro lado, jornalistas e cidadãos comuns criam e mantém milhões de sites, páginas e blogs independentes, que vão democratizando a informação em tempo real, quebrando aqueles monopólios. É um processo incompleto, claro, porque muito recente, mas progressivo e em andamento. Não é à toa que muita coisa que vemos hoje nos grandes telejornais já vimos antes em sites e blogs de notícias e nas redes sociais e aqueles grandes meios já não podem esconder muita coisa. Os grandes telejornais, na maioria das vezes, veiculam notícias já atrasados em relação às redes.

Bilhões de pessoas seguem páginas, sites, ou estão em grupos de discussão, interagindo, se informando, recebendo mensagens e notícias dos amigos quase em tempo real, lendo mais, pensando mais, tomando contato com versões opostas, com o contraditório, sobre os distintos assuntos. Um turbilhão, que arrasta a todos para dentro, sobre todos os assuntos. E isso faz avançar o pensamento, penso. Um único fato importante é compartilhado milhões de vezes em todo país e mesmo no mundo em questão de poucas horas. Lembremos que o conservadorismo, o obscurantismo, sempre se apoiaram na escuridão, nas trevas, na ignorância das pessoas, na desinformação. E a informação cria luz, ilumina.

Hoje uma simples criança pode pesquisar e saber de qualquer assunto nos mecanismos de busca. Cegonhas já eram. Os computadores, celulares, sites e as redes sociais têm dado às pessoas a oportunidade de fugir do pensamento único, potencialmente saberem sobre tudo, se quiserem. Os retrocessos temporários no pensamento das massas que vemos nos países e nas redes não são culpa dessas tecnologias em si, mas decorrentes de outros fatores, como nosso passado de incultura e ignorância, que não conseguimos superar, da publicidade massificante das grandes empresas, cujos únicos valores são o consumo e a aparência, e da confusão política criada pelas atitudes erradas das lideranças e grupos políticos.

Humberto Eco, a quem muito admiro e nos deixou a poucos anos, chegou a dizer que as redes sociais deram voz a uma multidão de imbecis, sugerindo, pelo que se pode entender, que são um problema. Prefiro ver de outra forma. É obvio que há muita coisa de ruim nas redes, ideias equivocadas, ódio, fundamentalismo conservador, mentiras, maldade, insultos de toda ordem, banalidade. Mas as ideias conservadoras e maléficas não são criadas pelas redes sociais nem como decorrência delas. Máquinas não criam ideias. Isso tudo que vemos surgir de errado nas redes sociais hoje, o conservadorismo, o ódio, o obscurantismo, a xenofobia, o racismo, as fake news, a futilidade, já existiam, estavam ai; as redes apenas destaparam o lado mais obscuro da mente humana, ampliando sua difusão. Mas por outro lado, a tecnologia e as redes também nos dão a oportunidade de enfrentar essas ideias equivocadas, fazer o contraponto, e chegar a milhões instantaneamente, o que antes era impossível. A questão é que os setores de direita também têm sabido usar muito bem esses mecanismos, às vezes bem melhor que as esquerdas ou os movimentos progressistas.

Além disso, a proliferação de ideias conservadoras, o retorno de governos de direita em vários países, não são explicados pelo advento da Internet e das redes sociais, mas em grande medida pela decepção dos povos com governos de esquerda ou com aqueles que se esperava fossem de fato progressistas, que frustraram suas expectativas, levando as pessoas a os castigarem, elegendo seus adversários conservadores mais duros. Contra a esquerda pesa também até hoje, em todo mundo, o véu pesado do colapso das experiências socialistas no Leste Europeu, o que dá um argumento poderosíssimo ao conservadorismo, assunto que a esquerda ainda não enfrentou ou se nega a passar a limpo.

O que explica o rebaixamento da cultura hoje, o conteúdo banal das músicas que exercem fascínio sobre milhões, a superficialidade, a imensa confusão, a corrosão do caráter, o desinteresse de grande parte da juventude pela política, que vemos também nas redes, não é seu advento em si, mas a deficiência de nossa educação, a moral consumista e imediatista do capitalismo já em decadência, a desilusão com a política e também o imenso desgaste da ideia de uma sociedade alternativa ao capitalismo, para lembrar nosso velho Raul Seixas, com a consequente erosão dos valores sobre os quais ela se assenta, criado em parte pelas frustrações com as experiências que se propunham superiores.

O que levou Trump ao governo nos EUA foi de certa forma a decepção e o voto de muitos setores da população norte-americana, inclusive de trabalhadores negros e da juventude, pobres, com Obama. Toda expectativa com seu governo foi em grande medida frustrada. O que dá força ao conservadorismo no Brasil de hoje não são as redes sociais, mas a frustração de grande parte da população com os governos de esquerda recentes. Enquanto as esquerdas e movimentos progressistas não passarem tudo isso a limpo e não souberem reconhecer de forma autocrítica perante as populações onde erraram, ficará mais difícil virar o jogo.  Não basta a esquerda criticar o erro dos eleitores de direita se não sabe reconhecer os seus próprios. Novamente, portanto, devemos perceber que o problema não são a comunicação cada vez mais rápida e as redes sociais, mas o que se comunica nelas.

Evidentemente, não nego, que o vício das redes sociais são um grande risco à fragmentação do pensamento, para nos afastar de uma atitude mais reflexiva e profunda, da leitura paciente e compreensiva de um bom livro ou texto. Esse é um perigo maior, por exemplo, para as crianças, que não querem desgrudar dos jogos nos tablets. Quem tem filhos sabe do que falo. Mas o pensamento pouco reflexivo e tendente a esse vício também não é culpa das redes sociais e da tecnologia, mas de uma educação que não imponha regras.

Esse risco se resolve de outra forma, com disciplina, horários determinados para cada coisa em nossa vida, tempo certo para o trabalho, para o estudo e a leitura, para o lazer, atividade física, necessidade de informação etc., reduzindo a exposição ao vício das redes sociais. Muitas escolas obrigam os alunos a colocarem de lado os celulares na entrada da escola ou da sala de aula. Pais estabelecem horários para cada coisa às crianças. Como vemos, mais uma vez, o problema não são as redes, mas sim como nós planejamos e o que fazemos com nosso tempo. Talvez os ingleses já não leiam livros no Metrô de Londres porque podem ter concluído que é melhor ler em casa com calma do que no balanço dos trens, sendo mais eficaz aproveitar o tempo de viagem para se informar e comunicar, o que também é uma necessidade. Ou porque avaliem que podem aprender tantas coisas no que leem nas redes quanto nos livros.

A luta por uma sociedade melhor, baseada em outros valores como solidariedade social, igualdade, justiça, paz, segurança, com o que muitos de nós sonhamos, não será decidida pelas redes sociais, mas pelas ideias que propagamos nelas e especialmente pelas lutas sociais, se soubermos conquistar as mentes humanas para a melhor alternativa. As Internet e as redes sociais são, nesse sentido, apenas ferramentas poderosíssimas de informação, de acesso a muitas pessoas, de esclarecimento e empoderamento social, de integração, se soubermos usá-las a serviço das ideias e fins corretos. Hoje cada um de nós pode falar com 100, 200 ou milhares de vezes mais pessoas em um único dia do que falávamos há apenas 15 anos.

O problema é que tudo ainda é muito recente e não acontece no ritmo que queremos, apesar de as coisas mudarem cada vez mais rapidamente. Além disso, os donos dessas grandes redes sociais tentam limitar cada vez mais o alcance das publicações. Governos censuram as redes. Também há uma guerra de versões entre os opostos políticos. Mas com a revolução tecnológica, a Internet e as redes sociais, inexoravelmente o tempo histórico de tudo se acelera, ao contrário do que avaliam os mais pessimistas. As experiências com ideias e governos, por exemplo, serão feitas cada vez mais rapidamente. O desgaste do novo governo no Brasil, com apenas poucos meses, é um exemplo da aceleração dos processos em que as redes sociais contribuem e muito. A atual guerra nas redes politiza o país e não deixa quase ninguém de fora, envolve a quase todos. O desfecho de para onde irão os países e a humanidade, se para o bem ou para o mal, para uma sociedade melhor ou de volta para a barbárie – risco que não está afastado, não será decidido pela existência em si das redes sociais. O resultado de tudo isso está em aberto. Vai depender antes de tudo das ideias que nelas propagamos, de ousadia e das lutas sociais

Obviamente, esta profunda transformação tecnológica e do modo de vida ocorre dentro do sistema da capital, que de tudo se apropria para obter lucro. As empresas produtoras de smartphones e computadores não os produzem para o bem das pessoas e da sociedade, mas para seus ganhos. Microsoft, FACEBOOK e outras gigantes da informática são empresas capitalistas. Paralelamente a toda essa transformação tecnológica, com o capitalismo em seu regresso ao liberalismo mais radical, há também um processo de rápida reconcentração de renda e riqueza no mundo, com uma volta do crescimento da pobreza, inclusive nos países centrais. Mesmo as classes médias dos EUA e da Europa estão descendo a ladeira rapidamente em sua renda real e seu nível de vida. Eu nunca esperava encontrar tantos mendigos como vi aqui em Londres.

Não é este sistema que estou defendendo; pelo contrário somos muito críticos e lutamos contra isso. Do que falo aqui é que por dentro de todo esse sistema social avassalador, desse turbilhão estonteante, há também elementos extremamente contraditórios e progressivos que podem ser aproveitados. Em minha modesta opinião, a Revolução Tecnológica e das comunicações, com a informação sobre quase tudo em tempo real, os mecanismos de busca, as redes sociais, é um deles. Ela está ajudando a dissolver o velho mundo e seus pilares. O que vemos de ruim hoje são antes de tudo reações conservadoras a esse movimento, como foi a Inquisição em seu momento. Mas o mundo seguiu em frente. Para que lado iremos, dependerá de nós.

Os seres humanos que sofreram ou perderam a vida na Idade das Trevas, na Inquisição, nos campos nazistas ou em ditaduras sanguinárias viveram em momentos muito mais difíceis e piores que o tempo histórico que nos corresponde viver. Mesmo assim, a humanidade terminou por superar aqueles tempos obscuros e de sofrimento, achando uma saída. Com todas as contradições e confusão que ainda vemos hoje, devemos acreditar que a inteligência, a capacidade de reflexão e a bondade humanas poderão superar nosso lado bárbaro, o ódio e a irracionalidade, abandonando as ideias e sistemas sociais que geram desigualdade e sofrimento, achar um caminho certo. Já fizemos isso outras vezes. O caldeirão humano está cozinhando. Mesmo sabendo de todas as suas limitações e contradições, especificamente no que toca à Revolução Tecnológica, a Internet e às redes sociais, demos boas-vindas à nossa Aldeia Global, à Sociedade em Rede, a esse Admirável Mundo Novo.

Londres, 27/04/2019

 

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A riqueza dos museus londrinos e o iluminismo como a maior herança positiva da Europa para a humanidade

Por Robério Paulino

Desde Londres, nos intervalos do meu trabalho especificamente acadêmico, a partir das minhas observações da realidade dessa impressionante cidade, resolvi escrever, como crônicas, algumas reflexões acerca da epopeia humana, dos graves problemas e dos desafios que tem a civilização neste início de novo milênio. Diferentemente dos textos que entregarei à minha universidade de origem, estes aqui não terão formato rigoroso, pelo que me darei a liberdade de usar livremente a primeira pessoa, uma linguagem mais coloquial. Tenho a mania de, não sei se por defeito ou virtude, observar discreta e atentamente tudo em volta, em detalhes, o comportamento das pessoas, os costumes, o modo de vida local e especialmente a riqueza ou pobreza material e cultural das sociedades.

Nessa cidade de tanta história, fundada no ano 43 da era cristã, que já atravessou inúmeras guerras,  pestes, bombardeios, que já foi a maior cidade do mundo no século 19, onde alguns que vêm para cá veem a imponência e a beleza arquitetônica dos seus prédios, eu vejo também a força do capital, poder, império, ideias, arrojo, ciência, história, busco explicações para a forma de ser do país e para seus problemas também. Quando vi o Tâmisa pela primeira vez, fiquei imaginando uma nau romana subindo o rio por aqui, há quase 2000 anos, no início da Era Cristã. Ao ver as marcas de explosões de bombas em muitos prédios, pelo bombardeio alemão na Segunda Guerra Mundial, com milhares de bombas V1 e V2 caindo sobre a Grã-Bretanha, imediatamente viajei no tempo e fiquei imaginando as pessoas correndo desesperadas para os subterrâneos do Metrô.

Nas poucas semanas desde que cheguei, além de cuidar das sempre difíceis questões de acomodação e sobrevivência em um país diferente, tudo muito caro, dos tropeços com meu inglês enferrujado, que estou tendo que colocar rapidamente em nível satisfatório para poder conversar com as pessoas,  de segunda a sexta me escondo num canto da biblioteca da universidade onde realizo meu estágio pós-doutoral, me dedicando à pesquisa para cumprir meus compromissos de produção acadêmica com minha universidade no Brasil.

Já nos fins de semana, logo cedo corro para os museus, só saindo de lá quando estão fechando os portões, no final da tarde, meio que empurrado pelos funcionários. Os dois últimos fins de semana, antes de ir ver o Big Ben, até porque ele está “vestido” por alguns anos para reformas, passei dentro do Museu de História Natural e do Museu Britânico, experiência a partir da qual escrevo esta primeira carta e recomendo a todos que um dia puderem vir para cá não deixarem de fazer.

Como professor há mais de 30 anos, sonho e gostaria profundamente que cada criança ou jovem das escolas públicas brasileiras pudesse ter a oportunidade de passar por esses tão educativos corredores, onde, em profundo silêncio, respira-se história, evolução, ciência. Se eu estivesse à frente de algum governo estadual ou municipal, daria como prêmio ao melhor aluno de cada escola uma viagem até aqui, como forma de estímulo. Isso não seria tão caro se for feito de forma coletiva, planejada, previamente negociada com empresas aéreas e conseguindo com os governos daqui os alojamentos, com parcerias, intercâmbios. Vi, feliz, como educador, várias turmas de alunos de diversas partes do mundo visitando esses museus, acompanhadas de seus professores.

A RIQUEZA DOS MUSEUS LONDRINOS E O ILUMINISMO 

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Quero começar esta série de cartas analisando o porquê de existirem nestes museus britânicos tão grandes e significativos acervos, discutindo como isso foi possível e por que não vemos a mesma coisa em outros países, mesmo quando formados por povos muito antigos, de onde  vem parte dessas coleções, como Egito, Iran, Iraque, Síria, Grécia, sem falar na pobreza e mesmo na falta de museus no Brasil.

Penso que em grande medida isso decorreu da onda iluminista que atravessou profundamente a Grã-Bretanha e alguns países da Europa Ocidental nos 3 primeiros séculos da Era Moderna. Sem esquecer os imensos sofrimentos causados a muitos povos pela expansão europeia, do que falarei adiante, como sugeri no título considero o Iluminismo como talvez a maior herança positiva da Europa para a humanidade, com profundo impacto em nossa forma de ver e pensar o mundo hoje. Sem que nos demos conta, o legado do Iluminismo está presente em cada aula de Biologia, Física, Química, História, Geografia, Economia, Ciências Sociais etc., que temos hoje nas escolas e universidades do Brasil e do mundo, mudando radicalmente toda forma de pensar o mundo nos últimos séculos.

No Museu de História Natural de Londres, encontra-se um acervo de centenas de milhares de peças, animais grandes e pequenos empalhados, artefatos do passado e de distintas civilizações, minerais, plantas, fósseis de ossos de animais pré-históricos como os dinossauros, mostrando uma parte da longa evolução geológica do nosso planeta e da riqueza das diferentes formas de vida nele. Uma panorâmica e emocionante viagem no tempo. Mas o que você vê nos corredores é apenas uma pequena parte do que está por trás dos mostruários, guardado em milhares de gavetas e prateleiras internas. Por isso, pesquisadores de todo o mundo vêm estudar nesses museus londrinos.

Já no Museu Britânico, encontra-se centralmente uma coleção de peças que revelam a história da evolução da civilização, desde a Mesopotâmia, passando pelo Egito antigo, as civilizações assírias, Grécia e Roma até os tempos mais atuais. Na parte da Mesopotâmia, com sua Babilônia, pode-se ver a história do começo das cidades, da civilização, dos alfabetos, da agricultura. Neste museu estão ferramentas rudimentares, esfinges grandes e pequenas, sarcófagos, múmias, esculturas, colunas, placas de pedras originais de 5.000 anos com inscrições, leis e decretos das distintas dinastias egípcias ou assírias, um acervo de fato impressionante.

Ali se tem noção de como os distintos e aparentemente mais poderosos impérios ascenderam e declinaram, rise and fall, mostrando como nada é eterno, nem as aparentemente mais sólidas formações sociais, regimes políticos ou as mais perversas ditaduras. Nesses corredores, os últimos 10.000 anos – desde que o sapiens deixou de ser um nômade e se fixou nas primeiras aldeias entre os Rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia, deixando de ser um nômade e começando a plantar e a criar animais – parecem um piscar de olhos.

Muitas das dinastias egípcias duraram séculos, mas caíram. O império romano teve um domínio impressionantemente vasto por muitos séculos, na Europa, África e no Oriente Médio, mas ruiu. A longa noite da Idade das Trevas, que tantos matou, passou. Estendendo o pensamento, falando do século XX, os regimes fascistas, como de Hitler e Mussolini, que aterrorizaram o mundo, ao final acabaram. O domínio europeu e norte-americano sobre o mundo moderno também está tendo seu fim, é só questão de tempo, assunto que será um tema de outra carta que escreverei. A atual ascensão de governos de direita no mundo, como no Brasil, que assusta a tantos, também cessará. Nada é eterno. Além do mais, o tempo histórico se acelera, tudo muda cada vez mais rápido, fica cada vez mais líquido, se dissolve, como disse Zygmunt Bauman. Às vezes para o mal, mas também para o bem. O desenlace do dilema sobre para que lado a humanidade vai enfim caminhar, dependerá da ação de cada um de nós e da velocidade com que ajamos na construção de um mundo melhor, enfrentando o obscurantismo.

Mas a questão que coloquei acima na carta é explicar por que alguns museus europeus e particularmente os britânicos podem ter acervos tão ricos, enquanto outros países não os têm. Ampliando a pergunta, podemos pensar também porque a Europa enriqueceu tanto e pôde ter um papel central na formação do mundo moderno. Cabe-me então explicar como o Iluminismo contribuiu para tudo isso.

O LEGADO NEGATIVO DA EUROPA

 

Antes analisar o imenso legado do Iluminismo, devo dizer que uma parte da explicação para a riqueza desses museus, que de forma alguma podemos desprezar, foram obviamente as possibilidades que tiveram os povos europeus ocidentais e particularmente o Império Britânico de carregarem para cá, nos últimos séculos, esses tesouros, saqueando pela força das armas e explorando num comércio desigual suas colônias, entre as quais se encontravam Egito, Síria, Palestina, Índia e muitos outros países ou partes da África, da Ásia e América. Entre 1882 e 1952, por exemplo, o Egito foi ocupado pela Inglaterra, que trouxe para cá boa parte desses ricos acervos. Hoje, existe um forte conflito jurídico sobre a propriedade de grande parte dessas peças que estão nos museus britânicos, com os países de sua origem reivindicando a volta delas. Lembremos que depois que foram expulsos da América, com a independência dos EUA, os britânicos logo se viraram para a Ásia, África e Oceania e construíram talvez o maior império mundial de todos os tempos.

O saque, a escravidão moderna, os milhões de mortos, a opressão sobre as populações das colônias, são o lado negativo dessa história, da dominação não só britânica, mas europeia, no mundo nos últimos 500 anos. Que o digam, se pudessem, os milhões de habitantes originais das colônias mortos, na América, África, Ásia e na Oceania, pelas armas ou especialmente pelas doenças levadas pelos europeus, como bem nos mostrou Jared Diamond, no seu fenomenal Armas, germes e aço (2013), um livro absolutamente essencial para quem quer entender o mundo, cuja leitura recomendo vivamente a todos. Que o digam, se pudessem falar, os milhões de negros escravizados ou jogados ao mar vivos dos navios, sem qualquer clemência, quando ficavam doentes na travessia do Atlântico, arrancados de suas terras que nunca mais veriam. Que o digam os povos do Oriente Médio e da África, por séculos oprimidos e espoliados pelos impérios europeus. Esse é parte da explicação da riqueza desses museus e de alguns países da Europa.

A HERANÇA POSITIVA DA EUROPA 

 

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Mas no caso dos amplos acervos dos museus de Londres, avalio que não é só isso. Outros fatores, positivos, também influenciaram para a riqueza de suas coleções e de alguns países europeus. Um deles, como já falei, foi a influência do Iluminismo no pensamento de grande parte da Europa Ocidental, especialmente sobre o britânico. Deixem-me explicar. Talvez em nenhum outro país do mundo tenha havido como aqui na Grã-Bretanha, nos séculos XVII, XVIII e XIX, uma mania por observar, classificar, catalogar, arquivar, tentar entender, tudo aquilo que chegava aos olhos e mãos dos exploradores e pensadores. E isso deriva em grande medida da influência iluminista, que pregava o primado da razão, fugindo da explicação apenas religiosa.

Os séculos XVII e XVIII foram excitantes tempos de despertar da Ciência no continente. Muitas coisas que até ali eram mistérios começaram a ficar claras, a serem entendidas de forma racional; a compreensão correta das coisas e fenômenos passou a ser buscada nas suas causas e origens, como parte de um movimento, de uma evolução. A superstição, a tradição, os dogmas, a alquimia, as lendas, foram dando lugar ao pensamento racional, às novas teorias, à vontade de compreender, à observação atenta, à medição, à experimentação, ou seja, ao nascimento da Ciência.

Isaac Newton, o pai da Física Moderna, para chegar à Lei da Gravitação Universal, hoje ensinada em todas as escolas do mundo, no Japão ou no Brasil, e que mesmo uma nave espacial chinesa levará em conta para chegar a Marte no século XXI, tinha que estar livre de dogmas, com a mente aberta à investigação e compreensão racional dos fenômenos. Se pensasse que tudo depende de uma lei divina, que a maçã cai porque um deus quer, ou porque Adão a mordeu, nunca concluiria que ela cai pela força de gravidade da Terra. Jamais determinaria que essa força de atração entre dois corpos depende do produto direto de suas massas, da razão inversa do quadrado da distância entre eles, multiplicados por uma constante de gravitação universal, que ele chegou mesmo a determinar o valor, g = 9,81 m/s2. Chegar a isso hoje talvez seja fácil, mas chegar às suas 3 leis ainda nos anos 1600, em que ele viveu, é coisa para um gigante do pensamento, séculos à frente de seu tempo.

No terreno da Economia, Adam Smith é também um grande expoente do Iluminismo. Analisando os processos da Revolução Industrial nascente, o crescente comércio da Grã-Bretanha com o restante do mundo, as relações de trabalho nas indústrias, ele chegou a uma primeira formulação da Lei do Valor e ao entendimento do porquê de algumas nações serem mais ricas que outras. Ao ler A Riqueza das Nações, mergulhamos numa deliciosa viagem ao ambiente das sujas e fumacentas fábricas de Manchester, ou seja, na realidade em rápida transformação. Ao contrário do que se possa pensar, mesmo Marx, outro pensador de mente extremamente aberta, mesmo sendo um crítico do liberalismo de Smith, se considerava um discípulo dele, integrando a Economia Política deste último nas suas teorias.

Em vários países, homens práticos, como os engenhosos James Watt, Ampère ou Volta, construíram a ponte entre essa nova Ciência e o mundo da indústria, cada vez mais acelerado. A máquina a vapor aperfeiçoada de Watt ajudou a Grã-Bretanha a saltar na frente de todas as nações na Revolução Industrial, ajudando a construir sua riqueza e poder. Cada vez que dizemos que um equipamento ou uma máquina em nossa casa tem tantos Watts de potência ou que a voltagem da tomada elétrica é de tantos Volts, estamos nos referindo ao legado desses pioneiros, estamos sem saber nos referindo aos reflexos do Iluminismo para a Ciência, a técnica e a vida cotidiana. O Sistema Internacional de Medidas, que o mundo todo usa atualmente, foi criado na Europa como fruto dessa explosão da Ciência no continente.

Um pouco mais tarde, o pensamento e as teorias de Darwin, como expressos em A Origem das Espécies, que revolucionaram as Ciências Naturais, serão também reflexos das ideias iluministas de sua época. Darwin disse uma vez: “Freedom of thougth is best promoted by the gradual illuminations of men’s minds, which follows the advance of Science” (frase escrita em pedra na base de sua estátua, na entrada do Museu de História Natural). Aqui está cristalino o modo de pensar iluminista. Esse pensamento aberto ao novo, à investigação, à compreensão da origem, da evolução e do chegar a ser das coisas, ou seja, o pensamento científico, é bem diferente, ou para dizer melhor, é o oposto do pensamento dogmático, para quem tudo veio de criação divina.

Mesmo após quase dois séculos de Darwin e de a Ciência Moderna ter comprovado que somos primos e uma evolução dos primatas e que os nossos ancestrais sapiens de todos os povos atuais saíram da África há uns 200 mil anos, até hoje ainda há bilhões de pessoas que não acreditam nessa explicação. Caso se dessem ao trabalho de olhar a mão de um chipanzé, nosso primo mais próximo nos dias atuais no reino animal, veriam que ela tem 5 dedos igual à nossa. Você pode ver aí na Internet. Sabe-se hoje que 99% de nosso DNA é igual ao dele. Darwin promoveu uma revolução nas Ciências Naturais, mostrando que todas as espécies, animais e vegetais são resultado da evolução da vida no planeta, inclusive nós humanos. Por isso, já na entrada do Museu de História Natural encontra-se uma grande estátua dele, nos recebendo.

Por outro lado, em minha modesta opinião, a resistência da velha forma dogmática de pensar atrasou em muito o avanço do pensamento científico em muitos países, como na Península Ibérica, campo maior da Inquisição. O Iluminismo chegou de forma muito tardia em Portugal, Espanha e em outros países muito fechados e de religiosidade muito arraigada, o que ajuda a explicar o atraso na industrialização e na educação em muitos lugares, como no Brasil, já que a cultura em nosso país refletia muito o ambiente ibérico.

Sem querer desmerecer qualquer país ou povo, pois somos todos parte de uma única raça, a raça humana, todos igualmente inteligentes, afirmo que, em sua época, muito pouco provavelmente um Charles Darwin – que tinha apenas 22 anos quando embarcou no Beagle para uma viagem ao redor do mundo, observando atentamente  e com mente aberta e ávida tudo que via, coletando, catalogando animais, plantas e rochas, para tentar entender a origem e a evolução das espécies – surgiria em outro país que não fosse a Grã-Bretanha ou no ocidente da Europa. Dificilmente surgiria um Isaac Newton em países dominados pela Inquisição cristã ou em países onde a forma hermética ou supersticiosa de pensar predominava, onde toda verdade já está pronta em um livro sagrado e o pensamento científico era repelido, as vezes com a fogueira, o apedrejamento e a morte.

Isso de forma alguma nega a importância da contribuição que muitas outras civilizações e povos tiveram para o avanço do conhecimento ou mesmo casos isolados de pensadores de destaque em países de desenvolvimento científico mais atrasados, como o caso de um Copérnico no leste da Europa ou um Santos Dumont. A agricultura, o arado, as cidades, a roda, o alfabeto e os números usados hoje na Europa, a religião cristã predominante no continente, a astronomia, a matemática, o calendário, a engrenagem, a metalurgia, a pólvora, o foguete, a navegação a vela,  a grande arquitetura, a medicina primitiva, o vidro, o papel, o livro, a Filosofia, o Direito, surgiram noutros lugares, como no Oriente Médio, na China, na Índia, no norte de África, na Grécia etc. Não são invenções dos europeus ocidentais. Eles foram beneficiários de tudo isso. Mas o Iluminismo e a Revolução Industrial vão colocar esse continente no centro do desenvolvimento da Ciência e da técnica nos primeiros séculos da Idade Moderna.

O PAPEL CONTRADITÓRIO DAS RELIGIÕES

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Tampouco desprezo aqui a contribuição positiva das religiões, como o judaísmo, o cristianismo, o islamismo, o budismo e outras crenças para o avanço da civilização. Em seu momento, o cristianismo, por exemplo, significou uma profunda revolução no pensamento humano contra a escravidão, a injustiça, a desigualdade, contra a pobreza de muitos alimentando a riqueza de poucos, e por afirmar valores como bondade, justiça, igualdade, honestidade, verdade, lealdade, respeito, humildade, misericórdia. A civilização não seria possível sem leis e valores, – ainda que no futuro venham a ser apenas consentidos, não impostos – sem a maior parte das regras de convivência que estão nos dez mandamentos cristãos, na Bíblia, no Torá, no Alcorão ou nos livros budistas, de importância vital para a coesão social. Muitos dos iluministas continuaram religiosos, apesar de não dogmáticos. Outros pensadores, como Spinoza, no entanto, pagaram caro e tiveram sua importante contribuição relegada, por verem uma maior oposição entre Ciência e religião.

O problema começa, e ai sim algumas religiões passam a ter um papel extremamente negativo, quando essas crenças são vistas como ideias imutáveis que tentam impedir o avanço do pensamento, da ciência, contra a mudança dos costumes, quando cegam e enchem os corações de ódio, passando a ser usadas para perseguição ou guerras contra outras crenças, contra os dissidentes, contra os diferentes. Ou, como vimos em todos esses séculos, para praticar, em nome de seus deuses, a maldade, a crueldade, a violência, os mais perversos crimes e massacres, os pogroms, negando os princípios humanísticos que as religiões pregam.

Bastaria pensar nas centenas de milhares de mortos pela Inquisição, a quase totalidade inocentes, culpados apenas por serem diferentes, para entender do que estamos falando. A Inquisição não queimou apenas livros, incinerou ou esquartejou centenas de milhares que pensavam diferente. Matou milhares de mulheres simplesmente por serem ruivas ou as que tinham opinião própria e não aceitavam a submissão aos homens, vistas como bruxas. Matou Giordano Bruno e por muito pouco não fez o mesmo com um gigante como Galileu. Hitler, com todo seu ódio, assassinou 6 milhões de judeus, entre os quais 1 milhão de crianças igualmente inocentes; tudo em nome do deus cristão. Matou cruelmente 26 milhões de soviéticos, em nome de sua ideologia de ultradireita.

COMO O ILUMINISMO EXPLICA A RIQUEZA DOS MUSEUS BRITÂNICOS   

 

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Voltando ao Iluminismo, quando afirmo que um Isaac Newton, um Charles Darwin, um James Watt, um Adam Smith, um Locke, um Voltaire, um Rousseau, um Hegel, um Feuerbach, um Galileu um pouco antes, talvez só pudessem ter surgido na Grã-Bretanha ou no ocidente da Europa em sua época, não estou falando de superioridade de nenhum povo. Isso não existe. Estou me referindo apenas e  exatamente a um contexto histórico determinado, ao pensamento médio das sociedades em uma dada época, a um novo florescer do pensamento racional na Idade Moderna, ao Iluminismo, que surge de certa forma negando a Idade das Trevas, o Absolutismo, a Inquisição, para possibilitar que todo o conhecimento anterior acumulado fosse consolidado como Ciência e sua forma de aquisição transformada no que chamamos hoje de método científico. O Iluminismo produziu esses gigantes do pensamento humano em seu momento.

O Iluminismo é muitas vezes associado mais aos pensadores franceses das Ciências Sociais, da Filosofia, como Voltaire, Rousseau, Montesquieu, Diderot, principalmente no século XVIII. Mas isso é um engano. Foi uma nova forma de pensar que penetrou todos os campos do conhecimento, da Física à Medicina, passando pela Arqueologia. Além disso, os pensadores ingleses, como Newton, Smith, Watt, Locke, Darwin, foram muitos deles precursores deste movimento. Voltaire o reconhece e coloca Locke acima de Platão. Nas suas Cartas inglesas, ele diz o seguinte: “Talvez nunca tenha existido um espírito mais sábio, mais metódico, um lógico mais exato do que o Sr. Locke” (2001). D’Alembert, que organizou a Enciclopédia na França, também faz seu tributo a Locke e diz que ele é o criador da filosofia científica, assim como Newton o foi da Física científica. O Iluminismo foi, portanto, um movimento tão presente na Grã-Bretanha quanto na França e em outros países.

Mas para ir encerrando nossa reflexão, respondendo à pergunta feita inicialmente, o que o Iluminismo tem a ver com o rico grande acervo dos museus britânicos, que formulei no começo da discussão? Tudo. Isso porque para estudar e entender as coisas, os fenômenos, a vida, a história, fazer ciência, era preciso observar, coletar, arquivar, catalogar, fosse em coleções pessoais ou em museus. E isso foi feito aqui mais que em outros lugares. Diferentemente das expedições de outras nações, quase sempre realizadas exclusivamente por motivos comerciais ou militares, as naus inglesas sempre levavam, além de um comandante, um explorador junto. Assim viajou Darwin. Um outro exemplo de explorador muito famoso por aqui é Robert Scott, que circundou o globo inteiro várias vezes e morreu na Antártida voltando de uma expedição para ser o primeiro humano a chegar ao Polo Sul, em 1911, numa corrida que perdeu para o explorador norueguês Roald Amundsen.

Bem, espero ter explicado minha tese da relação do Iluminismo com a riqueza dos museus de Londres, que sugeri no título dessa carta. Tomem esta minha admiração por estes acervos e esta simples carta também como um apelo por mais museus nas cidades brasileiras. Um país que não preserva sua história não pode ter um grande futuro. Lamento imensamente pelo incêndio de um dos nossos poucos museus, o Museu Nacional, deixado ao abandono por governos obscurantistas, a quem não interessa o esclarecimento de nossa gente. Precisamos despertar o interesse de nossas crianças e jovens pela história, pelo conhecimento, pela Ciência. Nos sábados e domingos pela manhã, vi aqui em Londres, na Estação do Metrô de South Kensington, que dá acesso a ao Museu de História Natural e ao Museu da Ciência, uma multidão de gente chegando animada, centenas de famílias inteiras, país trazendo os filhos, de tudo quanto é lugar, pela aparência humildes, com crianças logo encantadas em cada corredor. Que inveja senti.  Precisamos criar essa cultura no Brasil. Sou otimista.

Meus próximos alvos já estão definidos: o Museu da Ciência e o Museu da Guerra. Nas semanas seguintes, nos meus fins de semana, pretendo escrever novas cartas, relacionando o que estou vendo nesta impressionante cidade com os problemas humanos atuais. Já na próxima carta, que está no forno, pelas minhas observações nos bairros fora do centro de Londres, tentarei mostrar como o liberalismo vem levando a Grã-Bretanha, pioneira na Revolução Industrial, e o Ocidente, à desindustrialização e à decadência, com todas as consequências sociais e políticas disso. A Grã-Bretanha é desde algum tempo um cemitério de fábricas, como vem ocorrendo também nos EUA. Assim, vou dividindo essa rica experiência com vocês, fazendo o caminho inverso dos exploradores ingleses, na terra deles.

Londres, 14/04/2019

Diamond, Jared. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades. Rio de Janeiro: Record, 2013. 

Voltaire. Cartas Filosóficas. São Paulo: Ed. Landy, 2001.

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Carta

Ainda há tempo para deter a marcha da insensatez

Fernando Henrique Cardoso*

 

Carta aos eleitores e eleitoras,

Fernando Henrique Cardoso

 

Em poucas semanas escolheremos os candidatos que passarão ao segundo turno. Em minha já longa vida recordo-me de poucos momentos tão decisivos para o futuro do Brasil em que as soluções dos grandes desafios dependeram do povo. Que hoje dependam, é mérito do próprio povo e de dirigentes políticos que lutaram contra o autoritarismo nas ruas e no Congresso e criaram as condições para a promulgação, há trinta anos, da Constituição que nos rege.

Em plena vigência do estado de direito nosso primeiro compromisso há de ser com a continuidade da democracia. Ganhe quem ganhar, o povo terá decidido soberanamente o vencedor e ponto final.

A democracia para mim é um valor pétreo. Mas ela não opera no vazio. Em poucas ocasiões vi condições políticas e sociais tão desafiadoras quanto as atuais. Fui ministro de um governo fruto de outro impeachment, processo sempre traumático. Na época, a inflação beirava 1000 por cento ao ano. O presidente Itamar Franco percebeu que a coesão política era essencial para enfrentar os problemas. Formou um ministério com políticos de vários partidos, incluída a oposição ao seu governo, tal era sua angústia com o possível despedaçamento do país. Com meu apoio e de muitas outras pessoas, lançou-se a estabilizar a economia. Criara as bases políticas para tanto.

Agora, a fragmentação social e política é maior ainda. Tanto porque as economias contemporâneas criam novas ocupações, mas destroem muitas outras, gerando angústia e medo do futuro, como porque as conexões entre as pessoas se multiplicaram. Ao lado das mídias tradicionais, as “mídias sociais” permitem a cada pessoa participar diretamente da rede de informações (verdadeiras e falsas) que formam a opinião pública. Sem mídia livre não há democracia.

Mudanças bruscas de escolhas eleitorais são possíveis, para o bem ou para o mal, a depender da ação de cada um de nós.

Nas escolhas que faremos o pano de fundo é sombrio. Desatinos de política econômica, herdados pelo atual governo, levaram a uma situação na qual há cerca de treze milhões de desempregados e um déficit público acumulado, sem contar os juros, de quase R$ 400 bilhões só nos últimos quatro anos, aos quais se somarão mais de R$ 100 bilhões em 2018. Essa sequência de déficits primários levou a dívida pública do governo federal a quase R$ 4 trilhões e a dívida pública total a mais de R$ 5 trilhões, cerca de 80% do PIB este ano, a despeito da redução da taxa de juros básica nos últimos dois anos. A situação fiscal da União é precária e a de vários Estados, dramática.

Como o novo governo terá gastos obrigatórios (principalmente salários do funcionalismo e benefícios da previdência) que já consomem cerca de 80% das receitas da União, além de uma conta de juros estimada em R$ 380 bilhões em 2019, o quadro fiscal da União tende a se agravar. O agravamento colocará em perigo o controle da inflação e forçará a elevação da taxa de juros. Sem a reversão desse círculo vicioso o país, mais cedo que tarde, mergulhará em uma crise econômica ainda mais profunda.

Diante de tão dramática situação, os candidatos à Presidência deveriam se recordar do que prometeu Churchill aos ingleses na guerra: sangue, suor e lágrimas. Poucos têm coragem e condição política para isso. No geral, acenam com promessas que não se realizarão com soluções simplistas, que não resolvem as questões desafiadoras. É necessária uma clara definição de rumo, a começar pelo compromisso com o ajuste inadiável das contas públicas.  São medidas que exigem explicação ao povo e tempo para que seus benefícios sejam sentidos. A primeira dessas medidas é uma lei da Previdência que elimine privilégios e assegure o equilíbrio do sistema em face do envelhecimento da população brasileira. A fixação de idades mínimas para a aposentadoria é inadiável. Ou os homens públicos em geral e os candidatos em particular dizem a verdade e mostram a insensatez das promessas enganadoras ou, ganhe quem ganhar, o pião continuará a girar sem sair do lugar, sobre um terreno que está afundando.

Ante a dramaticidade do quadro atual, ou se busca a coesão política, com coragem para falar o que já se sabe e a sensatez para juntar os mais capazes para evitar que o barco naufrague, ou o remendo eleitoral da escolha de um salvador da Pátria ou de um demagogo, mesmo que bem intencionado, nos levará ao aprofundamento da crise econômica, social e política.

Os partidos têm responsabilidade nessa crise. Nos últimos anos, lançaram-se com voracidade crescente ao butim do Estado, enredando-se na corrupção, não apenas individual, mas institucional: nomeando agentes políticos para, em conivência com chefes de empresas, privadas e públicas, desviarem recursos para os cofres partidários e suas campanhas. É um fato a desmoralização do sistema político inteiro, mesmo que nem todos hajam participado da sanha devastadora de recursos públicos. A proliferação dos partidos (mais de 20 na Câmara Federal e muitos outros na fila para serem registrados) acelerou o “dá-cá, toma-lá” e levou de roldão o sistema eleitoral-partidário que montamos na Constituição de 1988. Ou se restabelece a confiança nos partidos e na política ou nada de duradouro será feito.

É neste quadro preocupante que se vê a radicalização dos sentimentos políticos. A gravidade de uma facada com intenções assassinas haver ferido o candidato que está à frente nas pesquisas eleitorais deveria servir como um grito de alerta: basta de pregar o ódio, tantas vezes estimulado pela própria vítima do atentado. O fato de ser este o candidato à frente das pesquisas e ter ele como principal opositor quem representa um líder preso por acusações de corrupção mostra o ponto a que chegamos.

Ainda há tempo para deter a marcha da insensatez. Como nas Diretas-já, não é o partidarismo, nem muito menos o personalismo, que devolverá rumo ao desenvolvimento social e econômico. É preciso revalorizar a virtude da tolerância à política, requisito para que a democracia funcione. Qualquer dos polos da radicalização atual que seja vencedor terá enormes dificuldades para obter a coesão nacional suficiente e necessária para adoção das medidas que levem à superação da crise. As promessas que têm sido feitas são irrealizáveis. As demandas do povo se transformarão em insatisfação ainda maior, num quadro de violência crescente e expansão do crime organizado.

Sem que haja escolha de uma liderança serena que saiba ouvir, que seja honesto, que tenha experiência e capacidade política para pacificar e governar o país; sem que a sociedade civil volte a atuar como tal e não como massa de manobra de partidos; sem que os candidatos que não apostam em soluções extremas se reúnam e decidam apoiar quem melhores condições de êxito eleitoral tiver, a crise tenderá certamente a se agravar. Os maiores interessados nesse encontro e nessa convergência devem ser os próprios candidatos que não se aliam às visões radicais que opõem “eles” contra ”nós”.

Não é de estagnação econômica, regressão política e social que o Brasil precisa. Somos todos responsáveis para evitar esse descaminho. É hora de juntar forças e escolher bem, antes que os acontecimentos nos levem para uma perigosa radicalização. Pensemos no país e não apenas nos partidos, neste ou naquele candidato. Caso contrário, será impossível mudar para melhor a vida do povo. É isto o que está em jogo: o povo e o país. A Nação é o que importa neste momento decisivo.

 

*É ex-presidente do Brasil