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O Brasil de Luzia

Por Marcelo Tognozzi*

Brasil debate superficialidades

Discutir bobagens não gera emprego

Não faz governos mais competentes

Brasileiros estão em situações vexatórias

Um beijo gay numa HQ vira o principal assunto nacional no dia da Independência. O debate estético sobre os atributos da primeira dama da França mobiliza deputados, senadores, movimentos sociais, ministros, feministas, diplomatas e ONGs.

A nomeação do procurador-geral da República, dever legal do presidente, virou risco capaz de minar o combate à corrupção, como se esta atividade fosse privativa de meia dúzia de ungidos e o sindicato dos procuradores estivesse acima do chefe da Nação em legitimidade de votos e representatividade.

Grande Brasil, moderno, desenvolvido, com uma agenda de dar inveja aos países da União Europeia. É muita energia desperdiçada. Gostar ou não do governo é secundário num país onde as ruas tiraram do poder 2 presidentes e a pressão da sociedade foi capaz de mudar muita coisa com as Diretas-já, anistia, constituinte ou as manifestações de 2013.

Luzia é uma cabocla guajajara, de Caxias, no Maranhão. Tem 43 anos e não sabe ler e escrever. Veio para Brasília há 1 ano e meio com 2 das 3 filhas em busca de trabalho e um pouco de dignidade. Conheceu a neta recém-nascida. Demorou 3 meses para conseguir um emprego, passa a semana fora de casa. Sua luta pela sobrevivência é a mesma de milhões de brasileiros. Em pouco tempo conseguiu dar um passo importante para mudar de vida. Não teve medo, encarou. Era a única alternativa.

Na realidade de Luzia não existe Brigite Macron, Amazônia em chamas e a corrupção roubou sua alfabetização, deu-lhe uma gravidez precoce e uma força para sobreviver que ela não sabe de onde vem. “Vou sempre pra frente, né? Fiquei 3 meses sem emprego aqui em Brasília, mas a primeira oportunidade que apareceu eu agarrei”.

No país de Luzia crianças continuam morrendo de diarreia, faltam vacinas, uma legião de mendigos e pedintes perambula pelas ruas sem destino nem acolhimento, estradas esburacadas encarecem o transporte de alimentos e bens e o desperdício de dinheiro público é um poço sem fundo.

Na agenda deste Brasil a prioridade são temas essenciais e urgentes como emprego, saúde, educação, assistência social e infraestrutura. Redes sociais e blábláblá mudam o humor, mas não mudam a realidade nem a vida das pessoas como Luzia. O que traz prosperidade é trabalho, foco, vontade de vencer. Este é seu cotidiano.

Há poucos dias uma advogada de 26 anos foi morta em Brasília. O ônibus demorou e ela embarcou num veículo de transporte pirata conduzido por um serial killer. Se houvesse transporte público eficiente na capital do país esta mulher estaria viva.

A imprensa cobriu o crime sem entrar na questão essencial: o transporte público é um direito de todo cidadão, porque, antes de tudo, significa a garantia do direito fundamental de ir e vir. Brasília tem um problema crônico nesta área. Uma cidade plana, que não conseguiu ter nem um VLT, segue aos trancos e barrancos construindo e ampliando rodovias e viadutos quando deveria investir em trens urbanos e metrô.

Nos países ricos e desenvolvidos há transporte público e a garantia do direito de ir e vir. Lá o povo pode se dar ao luxo de ter uma agenda, digamos, mais sofisticada, porque mulheres não morrem a caminho do trabalho assassinadas por maníacos disfarçados de motoristas e os analfabetos são raros.

Não tratamos do fundamental, a condição das pessoas, a transformação delas em cidadãos com direitos e capazes de fazer valer estes seus direitos. A trabalhadora ou o trabalhador de uma grande cidade do Brasil agradece a Deus e aos orixás todos os dias por voltar vivo e inteiro para casa. Um simples celular pode significar risco de vida. Num país desenvolvido os trabalhadores não têm esta preocupação, porque, ao contrário dos que aqui sobrevivem, lá eles vivem.

Temos 13 milhões de desempregados, gente apta para trabalhar, construir realizar e que deseja produzir. Quanto mais gente trabalhando, mais renda, mais economia girando, mais impostos. Estas pessoas estão ficando esquecidas, a elite intelectual e política está de costas para elas como se não existissem, porque não adianta um grande jornal mostrar uma fila de desempregados sem provocar os especialistas e os governantes – e por governante entenda-se todos que estão num governo, concursados ou não – e debater soluções. O desemprego é um problema de todos nós, não apenas dos desempregados.

A melhor coisa que pode acontecer a um país, antes de qualquer debate legítimo de costumes envolvendo liberdade sexual, de gênero ou até da liberdade de expressão, é todas as crianças conquistarem o direito de permanecer o dia todo numa escola decente, sejam vacinadas, alimentadas, aprendam sobre seus direitos e deveres, como funciona o país, as regras da eleição, onde sejam formados cidadãos conscientes capazes de entender o valor de um imposto. Uma questão de estado.

Enquanto não fizermos estas escolhas, continuaremos prisioneiros das superficialidades. Um beijo gay numa HQ não pode ter mais importância que uma epidemia de sarampo, o aumento exponencial da sífilis nas últimas décadas ou a volta da tuberculose e da poliomielite.

Discutir bobagens como a feiura da primeira-dama da França ou a importância da diversidade de gênero não dá emprego a ninguém, não tira crianças e velhos de situações vexatórias nem impede que mulheres jovens sejam mortas por falta de transporte público decente. Muito menos obriga governos a serem mais competentes.

Luzia é o exemplo dos brasileiros que não perderam a coragem e o ímpeto de crescer, vencer desafios, melhorar de vida, o mesmo espírito que moveu gente como JK, Pereira Passos, Rondon, Carlos Chagas, os irmãos Vilas Boas, Milton Santos ou Carlos Lacerda, e acreditam, como dizia Monteiro Lobato, que o Brasil cresce enquanto o governo dorme.

*É jornalista e consultor independente há 20 anos. É pós-graduado na Graduate School Of Political Management – The George Washington University e faz pós-graduação em Inteligência Econômica em Madrid.

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O bolsonarismo trava uma guerra perdida: as novas gerações não engolem a agenda moralista

Por Rosana Pinheiro Machado

The Intercept

 

EXISTEM DUAS MANEIRAS de narrar e interpretar a reação e os desdobramentos da conferência que ministrei em São Borja, município de grande importância para o imaginário gaúcho, onde estão enterrados Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, no início de julho. Elas são também duas maneiras de interpretar o Brasil de hoje.

A notícia da 44ª edição da minha palestra Da Esperança ao Ódio, na Unipampa, não foi bem-recebida no “Texas gaúcho”, como São Borja é chamada por seus habitantes. Homens, que têm orgulho de serem “xucros”, diriam que isso ocorreu porque, no pampa, têm mais machos valentes do que em outros lugares do mundo. Afinal, como comentavam algumas pessoas nas redes sociais: “aqui essa mocreia (sic) não se cria.”.

Dei a palestra como de costume. Os ataques seguiram um roteiro conhecido. Alguns bolsonaristas comparecerem ao evento, fotografaram slides fora de contexto da fala e desapareceram. No outro dia, estava na internet a mentira de que eu havia chamado Bolsonaro de vagabundo, mesmo que houvesse centenas de testemunhas para provar o contrário.

Acusaram-me de usar dinheiro público para difamar a imagem de Bolsonaro. Um colega especialista no monitoramento de redes sociais, que pediu anonimato, me contou que minha imagem foi uma das mais compartilhadas no WhatsApp naqueles dias no Brasil. Nos comentários de posts que viralizaram, chamavam-me de puta, baranga, corrupta, criminosa e teve até quem lamentasse que eu não estava na Boate Kiss, que pegou fogo em Santa Maria, onde moro, em 2013, matando cerca de 250 jovens e ferindo gravemente mais de 600.

Áudios no Whatsapp circulavam denunciando a professora “doutrinadora”, pedindo punição severa. Ao lado da foto de Glenn Greenwald, minha imagem foi estampada no tradicional jornal local, Folha de São Borja, dizendo que eu fazia política na universidade. Eles sentiam ódio por eu dizer que no Brasil havia ódio.

Os posts disparadores dos ataques vinham de homens tradicionalistas da faixa de 50 anos para cima. Todos eles tinham fotos de perfil e de capa no Facebook exibindo cavalos, chimarrão e a bandeira do Rio Grande do Sul. Seguindo a linha dada pelos homens, as mulheres da mesma faixa etária e com fotos de flores na capa do Facebook eram as mais agressivas nos comentários.

Não deve ser mera coincidência o fato que, nas manifestações pró-Moro em 30 de junho, chamava atenção a elevada faixa etária das pessoas que estavam nas ruas. Há um fator geracional que precisamos observar com mais atenção para compreender a radicalização do bolsonarismo. Quem, em última instância, ainda apoia um governo sem projeto e um juiz parcial?

A última pesquisa do DataFolha não deixa dúvida que, quanto mais velha é a pessoa, mais ela tende a apoiar irrestritamente a conduta inadequada da Lava Jato. A reprovação das conversas entre procuradores e o ex-juiz é de 62% entre pessoas de 35 a 44 anos, 50% entre pessoas de 45 a 59 anos e cai para 44% entre pessoas acima de 60 anos.

O Rio Grande do Sul pode ser entendido como um caso extremo e caricato do bolsonarismo. Bolsonaro empodera esse homem que se sente perdendo privilégios e nostálgico de um Rio Grande virtuoso. A metade sul do estado, por exemplo, que tanto povoa o imaginário fronteiriço, está economicamente empobrecida, mas se alimenta de histórias de um passado grandioso. O ex-capitão satisfaz esse gaúcho que idealiza o passado, cuja cultura popular exalta um homem armado e orgulhoso de ser tosco, grosso e simples. Bolsonaro é a projeção daquilo que é, ao mesmo tempo, melancolia e frustração.

Em “Como Funciona o Fascismo”, o filósofo Jason Stanley elenca o apreço ao passado mítico, glorioso e puro como a primeira característica do fascismo. Nesse passado, reina a família patriarcal e papéis de gênero tradicionais. (Não estou sugerindo que toda exaltação ao passado é fascista; apenas que a fantasia demasiadamente arraigada a um mundo que não se viveu, somada a um contexto de crise e profunda transformação, pode ser um terreno fértil para o fascismo). Segundo o autor:

“Na retórica nacionalista [ou regionalista], esse passado foi perdido pela humilhação provocada pelo globalismo. Esses mitos geralmente se baseiam em fantasias de uma realidade pregressa inexistente que sobrevive nas tradições das pequenas cidades e do campo (…). A função do passado mítico na política fascista é aproveitar a nostalgia e emoção para princípios centrais da ideologia fascista: autoritarismo, hierarquia, pureza e luta.”

Dada tal fusão de valores morais bolsonaristas com a mítica gaúcha, não estranha o fato de que, segundo a última pesquisa Ibope, ao mesmo tempo em que cresce a reprovação do governo Bolsonaro como um todo no Brasil (de 27% em abril para 32% em junho), cresce a sua aprovação na região sul (de 44% para 52%).

O ataque sofrido por mim é ilustrativo do autoritarismo patriarcal sobre o qual se agarra a geração mais velha de uma região economicamente decadente. Mas contra o que, exatamente, esse núcleo duro bolsonarista está lutando?

A 44ª VERSÃO da minha palestra na Unipampa foi inesquecível. Professores e estudantes do curso de Publicidade organizaram um evento impecável pelo profissionalismo. No cerimonial de abertura, um estudante tocou e cantou “Tempo Perdido” de Legião Urbana.

Com duas horas de antecedência, o auditório já estava lotado, fazendo com que muitos estudantes sentassem no chão ou ficassem de pé. Muita gente viajou até 200 km para estar lá.  As perguntas dirigidas a mim eram instigantes, dignas de jovens com aguçado espírito acadêmico. Ao final, passei 30 minutos recebendo abraços apertados e palavras de apoio. Os longos aplausos não eram para mim, mas para o significado e a força daquele evento. Havia ali uma verdade tangível: nós poderíamos ver, tocar e sentir estudantes qualificados e mobilizados pela universidade pública. No velho oeste, ocorreu um evento cheio de esperança.

A palestra não ocorreu em qualquer universidade, mas na Unipampa, que é um exemplo da expansão e renovação do ensino superior dos últimos anos. Foi criada em 2008, no governo Lula, para trazer desenvolvimento a uma região empobrecida. Na plateia, havia estudantes negros, LGBTs e muitas meninas feministas. Além disso, chamou-me atenção a presença de estudantes de outros estados, já que o Enem possibilitou uma maior mobilidade geográfica. São Borja, que é uma cidade muito bonita e cheia de história, é hoje também habitada por corpos diversos que renovam a região.

Como já disse por aqui, a gente não pode esquecer que a vitória da extrema direita é também uma reação a muitas conquistas que vieram para ficar.

Quem eram os bolsonaristas que me atacaram? Na palestra, eles eram dois ou três. Por que eles não exerceram seu direito de protestar no evento? Provavelmente porque faltou gente de apoio – e também porque faltou coragem. Na verdade, eu teria incontáveis casos para contar com o mesmo roteiro insosso: jovens de extrema direita agitam nas redes sociais e ameaçam protestar em uma palestra minha, mas raramente comparecem como o alardeado. Quando comparecem, chegam em número insignificante e se sentem intimidados pela maioria. Macho valente? Só nas redes sociais.

O ataque baixo que sofri cheira a desespero. Desespero da radicalização dos que sobraram, da nostalgia bolsonarista de uma geração que se sente perdendo uma cruzada moral. Isso, é claro, após a Vaza Jato e queda da popularidade de Sergio Moro. Os guerreiros estão a postos para defender seus heróis.

Essa é uma guerra perdida. Como disse Fabio Malini sobre as manifestações do dia 30 de junho: “o bolsonarismo é o teto do progressismo dos mais jovens. Com data de validade. É um passado lutando para se manter no futuro. Uma luta, sabemos, inútil”.

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Bolsonaro conheceu a verdade! Ela o libertará?

Por Josias de Souza

 

Quando confrontado com um problema, Jair Bolsonaro pode não ter a solução. Mas ele tem sempre à mão um versículo multiuso que extraiu do Evangelho de João: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” Às vésperas do aniversário de seis meses do seu governo, celebrado neste domingo (30), Bolsonaro conheceu a verdade. Descobriu que pode ser conservador sem ser arcaico. Essa verdade tem potencial libertador. Mas para se livrar dos grilhões do arcaísmo, o presidente teria de se manter fiel à racionalidade que levou ao fechamento do histórico acordo entre Mercosul e União Europeia.

O bom senso ensina que dois espetáculos não cabem ao mesmo tempo num só palco. Ou num único governo. Dividida entre um e outro, a plateia não dá atenção a nenhum dos dois. Ou, por outra, acaba privilegiando o mais exótico. Estão aí em cartaz, faz um semestre, duas apresentações. Uma é aquela que o general e ex-ministro Santos Cruz chamou de “Show de besteiras”. Outra é a coreografia encenada pelo pedaço da Esplanada que tenta provar que o governo não está sob o domínio da Lei de Murphy, segundo a qual quando algo pode dar errado, dará.

Desde que assumiu o trono, Bolsonaro tenta conciliar duas exigências conflitantes: ser Bolsonaro e exibir o bom senso que a Presidência requer. Ao desembarcar no Japão, para a reunião do G20, o capitão sentia-se cheio de tambores, metais e cornetas. Reagiu a uma cobrança da premiê alemã Angela Merkel sobre meio ambiente como se fosse o próprio Hino Nacional. Murphy o espreitava. O presidente francês Emmanuel Macron ecoou Merkel. Vão procurar a sua turma, bateu o general e ministro palaciano Augusto Heleno. Em vez de acalmar o amigo, Heleno revelou-se uma espécie de Murphy em dose dupla.

Bolsonaro e seu séquito tinham todo o direito —e até o dever— de responder a Merkel e Macron. O problema é que, considerando-se o timbre, pareciam tomar o partido não do Brasil, mas do pedaço mais atrasado do país, feito de desmatadores vorazes, trogloditas rurais e toupeiras climáticas. O interesse do moderno agronegócio brasileiro estava longe, em Bruxelas, na reunião em que se discutiam os termos do acordo entre Mercosul e União Europeia. Ali, sabia-se que a insensatez ambiental levaria à frustração do acordo comercial ambicionado há duas décadas.

Súbito, o Evangelho de João iluminou os caminhos do capitão, apaziguando-lhe a alma. Num par de reuniões bilaterais, Bolsonaro soou conservador sem fazer concessões ao atraso. Falou de uma certa “psicose ambiental” que fez Merkel arregalar os olhinhos. Mas declarou que o Brasil não cogita deixar o Acordo de Paris, dissolvendo as resistências de Macron. As palavras de Bolsonaro desanuviaram a atmosfera na sala de reuniões de Bruxelas. Por um instante, o “show de besteiras” saiu de cartaz. E a sensatez pariu um acordo.

Bolsonaro faria um enorme favor a si mesmo e ao país se aproveitasse o embalo para enganchar nas celebrações do aniversário de seis meses a estreia de um espetáculo novo. Nele, o Planalto deixaria de ser uma trincheira. O presidente trocaria o recrutamento de súditos pela busca de aliados. A ala familiar seria desligada da tomada. O guru de Virgínia perderia sua cota na Esplanada. Ministros cítricos e tóxicos seriam substituídos por gente técnica e limpinha.

O problema é que esse conjunto de modificações depende de uma mudança de chave no cérebro do próprio Bolsonaro. Algo que parece condicionado a um milagre. Não basta conhecer a verdade. É preciso querer se libertar do atraso.

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Reportagem especial

EXCLUSIVO! Por dentro do acampamento dos sem teto em Mossoró: virando os clichês pelo avesso

Ao fundo o símbolo do fracasso da tentativa de industrialização em Mossoró. No primeiro plano, a tragédia social.
Ao fundo o símbolo do fracasso da tentativa de industrialização em Mossoró. No primeiro plano, a tragédia social.

Reportagem: Bruno Barreto

Fotos: Fernando Nícolas

 

Ao lado do “elefante branco” materializado no prédio da Porcellanati, símbolo do fracasso da tentativa de industrialização em Mossoró, encontra-se o acampamento conhecido como Comuna Urbana do MST.

A visão da foto acima contrasta a necessidade e o desperdício. Enquanto muitos precisam de um lugar para morar, terra para plantar ou um emprego para se sustentar a Porcellanati teve todos os incentivos do Governo do Estado e da Prefeitura de Mossoró e fechou as portas, gerando desemprego e deixando dívidas milionárias no comércio local.

A seletividade de setores fica evidenciado ainda mais quando se percebe que o calote dado em Mossoró não gerou a mesma revolta que o acampamento na entrada do Conjunto Nova Mossoró. Foram três atentados à bala e muitas ameaças que se encerraram com o slogan “Bolsonaro 2018”. A polícia está investigando.

O caso gerou um debate sem fim nas redes sociais a respeito do caráter e origem das pessoas envolvidas no acampamento. Clichês sempre dão a tônica. “São vagabundos”. “Conheço um que tem casa própria”. “Sei de um que tem uma Hilux”. “É tudo bandido!”.

O Blog do Barreto virou os clichês pelo avesso e foi ao acampamento conhecer quem são as pessoas que estão lá, como vivem e as histórias de vida de algumas das 300 famílias que estão se revezando em grupos de 50 pessoas, a maioria chefiadas por mulheres desempregadas. Quem trabalha não recebe o suficiente para pagar a moradia e garantir a alimentação adequada. São trabalhadores braçais que vivem de “bicos”, empregadas domésticas e pessoas que fazem serviços esporádicos no comércio por hora trabalhada.

‘Quero um lugar para morar. Não para vender’thumbnail_E IMG_0581

Moreno, baixa estatura, mãos calejadas e olhar sofrido. Tenilson Melo, aos 58 anos, segue a vida do trabalho pesado como pedreiro. Sua história é sofrida. Dos 8 filhos, um morreu no ambiente de filme de terror da saúde pública. “Tinha um casal de gêmeos que adoeceram. A menina sobreviveu. O menino não resistiu. Só tinha cinco anos”, encerra em tom resignado.

Tenilson, demonstra tristeza quando provocado a comentar a respeito dos comentários das redes sociais que acusam o movimento de ser permeado por “vagabundos” e “bandidos”. “Eu acho errado pegar um terreno para morar e vender. A gente luta por um lugar para morar”, avisou.

Desde os 12 anos Tenilson trabalha. Sem muito tempo para estudar ele ajudava o pai na roça. “Quando meu pai faleceu fui para a cidade trabalhar como pedreiro”, disse. “Eu me incomodo com essa história de chamarem a gente de ‘bandido’. Só entrei numa delegacia para tirar documentos. Quero um lugar para morar. Não para vender”, reforça.

Tenilson nunca morou em casa própria. Acumula uma vida pagando aluguel. “Todos nós sabemos que precisamos batalhar para ter o que quer. Estamos aqui sem querer fazer baderna e aqui só tem pai de família muitos desempregados. Fico triste quando fico sabendo que atacam a gente na Internet”, lamentou.

‘Não sei o que é morar em casa própria, mas sei o que é pagar aluguel que consome tudo que ganho’

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Baixa estatura, braços fortes e semblante que mistura o bom humor com a angustia de quem tem três filhos e o quarta está na barriga. Lunne Rafaela aos 25 anos sobrevive com um bico em uma lanchonete aos finais de semana onde trabalha como monitora no espaço kids.

Ela recebe R$ 80 reais por final de semana trabalhado. “Não sei o que é morar em casa própria, mas sei o que é pagar um aluguel que consome tudo que ganho”, frisa.

A vida de Lunne não é fácil. O marido sofreu um acidente de trabalho que esmagou o pé direito deixando-o inválido para o trabalho pesado. Ela mostra resignação com as histórias que contam nas redes sociais. “Eles nos julgam pela aparência. Somos trabalhadores de bem. Se a gente não tivesse essa precisão não estava aqui. Se eles vivessem a vida que a gente vive não falariam isso. Para a gente é tudo mais difícil”, disse. “Falam que a gente tem carro do ano, mas eu não tenho dinheiro nem para botar gasolina numa moto velha”, completou.

‘Com três hérnias de disco entrego água para pagar o aluguel”

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Aldeci Fonseca, 59, carrega no rosto as marcas de quem dedicou a vida ao trabalho pesado nas salinas de Mossoró. Nas costas estão as dores e as consequências disso. Com três hérnias de disco está aposentado por invalidez. O benefício de um salário mínimo foi corroído por um empréstimo para sair do sufoco. “Só recebo R$ 640 por causa dos descontos”, lamenta o sem teto que paga R$ 350 de aluguel.

Para conseguir pagar o aluguel ele complementa a renda entregando água mineral e gás de cozinha quando as dores permitem. “Ganho um real por água vendida. Se eu vender dez garrafões eu ganho dez reais. Ganho cinco reais por gás vendido, mas a gente vende uma vez na vida”, frisa.

Num barraco em que se reveza com uma das noras no acampamento, ele conta que nunca morou em casa própria e sonha diariamente em se livrar do aluguel. “No dia que eu receber as chaves da casa eu quero ir para dentro morar. Tem gente que vende e é errado, mas a maioria aqui quer um lugar para viver”, avisou.

No momento em que fala sobre a vida dura as acusações de que “só tem bandido” é interrompido pela esposa, Francisca Martins, merendeira em uma escola pública. “Bom não é, mas a gente não vai revidar o que eles dizem da gente. Queremos a nossa casinha e um dia vamos conseguir”, declarou.

Magra, baixa estatura e o rosto com as marcas do trabalho duro, Francisca avisa que não perde a chance de reforçar a boa índole dos que lá estão: “Não queremos tomar a casa de ninguém. Queremos um lugar para morar”.

‘Estou aqui para ajudar”

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Cheiro de comida cozinhada no fogão a lenha improvisada e o prédio da Porcellanati ao fundo, Francisco Vieira, 63, se perde olhando para o “elefante branco” onde trabalhou como soldador elétrico por dois anos. “É uma tristeza muito grande. A gente trabalhava noite e dia e produzia muito. Mesmo na época do trabalho a gente percebia uma coisa estranha porque todo o dinheiro ia para Tubarão (cidade catarinense, sede da Porcellanti). Eles usaram o dinheiro para recuperar a empresa de lá e quebraram aqui. Tenho 28 mil para receber deles, mas vou passar uma procuração para meu filho porque não acredito que esteja vivo quando esse dinheiro sair”, disse.

Atualmente aposentado, Vieira, como é conhecido no acampamento fala que tem casa própria graças a luta dos sem-terra. “Sempre fui um militante da causa. Ter onde morar não é suficiente para mim. Preciso estar aqui ajudando essas pessoas. Preferi segui no movimento porque é melhor do que ficar em casa sem fazer nada”, explicou.

‘Só não estou dormindo aqui por medo dos tiros’

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Sentada ao lado do fogão a lenha Verônica Cordeiro, 37, está cabisbaixa. Rosto de quem parece ser mais velha do que indica a certidão de nascimento, ela conta que está desempregada e vive com a pensão de R$ 250 paga pelo ex-marido e pai de seus dois filhos. O dinheiro é usado para pagar o aluguel. Não sobra mais nada. Para se alimentar ela conta com ajuda do antigo companheiro que lhe entrega um cartão de um supermercado da cidade. “Para pagar água e luz eu me viro com as faxinas que aparecem”, conta.

Para fazer os bicos sempre precisou deixar os filhos pequenos sozinhos em casa. Hoje a situação se tornou menos arriscada. “A luta é antiga. Agora eles estão grandes, um já tem 18. Só não estou dormindo aqui por medo dos tiros. Foi assustador”, frisou.

Veronica relata que comprou fiado as tábuas para fazer o barraco. “Quando conseguir uma faxina para fazer eu pago”, avisou.

‘O jornalismo elitista tem um caráter fortemente ideológico e conservador’, diz jornalista

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Ex-editor dos jornais De Fato e Gazeta do Oeste, William Robson Cordeiro tem dedicado os últimos anos à pesquisa em comunicação. Graduado em jornalista pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e mestre em comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), atualmente faz doutorado em estudos da mídia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Parte do curso ele fez na Universidade de Barcelona de onde voltou recentemente.

Ao analisar o papel da mídia na construção de uma imagem negativa dos movimentos sociais ele critica o caráter elitista da mídia nacional. “Os meios de comunicação no Brasil são, em sua natureza, elitista e assim, na questão mais profunda que envolve a luta de classes, tende a operar em favor dos mais ricos (até porque, eles que são os donos da mídia). Não há a prática de um necessário jornalismo popular, que observe as necessidades de toda a comunidade com seriedade e justiça. O jornalismo elitista tem um caráter fortemente ideológico e conservador, de manutenção das castas. Assim, qualquer ação popular que venha enfrentar o establishment será propagada para a audiência como algo criminoso, horrendo, condenável”, avaliou.

Para William Robson, a mídia posa de imparcial, mas exatamente o inverso do que prega ao combater movimentos sociais. “A mídia também exerce um papel de domesticação e controle desta audiência neste quesito, pois ao criminalizar movimentos sociais que lutam por igualdade e direitos e, do mesmo modo criminalizar a pobreza, tenta passar a imagem de uma sociedade pacífica e trabalhadora que não pode ser incomodada com protestos e ações energéticas que venham a emergir das massas. Além disso, vendem isto como jornalismo isento, o que é uma tremenda desonestidade”, criticou.

O jornalista e pesquisador explica que há uma diferença de comportamento no Brasil em relação ao restante dos países na abordagem sobre protestos. “A mídia tem dois olhares quando movimentos sociais atuam no Brasil e no resto do mundo. No Brasil, invariavelmente, os protestos são realizados por ‘vândalos’. No resto do mundo por ‘manifestantes’. Estes marcadores de expressão tem um poder simbólico muito importante, visto que estabelecem status diferentes para situações que se assemelham apesar dos lugares diferentes: a luta popular.  Trata-se, portanto, de elemento de construção simbólica que permeia a narrativa e induz as pessoas a odiar os movimentos dos quais também serão beneficiados e, ao extremo, a levá-las a reagir, como o que ocorreu nos acampamentos do MST em Mossoró, por exemplo. O poder do jornalismo está na capacidade simbólica de agir no pensamento e estimular ações”, explicou.

‘Movimentos sociais e populares são parte necessária da dinâmica política dos sistemas democráticos’, afirma sociólogo

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O professor Dr. João Bosco de Araújo Costa, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) explica que os movimento sociais são fundamentais em países com desigualdade social brutal como o Brasil. “Os movimentos sociais e populares são parte necessária da dinâmica política dos sistemas democráticos. Da democracia, portanto. São os movimentos sociais, a exemplo do MST (sem terras) e MTST (sem tetos) que colocam nas agendas pública, política e governamental,

as demandas e reivindicações legítimas dos segmentos das classes sociais excluídas e privadas de acesso a bens e serviços. Também com sua atuação forçam sua entrada na agenda governamental e pressionam por políticas públicas que respondam a essas demandas justas e legítimas dos excluídos”, explicou.

Para o professor João Bosco, é preciso compreender o que está em jogo no país e entender a necessidade de se apoiar os movimentos sociais. Ele entende que existe parte da elite disposta a reduzir as desigualdades. “A brutal desigualdade social existente no Brasil é a razão de existir esses movimentos legítimos e imprescindíveis para a conquista de direitos pelos pobres e excluídos socialmente. Tem gente da elite que gosta de distribuir sopa e fazer caridade, outros optam por serem agentes organizacionais das lutas dos pobres por diretos proclamados na constituição e não acessados pela maioria da população”, lembrou.

No entanto, ele lembra que quando o assunto é governo a elite tem facilidades para ter suas reivindicações atendidas, restando aos movimentos sociais o recurso da pressão política. “Empresários e as elites endinheiradas reivindicam e pressionam os gestores públicos através das relações simbióticas e de compadrio com os agentes do Estado. Os pobres e excluídos fazem isso através da organização política em movimentos sociais e populares”, explicou.

‘As propriedades rurais ou urbanas que não cumpram de forma eficaz e plena sua função social, deverão ser objeto de desapropriação em função da coletividade e dos que dela necessite’, explica presidente da OAB/Mossoró

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O presidente da subseccional de Mossoró da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Canindé Maia, está escrevendo um livro sobre a função social da propriedade privada. “A CF 88, não define somente esta Função Social da Propriedade na ordem econômica, mas também como direito e garantia do homem, sendo direito fundamental do povo brasileiro. Portanto pelo princípio fundamental da dignidade de pessoa humana, vinculado ao direito fundamental de acesso à moradia e produção, as propriedades rurais ou urbanas que não cumpram de forma eficaz e plena sua função social, deverão ser objeto de desapropriação em função da coletividade e dos que dela necessite”, explicou.

Canindé Maia explica que a Constituição Federal estabelece a função social da propriedade privada como forma de conter as desigualdades sociais. “A função Social da Propriedade veio com o direito de propriedade, ou seja, para se manter o direito de propriedade é essencial cumprir a sua função social, sendo esta um conjunto de regras constitucionais visando colocar a propriedade nas trilhas normais, como forma de evitar desigualdades pelo uso degenerado exclusivamente egoísta, merecendo a tutela jurídica para o atendimento dos interesses sociais, mesmo contra a vontade daquele que a possui, devendo se revestir a propriedade de caráter economicamente útil, produtivo, canalizando as potencialidades residentes no bem em proveito da coletividade, deixando de cumprir pode perder a proteção por parte do ordenamento jurídico”, relata.

O foco da propriedade privada com função social é estabelecer harmonia social. “A propriedade usada de maneira socialmente útil, no benefício geral, tornando-o instrumento de riqueza e felicidade para todos, isso é cumprir a Função Social da Propriedade. O Estatuto da Terra conceituou a Função Social da propriedade quando diz que esta favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias, mantendo a produtividade, conservação dos recursos naturais, além de observar a justa relação de trabalho entre proprietários e os que a cultivam”, acrescenta Canindé.

No entanto, o presidente da OAB/Mossoró pondera que ocupar é ilegal, mas cabe ao Governo desapropriar propriedades que não cumprem função social. “A ocupação não é legal, pois o proprietário pode entrar com ação de reintegração, o governo que tem a obrigação de desapropriar as terras que não cumpram a função”, frisou.

Opinião do Blog

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A sociedade precisa conhecer melhor os movimentos sociais e quem são as pessoas que lideram, assim como compreender as histórias de vida dos que estão na luta. A mídia cumpre um papel fundamental de esclarecer isso, mas quando reforça estereótipos negativos aos movimentos sociais ela reforça o pensamento conservador.

Os movimentos sociais cumprem um papel fundamental na luta para reduzir desigualdades num país como Brasil marcado pelas diferenças sociais profundas de quem foi a última nação do mundo a pôr fim a vergonha da escravidão.

Embora não tenha amparo legal, as ocupações se tornaram o único instrumento dos movimentos sociais para garantir habitação e terra aos menos favorecidos. É uma forma de desobediência civil, uma ação de cunho político. Os meios das camadas populares não são os mesmos das elites que convivem com uma relação de proximidade com os agentes públicos.

O Brasil precisa discutir soluções para a desigualdade social de forma honesta, sem clichês e propagação de estereótipos que denigrem os mais humildes.

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Uma política decente de direita

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Por Renato Janine Ribeiro*

Defendo o diálogo entre as forças democráticas, isto é, a esquerda e a direita não autoritárias. Mas, como minhas simpatias estão com a esquerda moderada, quero expor o que poderia ser um programa audacioso e avançado de direita ou, se preferirem, liberal. Parto da grande tese do liberalismo: cada indivíduo tem capacidades únicas, notáveis, que para florescerem só precisam que sejam removidas as ervas daninhas. O Estado ou qualquer externalidade, inclusive as Igrejas, mais prejudicam do que ajudam. Claro que essas instituições devem remover obstáculos – e o grande exemplo é a repressão policial ao crime – mas não devem impor direção às riquezas singulares de cada pessoa.

Liberal nada tem a ver com “libertarian”, expressão frequente só nos Estados Unidos e que não se confunde com libertário, que no resto do mundo é sinônimo de anarquista. O anarquista é contra o poder – do Estado, da Igreja, do capital ou do partido. Já o “libertarian” é só contra o poder estatal, mesmo democrático; mas aceita a desigualdade social, mesmo aguda, ou o poder econômico, mesmo abusivo. Muito ao contrário disso, todo liberal autêntico tem uma teoria do homem, literalmente uma “antropologia”, que afirma a riqueza inesgotável de cada indivíduo. Ora, o resultado lógico dessa convicção é que ele defenda uma radical igualdade de oportunidades, para que todas as flores, na sua diferença, floresçam.

A igualdade deve estar na partida – mas não na chegada. A desigualdade social se justifica, para o liberal, em decorrência do empenho e desempenho de cada um, de seu talento e mérito. Um mote liberal seria: igualdade absoluta de oportunidades, incentivo à diferença e à criatividade, recompensa do esforço e do empenho. A riqueza interna de cada um deve se expressar. Portanto, a desigualdade prévia à estreia de cada qual no trabalho deve ser a menor possível. No limite, como propunha um dos liberais mais avançados da história francesa, o jornalista Jean-Jacques Servan-Schreiber, autor do best-seller “O desafio americano”, a herança deveria ser abolida, porque desnivela os pontos de partida. Tal medida, difícil que é de implantar, estaria não obstante no horizonte liberal.

O liberalismo deveria incluir ações afirmativas
 


A sociedade ou o Estado devem garantir o que hoje chamamos de ações afirmativas. O liberalismo genuíno não é contra cotas. Um governo liberal teria por meta, num prazo prefixado de dez ou vinte anos, assegurar uma educação de qualidade elevada e, acrescento, de mesma qualidade para todos os brasileiros. Iria até além das cotas, porque não incluiria só os melhores dentre os descendentes de africanos e indígenas, mas todos. Devem acabar, se for o caso pela ação do Estado, todos os entraves – por definição, injustos, iníquos – à igualdade de oportunidades.
Para o liberal, a educação deve ser prioridade absoluta, justamente porque faz as pessoas crescerem em sua diferença (o que inclui todas as orientações sexuais que não constituam abuso sobre vulneráveis) e beneficia a vida social. Esta, numa sociedade culta e educada, deve reduzir ao mínimo a tutela do Estado. Por que interviria ele na vida sexual, religiosa, espiritual de adultos não vulneráveis?

O empenho – e o desempenho – devem ser aferidos. Responsabilidade é palavra-chave. Enquanto o socialista tende a considerar que todo trabalho é por definição social, e que é difícil distinguir a responsabilidade e a performance de cada indivíduo, o liberal quer responsabilizar as pessoas pelo que fazem. O socialista enfatiza a cooperação, o liberal, a liberdade, isto é, a competição, mas dentro dos quadros legais e éticos. Não é a competição a todo custo, não é a guerra hobbesiana de todos contra todos. Daí que liberais gostem de avaliações. Elas devem individualizar a responsabilidade pelos resultados obtidos, sejam bons ou maus. A remuneração deve estar associada a avaliações.

Há avaliações de todas as sortes. O mercado é um grande avaliador de bens e de certos serviços. Mas precisa de correções. Impostos podem levar o produtor de leite a receber mais pelo que vende do que o fabricante de refrigerantes, que têm um custo de produção menor, uma demanda alta e portanto uma margem de lucro potencialmente superior. Mas, para além da avaliação simples que fazemos todos os dias ao comprar, há avaliações refinadas, que se referem a bens sociais, não ou pouco mercáveis, como educação, pesquisa científica, saúde, cultura e de modo geral tudo o que é novo. Avaliações, aliás, jamais constituem fins em si. Devem gerar resultados. Se a educação é prioridade, os melhores educadores devem ser estimulados. Vejam que “melhor” inclui doses de criatividade e de dedicação ou, se quiserem, os “tantos por cento de inspiração e tantos por cento de transpiração” que se diz serem o segredo das grandes obras.

Este rápido percurso permite uma limpeza de terreno. Muito do que está associado à esquerda, porque ela é mais “social”, pode na verdade caber no mundo liberal. Cotas, por exemplo. Mas temos liberais no Brasil? Difícil dizer. Quem se declara liberal, aqui, com frequência é apenas contra o poder do Estado, e ainda assim somente quando o governante for escolhido pelos mais pobres. Por isso, não se trata de liberais, mas de conservadores. Também por isso, me reservo o direito de apenas reconhecer como liberal quem lute pela igualdade de oportunidades, em pensamentos, palavras e atos. Em alguns momentos, penso que – talvez – a Rede Sustentabilidade possa ocupar o espaço liberal em nosso país. Mas, de todo modo, entre nós o liberalismo continua sendo um enredo com lugar vago para um autor.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. 

Texto profético publicado no Jornal Valor Econômico em 11 de agosto de 2014