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A ADPF 701/MG e aspectos processuais

Nunes Marques aceitou ação por entidade sem legitimidade para ADPF (Fellipe Sampaio/SCO/STF)

Por Rogério Tadeu Romano *

I – O FATO

Trata o presente artigo de aspectos processuais envolvendo Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, promovida pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE contra o art. 6º do Decreto n. 31, de 20/03/2020, do Município de João Monlevade/MG, por entender que, no contexto da implementação de medidas de enfrentamento da pandemia de COVID-19, foi ferido o direito fundamental à liberdade religiosa e o princípio da laicidade estatal, ao ser determinada a suspensão irrestrita das atividades religiosas na cidade, bem como em face “dos DEMAIS DECRETOS ESTADUAIS E MUNICIPAIS”, os quais teriam imposto violações equivalentes em todo o país.

Disse o relator naquela ocasião:

“Por prudência, ao menos neste momento processual, esta Suprema Corte deve prestigiar a instrumentalidade do processo, na medida em que o objeto desta ação diz com a proteção da liberdade de culto e religião, garantia constitucional. Além disso, é certo que, no Agravo Regimental no ADPF 696, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 30/11/2020, o Tribunal, ainda que implicitamente, aceitou a legitimidade da Associação Brasileira de Juristas Pela Democracia – ABJD. Assim, na existência de aparente divergência jurisprudencial, deve-se prestigiar a concreção do Acesso à Justiça, conforme art. 5º, XXXV, Constituição Federal: “(…) a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

II – A ADPF

Cabe lembrar que a arguição de preceito fundamental é remédio constitucional subsidiário que só deve ser ajuizado à falta de remédio inserido no direito processual comum. É instrumento próprio do processo constitucional na defesa de preceitos fundamentais.

Pode-se entender que a arguição de descumprimento de preceito fundamental brasileira, tal como posta no texto constitucional, tem raízes na Verfassungsbeschwerd, do direito alemão, que funciona como meio de queixa jurisdicional perante o Bundesverfassungericht, almejando a tutela de direitos fundamentais e de certas situações subjetivas lesadas por um ato da autoridade pública.

A discussão que trago à colação diz respeito ao que o artigo 1º da Lei 9.882/89 chama de ato do poder público.

Disse o ministro Alexandre de Moraes que deve-se ver os fundamentos e objetivos fundamentais da República de forma a consagrar maior efetividade às previsões constitucionais.

Na linha de Klaus Schlaich, Alexandre de Moraes observa que devem ser admitidas arguições de descumprimento de preceitos fundamentais contra atos abusivos do Executivo, Legislativo e Judiciário, desde que esgotadas as vias judiciais ordinárias, em face de seu caráter subsidiário.

Conforme entendimento iterativo do STF, meio eficaz de sanar a lesão é aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata, devendo o Tribunal sempre examinar eventual cabimento das demais ações de controle concentrado no contexto da ordem constitucional global.

O ministro Gilmar Ferreira Mendes (Jurisdição constitucional) anotou que: “A primeira vista, poderia parecer que somente na hipótese de absoluta inexistência de qualquer outro meio eficaz para afastar a eventual lesão poder-se-ia manifestar, de forma útil, a arguição de descumprimento de preceito fundamental. É fácil ver que uma leitura excessivamente literal dessa disposição, que tenta introduzir entre nós o princípio da subsidiariedade vigente no direito alemão e no direito espanhol para, respectivamente, o recurso constitucional e o recurso de amparo, acabaria para retirar desse instituto qualquer significado prático.

Observou o ministro Alexandre de Moraes: “Note-se que, em face do art. 4º, caput, e § 1º da Lei nº 9.882/99 que autoriza a não admissão de arguição de preceito fundamental quando não for o caso ou quando houver outro meio eficaz de sanar a lesividade, foi concedida certa discricionariedade ao STF, na escolha das arguições que deverão ser processadas e julgadas, podendo, em face seu caráter subsidiário, deixar de conhece-la quando concluir pela inexistência de relevante interesse público, sob pena de tornar-se uma nova instância recursal para todos os julgados dos tribunais superiores.

Anotou ainda o ministro Gilmar Mendes (obra citada) que “dessa forma, entende-se que o STF poderá exercer um juízo de admissibilidade discricionário para a utilização desse importantíssimo instrumento de efetividade dos princípios e direitos fundamentais, levando em conta o interesse público e a ausência de outros mecanismos jurisdicionais efetivos.”

Para tanto, afirmou o ministro Gilmar Mendes que a ADPF “é típico instrumento do modelo concentrado de controle de constitucionalidade (Arguição de descumprimento de preceito fundamental: comentários à Lei 9.882, de 3.12.1999. 2. ed. São Paulo: Saraiva,2011. p. 170).

A legislação, no que tange à modalidade direta de ADPF, foi enfática ao prever, em seu art. 1º, que caberá ADPF em face de ato do Poder Público. Note-se, aqui, a extensão desse termo, que não se circunscreve apenas aos atos normativos do Poder Público. Portanto, e como primeira conclusão, a ADPF poderá servir para impugnar atos não normativos, como os atos administrativos e os atos concretos, desde que emanados do Poder Público. Trata-se, já aqui, de atos não impugnáveis por via da ação direta de inconstitucionalidade Como se sabe, a arguição de descumprimento de preceito fundamental somente poderá ser utilizada, se se demonstrar que, por parte do interessado, houve o prévio exaurimento de outros mecanismos processuais, previstos em nosso ordenamento positivo, capazes de fazer cessar a situação de suposta lesividade ou de alegada potencialidade danosa resultante dos atos estatais questionados. Essa a conclusão de André Ramos (Repensando a ADPF no complexo modelo brasileiro de controle da constitucionalidade. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Leituras complementares de direito constitucional: controle de constitucionalidade. Salvador: JusPodivm, 2007. p. 57-72)

Daí a prudência com que o Supremo Tribunal Federal deve interpretar a regra inscrita no art. 4º, §1º, da Lei nº 9.882/99, em ordem a permitir que a utilização de referida ação constitucional possa efetivamente prevenir ou reparar lesão a preceito fundamental causada por ato do Poder Público. Não é por outra razão que esta Suprema Corte vem entendendo que a invocação do princípio da subsidiariedade, para não conflitar com o caráter objetivo de que se reveste a arguição de descumprimento de preceito fundamental, supõe a impossibilidade de utilização, em cada caso, dos demais instrumentos de controle normativo abstrato.

Ressalte-se, contudo, que a mera possibilidade de utilização de outros meios processuais não basta, só por si, para justificar a invocação do princípio da subsidiariedade para o ajuizamento da ADPF, pois, para que esse postulado possa incidir, revela-se essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se capazes de neutralizar, de maneira eficaz, a situação de lesividade que se busca obstar com o ajuizamento desse writ constitucional (STF AgR-ADPF 17). A existência de processos ordinários e recursos extraordinários também não deve excluir, “a priori”, a utilização da ADPF, em virtude da feição marcadamente objetiva desta ação (STF ADPF 33).

O ministro Roberto Barroso disse que “o fato de existir ação subjetiva ou possibilidade recursal não basta para descaracterizar a admissibilidade da ADPF – já que a questão realmente importante será a capacidade do meio disponível sanar ou evitar a lesividade ao preceito fundamental. Por isso mesmo, se as ações subjetivas forem suficientes para esse fim, não caberá a ADPF” (O controle de constitucionalidade n direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 323).

 A atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem atribuído ao princípio da subsidiariedade esse específico significado (ADPF 390-AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 8 ago. 2017; ADPF 266-AgR, Rel.Min. Edson Fachin, DJe de 23 maio 2017; ADPF 237-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 30 out. 2014, entre outros julgados), em que pese a orientação geral de que a subsidiariedade há de ser aferida em face da ordem constitucional global e tendo por consideração os meios aptos a solver a controvérsia de forma ampla geral e imediata (ADPF 33/PA, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 27out. 2006).

O Ministro Gilmar Mendes (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, São Paulo, ed. Saraiva, 2009, 1ª edição, 2ª tiragem) dá exemplos de hipóteses de objeto e de parâmetros de controle:

a) direito pré-constitucional;

b)  lei pré-constitucional e alteração de regra constitucional de competência legislativa (incompetência legislativa superveniente);

c) O controle direto da constitucionalidade do direito municipal em face da Constituição Federal;

d) Pedido de declaração de constitucionalidade (ação declaratória) do direito estadual ou municipal e arguição de descumprimento;

e) A lesão a preceito decorrente de mera interpretação judicial;

f) Contrariedade à Constituição decorrente de decisão judicial sem base legal (ou fundada em falsa base legal);

g) Omissão legislativa e controle da constitucionalidade no processo de controle abstrato de normas e na arguição de descumprimento de preceito fundamental(ADPF – 45, relator Ministro Celso de Melo, DJ de 4 de maio de 2004).

h) Norma revogada(ADPF 33, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgada em 7 de dezembro de 2005)

i)  Medida Provisória rejeitada e relações jurídicas constituídas durante a sua vigência (ADPF 84 – AgRg, DJ de 7 de março de 2006).

j)  O controle do ato regulamentar.

III – O ARTIGO 103, IX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Para ajuizá-la é mister ter legitimidade para tal.

Fala-se com relação ao direito de propositura das confederações sindicais e das entidades de classe de âmbito nacional.

O conceito de entidade de classe de âmbito nacional abarca um grupo amplo e diferenciado de associações que não podem ser distinguidos de maneira simples.

Em decisão de 5 de abril de 1989 tentou o STF precisar o conceito de entidade de classe, ao explicitar que é apenas a associação de pessoas que em essência representa o interesse comum de terminada categoria, como se lê da ADIn 79, relator min. Celso de Mello, DJ de 10 de setembro de 1989. Ali se disse: “não se pode considerar entidade de classe a sociedade formada meramente por pessoas físicas ou jurídicas que firmem sua assinatura em lista de adesão ou qualquer outro documento idôneo(….), ausente particularidade ou condição, objetiva ou subjetiva, que distingam sócios de não-associados”, como se lê ainda da ADIn 52, relator ministro Célio Borja, Dj de 19 de setembro de 1990, pág. 9.721.

Sendo assim conforme aquela já mencionada ADIn 79, relator ministro Celso de Mello, DJ de 10 de setembro de 1989, a ideia de um interesse essencial de diferentes categorias fornece base para a distinção entre a organização de classe, nos termos do artigo 103, IX, da Constituição, e outras Associações ou Organizações Sociais. Dessa forma, deixou claro o Supremo Tribunal Federal que a Constituição decidiu por uma legitimação limitada, não permitindo que se convertesse o direito de propositura dessas, organizações de classe em autêntica ação popular.

Por sua vez, em orientação firmada na ADIn 108, relator ministro Celso de Mello, DJ de 5 de junho de 1992, pág. 8.426, entendeu-se que não configura entidade de classe de âmbito nacional, para os efeitos do artigo 103, IX, organização formada por associados pertencentes a categorias diversas. Assim “não se configuram como entidades de classe aquelas instituições que são integradas por membros vinculados a extratos sociais, profissionais ou econômicos diversificados, cujos objetivos, individualmente considerados, revelam-se contrastantes.

Afirmou-se, na ADIn 61, relator ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 28 de setembro de 1990, pág. 10.222, que “não constitui entidade de classe, para legitimar-se à ação direta de inconstitucionalidade(CF, artigo 103, IX), associação civil, voltada à finalidade altruísta de promoção a defesa de aspirações cívicas de toda a cidadania”.

Quanto ao caráter nacional da entidade, enfatiza-se que não basta simples declaração formal ou manifestação de intenção constante de seus atos constitutivos. Faz-se mister que, além de uma atuação transregional, tenha a entidade membros em pelo menos nove Estados da Federação, número que resulta de aplicação analógica da Lei Orgânica dos Partidos Políticos, como se ê da ADIn 386, relator ministro Sydney Sanches, DJ de 28 de junho de 1991, pág. 8.904 e ainda ADIn 108, relator ministro Celso de Mello, DJ de 5 de junho de 1992, pág. 8.427.

Em sendo assim, o Supremo Tribunal Federal recusou legitimidade para instauração de ações de controle concentrado a entidades constituídas a partir de elementos associativos pertinentes a determinados valores, práticas ou atividades de interesse social, tais como cidadania, moralidade, desporto e prática religiosa”, escreveu Moraes ao rejeitar o recurso da Anajure.

Menciona-se ainda que segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, há de se exigir que o objeto da ação de inconstitucionalidade guarde relação de pertinência com a atividade de representação da confederação ou da entidade de classe de âmbito nacional.

Pois bem em uma manifestação sobre a temática da abertura dos tempos em razão do princípio da liberdade religiosa, pontuou na manifestação, que há o entendimento no STF de que uma entidade de classe, para fins de legitimidade para a instauração de ação de inconstitucionalidade, deve ser composta por categoria homogênea. Além disso, a associação não comprovou atuação no âmbito nacional, sendo que é necessário que uma associação comprove ter membros ou associações em ao menos nove estados para ter caráter nacional. A AGU ainda traz que recentemente o próprio Supremo Tribunal Federal, na figura do ministro Alexandre de Moraes, entendeu que a associação não possuía legitimidade em uma outra ADPF, em fevereiro deste ano, no julgamento do Agravo Regimental na ADPF 703/BA, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 17/02/2021.

Ali foi dito:

“1. A jurisprudência do STF exige, para a caracterização da legitimidade ativa das entidades de classe e confederações sindicais nas ações de controle concentrado de constitucionalidade, a representatividade de categoria empresarial ou profissional.2. Sob esse enfoque, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos –ANAJURE carece de legitimidade para a propositura da presente arguição, na medida em que congrega associados vinculados por convicções e práticas intelectuais e religiosas. Precedentes.3. O cabimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental será viável desde que haja a observância do princípio da subsidiariedade, que exige o esgotamento de todas as vias possíveis para sanar a lesão ou a ameaça de lesão a preceitos fundamentais, ou a verificação, ab initio, de sua inutilidade para a preservação do preceito. Precedentes desta CORTE.4. A possibilidade de impugnação de ato normativo municipal perante o Tribunal de Justiça local, em sede concentrada, tendo-se por parâmetro de controle dispositivo da Constituição estadual, ou mesmo da Constituição Federal, desde que se trate de norma de reprodução obrigatória, caracteriza meio eficaz para sanar a lesividade apontada pela parte, de mesmo alcance e celeridade que a arguição de descumprimento de preceito fundamental perante o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, em razão do que se mostra desatendido o requisito da subsidiariedade (art.4º, § 1º, da Lei 9.882/1999). 5. Agravo Regimental a que se nega provimento.”

Observo que o Supremo Tribunal Federal já recusou legitimidade para instauração de ações de controle concentrado a entidades constituídas a partir de elementos associativos pertinentes a determinados valores, práticas ou atividades de interesse social, tais como cidadania, moralidade, desporto e prática religiosa. Nesse sentido, diversos precedentes: ADPF 406 AgR, Pleno, relatora ministra Rosa Weber, DJe de 7/2/2017; ADI 4.770 AgR, Pleno, Relator ministro Teori Zavascki, DJe de 25/2/2015; e decisões monocráticas na ADI 5666, ministro Celso de Mello, DJe de6/4/2017; ADPF 278, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 9/2/2015; e ADI 4.892, Rel. Min. Gilmar Mendes,, DJe de 21/8/2013.

Tem-se ainda:

“O Conselho Interdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil – CIMEB –, a despeito de demonstrar formalmente em seu estatuto o caráter nacional da entidade, não se afigura como categoria profissional ou econômica, razão pela qual não possui legitimidade ativa para a propositura da ação direta deinconstitucionalidade.3. Nego provimento ao agravo regimental. ́(ADI 4294-AgR, Rel. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 01/07/2016, DJe de 5/9/2016)”.

Dessa maneira, constata-se que a requerente não detém legitimidade para o ajuizamento da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental, a qual não deve ser conhecida”, ressalta, dizendo ainda que uma ADPF não é a via mais adequada para análise da suposta inconstitucionalidade dos decretos estaduais e municipais, visto que não há na Constituição Federal uma referência a medidas restritivas para proteção da saúde pública.

Não teria, pois, a entidade referenciada legitimidade para ajuizamento do remédio constitucional suscitado e ainda faltaria a ela interesse de agir, pois exige-se a comprovação da observância ao princípio da subsidiariedade.

IV – A INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA

Ademais, o cabimento da ADPF será viável desde que haja a observância do princípio da subsidiariedade, que exige o esgotamento de todas as vias possíveis para sanar a lesão ou a ameaça de lesão a preceitos fundamentais ou a verificação, ab initio, de sua inutilidade para a preservação do preceito (ADPF186/DF, relator ministro Ricardo Lewandowski,  DJe de20/10/2014).

Trago entendimento do ministro Celso de Mello:

da “A possibilidade de instauração, no âmbito do Estado-membro, de processo objetivo de fiscalização normativa abstrata de leis municipais contestadas em face da Constituição Estadual (CF, art. 125, § 2º) torna inadmissível, por efeito da incidência do princípio da subsidiariedade (Lei 9.882/99, art. 4º,§ 1º), o acesso imediato à arguição de descumprimento de preceito fundamental. É que, nesse processo de controle abstrato de normas locais, permite-se ao Tribunal de Justiça estadual a concessão, até mesmo in limine, de provimento cautelar neutralizador da suposta lesividade do diploma legislativo impugnado, a evidenciar a existência, no plano local, de instrumento processual de caráter objetivo apto a sanar, de modo pronto e eficaz, a situação de lesividade, atual ou potencial, alegadamente provocada por leis ou atos normativos editados pelo Município.”(ADPF-MC 100/TO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, decisão monocrática, DJe de 17/12/2008).

Na matéria disse a ministra Rosa Weber:

“Ante o desenvolvido, e considerada a existência de outros meios processuais adequados para, na dimensão em tese, impugnar os atos normativos identificados na inicial, deforma exemplificativa, e solucionar de forma imediata, eficaz e local a controvérsia constitucional apontada, o conhecimento da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental não passa no parâmetro normativo-decisório construído por esse Supremo Tribunal Federal, por meio de seus precedentes judiciais, quanto ao sentido atribuído ao requisito da subsidiariedade”.(ADPF 666/DF, Rel. Min. ROSA WEBER, decisão monocrática, DJe de 16/04/2020).

Entendo que há outros instrumentos processuais hábeis para a discussão da matéria, à luz da exigência do que se traduz o princípio da subsidiariedade.

V – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A AGU considerou que A Associação de Juristas Evangélicos não tem legitimidade para recorrer a ADPF. A AGU Apontou, vou transcrever: “a) a ilegitimidade ativa da ANAJURE; b) inobservância do princípio da subsidiariedade; c) ausência de indicação dos atos. Tal atuação se dá como curador da norma, papel esse a ser desempenhado pela Advocacia Geral da União nessas ações de controle concentrado. Não poderia, pois, mudar seu posicionamento, talvez em razão de interesses ideológicos. O seu papel se dá no âmbito estritamente jurídico. A AGU serve ao Estado brasileiro e não a governos e a ideologias.

Em sendo assim entendo que o Plenário do STF deve revogar a liminar concedida pelo ministro Kássio Nunes Marques, extinguindo o feito por carência de ação, por ilegitimidade da entidade que a propôs e ainda por inadequação da via eleita, falta de interesse de agir.

Discute-se, por fim, se há prevenção do ministro Nunes Marques, em face da relatoria na ADPF 701/MG, em face de outra ação de descumprimento de preceito fundamental, cujo relator é o ministro Gilmar Mendes. Ora, a prevenção não pode ser exercida a partir de ação extinta sem resolução do mérito, sob pena de causar “efeito devastador e deletério” na tramitação de ações perante o STF. Sendo assim há reunião de todas as ADPF que vierem a ser julgadas sobre o tema(liberdade religiosa x medidas restritivas em prol da saúde), devendo todas elas serem distribuídas para o ministro Gilmar Mendes, prevento para tai julgamentos.

Não há prevenção ou dependência com a ADPF701/MG, de relatoria do ministro Nunes Marques.

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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Uma errônea decisão

João Rebouças decidiu liberar academias sem sustentação em jurisprudência estabelecida pelo STF (Foto: reprodução)

Por Rogério Tadeu Romano*

I – O DIREITO À SAÚDE

Em 1988, o Brasil rumou para um caminho democrático ao ver promulgada a sua Constituição-cidadã.

Alinha-se a Constituição de 1988, no Brasil, a um moderno Estado Democrático de Direito que reclama uma Democracia Participativa aberta, dentro de uma Constituição aberta a todas as instâncias de participação permanente. Fácil e ver que os esquemas político-institucionais baseados em estruturas antigas, do tipo liberal-individualista, não se adaptam às novas exigências da ordem coletiva.

O Estado tem o dever de zelar pela saúde, a educação, a A saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos. O direito à saúde rege-se pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperem.

As ações e serviços de saúde são de relevância pública, por isso ficam inteiramente sujeitos à regulamentação, fiscalização e controle do Poder Público, nos termos da lei, a que cabe executá-los diretamente ou por terceiros, pessoas físicas ou jurídicas de direito privado.

Na lição de José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, 5ª edição, pág. 696), se a Constituição atribui ao Poder Público o controle das ações e serviços de saúde, significa que sobre tais ações e serviços tem ele integral poder de dominação que é o sentido do termo controle, mormente quando aparece ao lado da palavra fiscalização.

A atuação no campo da saúde diz respeito ao sistema único de saúde, integrado por uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de saúde, constitui meio pelo qual o Poder Público cumpre seu dever de relação jurídica que tem no polo ativo qualquer pessoa e a comunidade, já que o direito à promoção e à proteção da saúde é ainda um direito coletivo. O sistema único de saúde implica ações e serviços federais, estaduais, distritais (DF) e municípios, regendo-se pelos princípios da descentralização, com direção única em cada esfera de governo, de atendimento integral, com prioridades para atuações preventivas e da participação da comunidade, o que confirma seu caráter de direito social pessoal, de um lado, e de direito social, coletivo, de outro.

Responsável pelas ações e serviços de saúde é o Poder Público, na medida em que a Constituição fala em ações e serviços públicos de saúde, para distinguir a assistência à saúde pela iniciativa privada, que ela também admite.

Pois bem.

É impositiva a ação estatal, em todas as esferas federativas, quando o assunto é a saúde pública.

O Princípio da obrigatoriedade da ação estatal ensina que o Estado deve prevenir, por todos os meios possíveis, as ameaças à saúde pública.

No passado presente, é sempre indispensável dizer, vivemos a maior crise sanitária de nossa geração. Suas repercussões são terríveis na ordem econômica, social, da educação.

Os entes federativos têm vivido sérios problemas quanto à adequação das medidas que devem ser tomadas, no exercício do poder de polícia, em face da Lei nº 13.979/2020.

Sabe-se que a Constituição disciplinou a competência dos entes federativos como concorrente.

Mas, recentemente, em sede de Suspensões de Liminares, onde o mérito não foi objeto de cogitação, mas a adoção de medidas determinadas em face de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, em março deste ano, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, restabeleceu a plena eficácia do Decreto estadual 65.545/2021 de São Paulo que determinava a classificação do Município de São José dos Campos na fase vermelha do Plano São Paulo de combate à pandemia da Covid-19. A decisão cautelar foi proferida em dois pedidos de Suspensão de Liminar (SL 1428 e SL 1429) contra decisão do Tribunal de Justiça estadual (TJ-SP) que havia autorizado a migração do município para a fase laranja, menos rígida.

Então o que fazer com relação a matéria, envolvendo fechamento do comércio e dos serviços não essenciais, até mesmo um lockdown, tomados na devida proporcionalidade, quando União, Estados, Municípios, têm decisões conflitantes, de caráter prescritivos, com functores deônticos?

Penso que o assunto, por envolver uma pandemia, tem que ser tratado como direito à saúde.

Se entendido como tal a competência seria concorrente, como julgado pelo Supremo na ADi 6341. Por compreender ser aplicado ao caso o princípio da precaução/prevenção, há de prevalecer a norma do ente federativo concorrente que, sendo mais restritiva, tenha o maior condão profilático na matéria. Sobre a matéria há interesse estudo de Gabriel Vedy (O princípio constitucional da precaução como instrumento do meio ambiente e da saúde pública”, Ed. Forum, 3ª ed., 2020).

Essa vertente diz respeito à aplicação dos princípios da prevenção e da precaução o que exigiria maior atenção das autoridades sanitárias e o implemento de medidas mais severas.

Em sendo assim, sob essa ótica, na controvérsia entre as medidas legais tomadas pelo município ou pelo Estado Membro, adotar-se-ia a mais grave e a mais incisiva para o caso.

O objetivo do Princípio da Prevenção é o de impedir que ocorram danos à saúde, concretizando-se, portanto, pela adoção de cautelas, antes da efetiva execução de atividades potencialmente produtoras de danos.

O Princípio da Precaução, por seu turno, possui âmbito de aplicação diverso, embora o objetivo seja idêntico ao do Princípio da Prevenção, qual seja, antecipar-se à ocorrência das agressões à saúde.

Enquanto o Princípio da Prevenção impõe medidas acautelatórias para aquelas atividades cujos riscos são conhecidos e previsíveis, o Princípio da Precaução encontra terreno fértil nas hipóteses em que os riscos são desconhecidos e imprevisíveis, impondo à Administração Pública um comportamento muito mais restritivo quanto às atribuições de fiscalização e de licenciamento das atividades potencialmente danosas à saúde.

Com isso proteger-se-ia o direito à saúde, que tem natureza difusa na sociedade.

Para tanto, é preciso reconhecer que, tendo em mente a equivalência valorativa entre os princípios da precaução e da prevenção, viabilizar-se-ia a sua consideração em duas dimensões, duas faces de uma mesma moeda: a) havendo ameaça de lesão, cujos reflexos são previsíveis ou conhecidos (situação tradicionalmente associada ao princípio da prevenção); e b) havendo ameaça de lesão, cujos reflexos não são previsíveis ou não são conhecidos (situação comumente associada ao próprio princípio da precaução).

Essa necessidade de atuação do Poder Público é respaldada na existência de outro princípio: o princípio da obrigatoriedade da ação estatal.

Sendo assim, repito, há de prevalecer a norma do ente federativo concorrente que, sendo mais restritiva, tenha o maior condão profilático na matéria, dentro de um necessário pacto pela vida. As normas federais são genéricas na matéria, a dos Estados e do Distrito Federal no âmbito de seu território e a dos Municípios, na estrita conveniência e oportunidade dos seus interesses locais. Repito: há competente concorrente entre os entes federativos para dispor sobre saúde.

II – A COMPETÊNCIA CONCORRENTE DOS ENTES FEDERATIVOS EM MATÉRIA DE SAÚDE PÚBLICA

Observo o artigo 23 da Constituição:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

…….

II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

….

Observo o artigo 24, § 4º, da Constituição Federal.

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário. (Vide Lei nº 13.874, de 2019)

Ora, o que o parágrafo acentua e reafirma é a competência primária da União para expedir normas gerais.

Raul Machado Horta, um dos teóricos brasileiros que mais têm dedicado atenção ao tema do federalismo, considera que o constituinte de 1988 “enriqueceu a autonomia formal, dispondo que a competência da União consistirá no estabelecimento de normas gerais, isto é, normas não exaustivas, e a competência dos Estados se exercerá no domínio da legislação suplementar”. Complementando essa observação, oferece em seguida uma noção muito precisa: “A lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma moldura legislativa. A lei estadual suplementar introduzirá a lei de normas gerais no ordenamento do Estado, mediante o preenchimento dos claros deixados pela lei de normas gerais, de forma a afeiçoá-la às peculiaridades locais” (Estudos de Direito Constitucional, Del Rey, Belo Horizonte, 1995, págs. 419/420).

Estamos diante de normas gerais que são as editadas pelos poderes federais, vigorando em todo o território nacional. As normas particulares são emitidas pelos poderes estaduais e municipais tendo eficácia apenas em seus territórios e dizem respeito a seus especiais interesses locais.

Na divergência entre elas vigora a que for mais restritiva em favor da saúde, pouco importando os interesses econômicos e políticos envolvidos, isto à luz dos princípios indicados.

III – O CASO CONCRETO E A INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL

Passo a decisão que irei comentar.

O desembargador João Rebouças concedeu liminar a um pedido do Conselho Regional de Educação Física da 16ª Região (CREF/RN) e autorizou a abertura das academias em todo o Rio Grande do Norte durante a vigência do decreto estadual que permite o funcionamento apenas de serviços essenciais entre o sábado (20) e o dia 2 de abril deste ano.

A decisão atende a um mandado de segurança impetrado pela entidade de representação profissional contra a Governadora do Estado. O conselho afirmou que foi verificada ilegalidade no decreto ao deixar de observar os artigos 1º e 3º, incisos LVI e LVII do decreto federal nº 10.344/2020 e também da Lei Municipal nº 7.125/2021, que descreve a atividade física como serviço essencial à saúde pública no âmbito do município de Natal.

O desembargador João Rebouças destacou que é notória a situação de calamidade pública no país e no RN e disse que o Estado não tem medido esforços para combater a pandemia. Apesar disso, considerou que não considerar a prática em academias como atividade essencial violou o decreto federal Nº 10.344/2020.

Segundo o desembargador, o decreto federal, ao estabelecer o rol de atividades essenciais, não pode ser contrariado pelo decreto estadual, diante do que preceitua o artigo 24, § 4º, da Constituição Federal.

O magistrado destacou na decisão que a competência normativa é distribuída nos níveis de União, Estados e Municípios, existindo uma hierarquização legislativa. “Mesmo dentro de sua competência original ou delegada, o Estado não pode editar normas contrárias às definidas pela União”, cita a decisão.

Segundo o desembargador, o decreto federal, ao estabelecer o rol de atividades essenciais, não pode ser contrariado pelo decreto estadual, diante do que preceitua o artigo 24, § 4º, da Constituição Federal.

Data vênia, a norma federal, em tema de saúde, não supera a dos outros entes federativos, pois é concorrente. Aplica-se, repito à exaustão, na concorrência entre elas, a norma que for mais restritiva a favor da saúde da população envolvida, dentro ainda de uma interpretação sistemática da Constituição. Ademais, aquela decisão do TJRN comete um erro imperdoável: é competência da Justiça Federal, a teor do artigo 109, I, da CF, instruir e julgar processos em que haja interesse da União, empresas públicas, autarquias corporativas ou fundacionais. Ora, as ações do CREF/RN devem ser julgadas na Justiça Federal. Portanto ela é nula por afrontar pressuposto processual de validade da relação jurídico-processual.

É nula, pois, a decisão emanada pelo juízo de segundo grau da Justiça Comum do Rio Grande do Norte.

Com o advento da Lei n. 9.649/98, alterou-se a natureza jurídica de todos os conselhos de fiscalização de profissão, nos seguintes termos:

Art. 58. Os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas serão exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa. (Vide ADIN nº 1.717-6)

[…];

§ 8º Compete à Justiça Federal a apreciação das controvérsias que envolvam os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, quando no exercício dos serviços a eles delegados, conforme disposto no caput. (Vide ADIN nº 1.717-6 – grifei)

Ocorre que, em decisão proferida na ADI 1.717/DF, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade do art. 58, § 8º, da Lei n. 9.649/98; ou seja, referida norma não revogou validamente o disposto na Lei n. 3.820/60. Veja-se:

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao § 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do “caput” e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão unânime. (ADI 1717, Relator (a): Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 07/11/2002, DJ 28-03-2003 PP-00063 EMENT VOL-02104-01 PP-00149)

Os Conselhos de fiscalização profissional têm a natureza jurídica de autarquia, motivo pelo qual a competência para julgamento dos feitos em que sejam parte é da Justiça Federal.” (TRF4, AG 2008.04.00.042195-8, QUARTA TURMA, Relatora para Acórdão MARGA INGE BARTH TESSLER, D.E. 30/03/2009). RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. REMESSA DOS AUTOS AO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO.

Observo, por fim, o que foi julgado no CC 69.579 pelo STJ, onde se disse, em síntese:

“Ações propostas pelos conselhos regionais de fiscalização devem ser julgadas pela Justiça Federal. O entendimento é do ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça.”

A incompetência da Justiça Comum Estadual para a matéria é absoluta. De modo, que são nulos todos os atos decisórios ali praticados com relação ao processo em tela.

IV – CONCLUSÕES

Dois, então, serão os caminhos a adotar: a uma, a anulação da decisão perante o próprio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte; a duas, ajuizamento de Suspensão de Liminar, à luz do artigo 4º da Lei nº 8.437/92, em face de   caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.

Vem, por fim, a notícia de que o Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a suspensão do funcionamento de academias de ginásticas, boxes de crossfit, estúdios de pilates e similares no Rio Grande do Norte enquanto perdurar o decreto 30.419/21 que prevê maior rigor no combate ao avanço da pandemia da Covid-19.

Restará, por fim, pelo ente legitimado, ajuizar agravo regimental para anular a decisão tomada pelo TJRN.

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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Cabe ao executivo e não ao legislativo dizer o que é atividade essencial

Câmara de Natal aprova projeto que torna educação serviço essencial (Foto: Câmara Municipal de Natal)

Por Rogério Tadeu Romano *

I – O FATO  

Surge a notícia de que a Câmara Municipal de Natal, capital do Rio Grande do Norte, aprovou projeto de lei para tornar como atividade essencial a educação.  

Trata-se de uma “manobra jurídica” para driblar decretos estaduais e municipais que definem atividades essenciais , para o exercício de poder de polícia, em tempos de pandemia.  

Assim como a lei é norma típica primária e o decreto, norma típica secundária, a matéria estaria resolvida, pois, por lei estaria definido o que é serviço essencial para funcionamento em tempos da pandemia da covid-19.  

Mas, data vênia, não cabe à lei tratar de assunto de discricionariedade técnica. Tal lugar é dado aos decretos de execução ou executivos, postos nos limites da lei, visando ao exercício da chamada discricionariedade técnica. Assim não cabe a lei tratar de discricionariedade técnica.  

Se a moda pega…. 

II – LEI  

Lei, no sentido material, é o ato jurídico emanado do Estado com o caráter de norma geral, abstrata e obrigatória, tendo como finalidade o ordenamento da vida coletiva, como já dizia Duguit. Esses caracteres e o de modificação da ordem jurídica preexistente, que decorre da sua qualidade de ato jurídico, como dizia Miguel Seabra Fagundes (“O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário”, segunda edição, José Konfino, pág. 30), se somam para caracterizar a lei entre os demais atos do Estado. Mas entre eles só é específico o da generalidade. 

Entre os italianos, Ranelletti, além de outros, entende que o caráter especifico da lei, no sentido material, está na novidade ou modificação (“novità), e não na generalidade, se bem que seja esta uma característica habitual trazida à norma jurídica. 

Ranelletti, com razão, nega o caráter de lei às regras que o Estado regula a sua própria atividade, por lhe parecer que não produzam efeito jurídico em relação a terceiros.

Ao lado da generalidade é, sem dúvida, elemento intrínseco, inapartável da lei, a modificação do direito preexistente alterando situações juridicas anteriores. A novidade de que falou Ranellleti. 

Ora, no Brasil, não ocorre no ato administrativo normativo (decreto), mas somente na lei, generalidade e novidade. 

Aliás, dita o artigo , inciso II, da Constituição, quanto ao princípio da legalidade e da reserva de lei, que ninguém poderá ser obrigado a fazer ou não fazer senão em virtude de lei. 

A lei que se fala é formal e material de modo que é ato normativo oriundo de reserva do Parlamento. 

Há, para o caso, uma supremacia e preeminência de lei formal. 

O princípio da legalidade eleva a lei à condição de veículo supremo da vontade do Estado.

A lei é uma garantia, o que não exclui, como bem se avisa, a necessidade de que ela mesma seja protegida contra possíveis atentados à sua inteireza e contra possíveis máculas que a desencaminhem de sua verdadeira trilha. 

III – A DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA E O PAPEL DOS DECRETOS 

Há a chamada discricionariedade técnica, quando, na lição de Oswaldo Bandeira de Mello (Princípios Gerais de Direito Administrativo, volume I, 1980, pág. 310), se tem: “o Legislativo delega ao Executivo as operações de acertar a existência de fatos e condições para a aplicação da Lei, os pormenores necessários para que as suas normas possam efetivar-se. Ela encontra corpo nas atividades estatais de controle. A lei da habilitação fixa os princípios gerais da ingerência governamental e entrega ao Executivo o encargo de determinar e verificar os fatos e as condições em que os princípios legais devem ter aplicação”. Trata-se da Administração explicar técnico-cientificamente os pressupostos de fato previstos em lei. 

Trata=se aqui para a Administração de explicar técnico-cientificamente os pressupostos de fato previstos em lei, como explicou Jorge Manuel Coutinho de Abreu(Sobre os regulamentos administrativos, Coimbra, Almedina, 1987, pág. 58). Essa atividade é operada por meio de aplicação de regras próprias de outro campo do saber, a biologia, a economia, a engenharia, a engenharia, a química, a física, a medicina etc), e não do direito. Lembro que os functores do direito são prescritivos, e os functores dessas outras ciências são descritivos.

Nessa linha ainda ensinou Jorge Manuel Coutinho de Abreu que a aplicação pelo Executivo “das regras técnico-científicas pode consubstanciar-se numa de duas operações: ou numa constatação pura e simples, indubitável ou exta dos referidos pressupostos de fato; ou numa avaliação técnica dos pressupostos, igualmente ancorada em critérios conhecidos a priori, mas mais elásticos e que, por isso, podem conduzir a apreciações variáveis num ou noutro ponto, a resultados não inicialmente coincidentes em todos os especialistas, portanto”.

Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello(Regulamento e Princípio da Legalidade, pág. 48), esses regulamentos são expedidos com base em disposições legais que mais não podem ou devem fazer senão aludir a conceitos precisáveis mediante averiguações técnicas, as quais sofrem o influxo de rápidas mudanças advindas do processo científico e tecnológico, assim como das condições objetivas existentes em dado tempo e espaço, cuja realidade impõe, em momentos distintos, níveis diversos no grau das exigências administrativas adequadas para cumprir o escopo da lei sem sacrificar outros interesses também por ela confortadas.

Portanto dizer se esta, essa ou aquela é atividade essencial para fins de funcionamento em pandemia, é matéria da Administração, do Executivo e não do Legislativo, via lei. A matéria se guia via decreto, por regulamento editado pelo Executivo, e de cunho regulamentador, para efetividade no âmbito de um poder de polícia.

IV – A NECESSÁRIA DIVISÃO DE PODERES

Sendo assim há afronta ao princípio magno, pétreo, da divisão de poderes, pondo em risco a teoria dos checks and balances.

A figura dos “Checks and Balances”, comumente denominada de sistema de freios e contrapesos, torna-se imprescindível para garantir essa independência e limitação dos Poderes. Como pode ser lido:

Eis então a constituição fundamental do governo de que falamos. Sendo o carpo legislativo composto de duas partes, uma prende a outra com sua mútua faculdade de impedir. Ambas estarão presas ao poder executivo, que estará ele mesmo preso ao legislativo. Estes três poderes deveriam formar um repouso ou uma inação. Mas, como, pelo movimento necessário das coisas, eles são obrigados a avançar, serão obrigados a avançar concertadamente.[ O Espírito das leis. Tradução Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005).

Afronta-se a um sistema de freios e contrapesos.

O Sistema de Freios e Contrapesos consiste no controle do poder pelo próprio poder, sendo que cada Poder teria autonomia para exercer sua função, mas seria controlado pelos outros poderes. Isso serviria para evitar que houvesse abusos no exercício do poder por qualquer dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Desta forma, embora cada poder seja independente e autônomo, deve trabalhar em harmonia com os demais Poderes.

É mister cuidado e prudência com relações a tais condutas que afrontam o sistema jurídico brasileiro para dar guarida a fortes interesses econômicos que costumadamente e difusamente se colocam nas esferas do poder público.

O que se quer dizer é que casos como esses, que já existem, tal como o exemplo da Câmara Municipal de Natal, são ofensivos à Constituição, na medida em que o Legislativo entra em área própria do Executivo, em afronta ao sistema dos freios e contrapesos, essencial para o princípio democrático da divisão de poderes.

*É procurador da República com atuação no RN aposentado.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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O prazo de execução de prisão preventiva

Conversão antecipada da prisão em flagrante em prisão preventiva

Por Rogério Tadeu Romano  

A prisão preventiva é espécie de prisão provisória que surge no transcorrer da persecução penal.

Assim, é possível que se faça o encarceramento do indiciado ou mesmo do réu, antes do marco final do processo.

É a prisão sem pena, a prisão cautelar, provisória ou processual, que milita no âmbito da excepcionalidade do que se lê do artigo 5º, LVII, da Constituição, observando-se que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

A prisão preventiva, que é um dos exemplos de prisão provisória, antes do trânsito em julgado da sentença, só pode ser decretada “quando houver prova de existência do crime e indícios suficientes de autoria”, como se lê do artigo 312 do Código Penal. Há de se comprovar a materialidade do crime, a existência do corpo de delito, que prova a ocorrência do fato criminoso, seja por laudos de exame de corpo de delito ou ainda por documentos, prova testemunhal.

A isso se soma como requisito à existência de “indícios suficientes de autoria”, que deve ser apurada em via de fumaça de bom direito.

Tal despacho que decretar a prisão preventiva, a teor do artigo 315 do Código de Processo Penal, deve ser fundamentado.

O certo é que a Lei 12.403/11 manteve os requisitos da prisão preventiva: prova da existência de crime (materialidade); indícios suficientes de autoria (razoáveis indicações da prova colhida); garantia da ordem pública; garantia da ordem econômica; conveniência da instrução criminal; garantia da aplicação da lei penal.

O juiz, a teor do artigo 311 do Código de Processo Penal, em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, poderá decretar a prisão preventiva, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. Na fase da investigação policial, não cabe ao juiz decretar, de ofício, a prisão preventiva, mas, sempre a pedido do Ministério Público, da autoridade policial, do assistente da acusação, do querelante.

As alterações havidas dizem respeito à legitimidade e oportunidade da decretação: a) somente o juiz pode decretá-la, de ofício durante o processo (não mais pode fazê-lo, como antes, durante a investigação; b) permite-se ao assistente da acusação requerê-la, o que antes não ocorria. Tal expediente praticamente esvazia a prisão preventiva durante o inquérito levando a necessidade de oportunizar a chamada prisão temporária, quando for o caso.

Daí porque a prisão preventiva está sujeita a prazo.

Para Eugênio Pacelli (Curso de Processo Penal, São Paulo, 2013), a jurisprudência construiu entendimento no sentido de que o prazo para encerramento da instrução criminal ocorreria após 81(oitenta e um) dias, atualmente, 86(oitenta e seis) dias de prisão, em flagrante ou preventiva, após o que seria possível a impetração de habeas corpus, fundado no excesso de prazo, no âmbito da Justiça Federal, à luz da Lei 11.719/08, prazo que pode chegar a 107(cento e sete) dias se houver prorrogação no prazo do inquérito.

Sempre que houver ilegalidade da prisão, cabe o relaxamento. Assim se há liberdade provisória, não estamos diante de prisão ilegal. Quero dizer que com o reconhecimento do relaxamento da prisão, com a soltura do preso, não haverá imposição a ele de restrições de direitos, pois é caso de anulação, não revogação, de ato praticado em violação à lei.

Da mesma forma, se há excesso de prazo na prisão preventivamente decretada, o tribunal, por via de habeas corpus ou mesmo de recurso nominado, deverá cassar a decisão, determinando o relaxamento da prisão, cuja continuidade seria ilegal.

O anteprojeto do Código de Processo Penal dispõe:

Quanto ao período máximo de duração da prisão preventiva, observar-se-ão, obrigatoriamente, os seguintes prazos:

I – 180 (cento e oitenta) dias, se decretada no curso da investigação ou antes da sentença condenatória recorrível, observado o disposto nos arts. 15, VIII e parágrafo único, e 32, §§ 2º e 3º;

II – 180 (cento e oitenta) dias, se decretada ou prorrogada por ocasião da sentença condenatória recorrível; no caso de prorrogação, não se computa o período anterior cumprido na forma do inciso I deste artigo.

  • 1º Não sendo decretada a prisão preventiva no momento da sentença condenatória recorrível de primeira instância, o tribunal poderá fazê-lo no exercício de sua competência recursal, hipótese em que deverá ser observado o prazo previsto no inciso II desteartigo.
  • 2º Acrescentam-se 180 (cento e oitenta) dias ao prazo previsto no inciso II desteartigo, incluindo a hipótese do §1º, se houver interposição, pela defesa, dos recursos especial e/ou extraordinário.
  • 3º Acrescentam-se, ainda, 60 (sessenta) dias aos prazos previstos nos incisos I e II desteartigo, bem como nos §§1º e 2º, no caso de investigação ou processo de crimes cujo limite máximo da pena privativa de liberdade cominada seja igual ou superior a 12 (doze) anos.
  • 4º Os prazos previstos nesteartigotambém se aplicam à investigação, processo e julgamento de crimes de competência originária dos tribunais.

Nessa linha de pensar, tem-se que as cortes europeias têm limitado o tempo a no máximo seis meses, mesmo no caso de suspeitos de terrorismo, fugindo do chamado “direito penal do inimigo”.

Certamente não se pode manter uma prisão preventiva diante da possibilidade do acusado, investigado, colaborar com a apuração da infração penal.

Assim, manter a prisão preventiva puramente para que se consiga uma confissão ou delação do réu ou investigado é exorbitar dos limites que são dados pela Constituição.

Distante disso é manter a prisão preventiva para a garantia da ordem pública. Este conceito não se limita a prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e de sua repercussão. Leve-se em conta decisão do Supremo Tribunal Federal (RTJ 124/1033) no sentido de que a conveniência da medida deve ser regulada pela sensibilidade do juiz à reação do meio ambiente à ação criminosa.

Argumente-se que, se é certo que a gravidade do delito, por si só, não basta à decretação da custódia provisória, não é menos exato que a forma de execução do crime, a conduta do investigado somada a outras circunstâncias provocam o clamor público, abalando a própria garantia da ordem pública. (RTJ 123/57; RT 535/257).

Na matéria, a Lei n. 13.964/2019, que deu nova redação ao caput do art. 316 do Código de Processo Penal e lhe acrescentou o parágrafo único, dispõe:

“Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.”

O dispositivo na reforma processual de 2019 tem claro objetivo de combater as “chamadas prisões alongadas”. Objetiva-se a revisão periódica das prisões preventivas, prática já adotada por outras legislações, como da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

No entanto, depois de exercido o contraditório e a ampla defesa, com a prolação da sentença penal condenatória, a mesma Lei Processual Penal prevê que “O juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, a imposição de prisão.

Assim, encerrada a instrução criminal, e prolatada a sentença ou acórdão condenatórios, a impugnação à custódia cautelar – decorrente, a partir daí, de novo título judicial a justificá-la – continua sendo feita pelas vias ordinárias recursais, sem prejuízo do manejo da ação constitucional de habeas corpus a qualquer tempo.

​A determinação do Código de Processo Penal (CPP) para que seja feita uma revisão, a cada 90 dias, da necessidade de manter a prisão preventiva é imposta apenas ao juiz ou ao tribunal que decretou a medida.

Com esse entendimento, a Sexta Turma, por unanimidade, negou habeas corpus em que a defesa pediu a revogação da prisão preventiva ao argumento de que o seu cliente estaria encarcerado há mais de um ano por causa do descumprimento da regra do CPP.

O entendimento que se deve ter é que a Lei 13.964/2019 – que acrescentou o parágrafo único ao artigo 316 do CPP – atribui expressamente ao “órgão emissor da decisão” a obrigação de revisar a necessidade de manutenção da preventiva a cada 90 dias, “sob pena de tornar a prisão ilegal”.

A decisão do STJ foi tomada no HC 589.544.

No mesmo sentido o AgRg no HC 569.701/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas Quinta Turma, julgado em 09/06/2020, DJe 17/06/2020.

Mas deve-se entender que tal prazo não é peremptório.

O prazo de 90 dias da revisão periódica da prisão preventiva – CPP, art. 316, p.u. – não é peremptório (STF, HC 184.137, Rel. Min. Edson Fachin, decisão monocrática de 08.05.2020; STJ, HC 584.992, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, decisão monocrática de 22.06.2020).

Na linha expressa pelo TJMG, no julgamento do HC 10000204792535000, DJ de 19 de agosto de 2020, tem-se que “não há que se falar em infringência ao artigo 316 , parágrafo único , do CPP , quando o Juízo a quo revisa a necessidade da medida dentro do período de 90 (noventa) dias, sendo certo que, após remeter os autos à Instância Revisora, sua jurisdição foi esgotada.” Ali se disse:

“A alteração legislativa promovida pelo “Pacote Anticrime” tem como intuito evitar a prolongação indeterminada e injustificada da medida cautelar extrema, o que poderia representar um cumprimento antecipado de pena, sendo uma afronta ao princípio constitucional da presunção de inocência, sendo certo que, no Estado Democrático de Direito, a liberdade é a regra.

Contudo, não se pode exigir que o Magistrado que decretou a prisão preventiva fique eternamente vinculado ao exercício de rever a necessidade da medida, mormente quando o feito se encontra em sede recursal, uma vez que restou esgotada a jurisdição da primeira instância.”

Em apreciação monocrática do HC 181.187 ED/SP, em 21/9/2020, o ministro Gilmar Mendes concluiu que a ausência da revisão prevista no artigo 316, parágrafo único, em que pese representar um direito do réu à reanálise da necessidade da prisão a cada 90 dias, não conduz ao afastamento imediato da segregação, “cabendo ao Poder Judiciário determinar sua pronta satisfação”.

Nessa mesma linha, no AgRg no HC 606.872/GO (15/9/2020), a 6ª Turma do STJ assentou que o prazo de 90 dias para reavaliação da prisão preventiva “deve ser examinado pelo prisma jurisprudencialmente construído de valoração casuística, observando as complexidades fáticas e jurídicas envolvidas, admitindo-se, assim, uma eventual e não relevante prorrogação da decisão acerca da manutenção da necessidade das cautelares penais”.

No entanto, em sentido diverso, o ministro Marco Aurélio entende configurado o excesso de prazo da prisão “ante a não constatação da existência de decisão posterior, na qual reiterada a necessidade da medida” (HC 179.932 MC/MS, j. 5.3.2020; HC 190.463 MC/SC, j. 9.9.2020), determinando a imediata expedição de alvará de soltura clausulado.

A isso se some a recente e polêmica decisão do ministro Marco Aurélio de dar liberdade provisória a preso acusado de tráfico de drogas e de conhecida periculosidade.

Já se entendeu aliás que os prazos processuais previstos na legislação pátria devem ser computados de maneira global e o reconhecimento do excesso deve-se pautar sempre pelos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade (art. 5º, LXXVIII, da CF), considerando cada caso e suas particularidades.

Antonio Ruiz Filho(Prisão preventiva e sua duração razoável) disse:

 “A sobredita revisão obrigatória, a cada 90 dias, da decisão que decretou a prisão preventiva, sob sanção de ilegalidade em caso de descumprimento, é de fulcral importância para reparar a deformidade recorrente e gravíssima de se permitir prisões cautelares por prazos abusivamente longos10, que na prática judiciária chegam a durar muitos meses ou até anos, com a complacência dos operadores do Direito, exceção feita aos advogados. Não é demasiado afirmar que prisão provisória longa é em si um contrassenso, por tudo podendo equiparar-se ao cumprimento de pena sem condenação definitiva. A provisoriedade da prisão preventiva impõe que seja rápida, breve, efêmera, precária.

A decisão revisional, “sempre motivada e fundamentada”, requer outros elementos implantados pela nova lei 13.964/19: a marcada excepcionalidade da prisão preventiva; a existência do perigo gerado pelo “estado de liberdade”; a verificação da subsistência dos motivos concretos que a justificam sob perspectiva atual (contemporaneidade); a impossibilidade de que suas circunstâncias permitam equipará-la à antecipação do cumprimento de pena; e que seja insuficiente a substituição por medidas alternativas à prisão.

O prazo de 90 dias estabelecido para a revisão obrigatória do decreto prisional cautelar, à vista de tudo isso, passa a ser o novo marco legal para a duração da prisão preventiva, ainda que possa ser mantida por igual prazo e, assim, sucessivamente, cumpridas todas as formalidades impostas pelas novas diretrizes da lei 13.964/19 e que passam a integrar o Código de Processo Penal.

O termo “revisar” (empregado no art. 316, parágrafo único, do CPP) é revelador. Não se realiza por mera chancela, manutenção desmotivada, uma simples confirmação protocolar, cumprimento automático de mera formalidade. A revisão impõe que sejam reexaminados, mediante despacho “motivado e fundamentado”, todos os elementos que suportam a prisão cautelar, como se fosse uma decisão primitiva. Não faria o menor sentido que sua prorrogação revisional fosse mera extensão da decisão anterior, à qual bastaria se reportar ou repetir.”

Ademais cabe observar que a atuação do juiz, dentro do sistema acusatório, não deve ser de ofício. Estará sempre presente a palavra do Parquet, por seu presentante nos autos, para que acentue a necessidade ou não da continuidade da dita prisão preventiva.

O que importa, dentro da discussão relatada, é que ditas prisões preventivas, como provisórias que são, a bem da instrumentalidade do processo, não se tornem satisfativas, como antecipação de mérito da medida final condenatória, como “longas prisões”, em detrimento do princípio impositivo constitucional da dignidade da pessoa humana.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

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O tratamento penal da mulher indígena

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Por Débora Veneral

A Resolução 287/2019 do Conselho Nacional de Justiça trouxe novas diretrizes e procedimentos quanto ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, a fim de melhor assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário. Essa proteção aos povos indígenas está em conformidade com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que em seu art. 10 afirma a necessidade de observância das características econômicas, sociais e culturais dos povos indígenas quando da aplicação de sanções penais, bem como a preferência a outros tipos de punição que não o encarceramento.

O CNJ editou, inclusive, uma cartilha com orientações a tribunais e magistrados para cumprimento da Resolução, em que se deu especial atenção à mulher indígena. Como regra, a aplicação de medidas penais contra mulheres deve privilegiar medidas não privativas de liberdade. Ressalte-se que as mulheres indígenas encarceradas representam apenas 1% (um por cento) da população carcerária feminina presa no Brasil de acordo com dados do Infopen (2018, 2ª ed.). Segundo o próprio CNJ, os casos envolvendo mulheres indígenas exigem da autoridade judicial o reconhecimento de que elas sofrem múltiplas formas de discriminação que ocasionam uma maior dificuldade de ter acesso a direitos, bem como para exercer plenamente sua defesa.

Ainda, são as mulheres as principais cuidadoras dos filhos, de idosos e de pessoas com deficiência, e seu encarceramento afeta, portanto, toda a comunidade indígena. Daí porque se recomenda que a prisão domiciliar pode ser aplicada para a mulher gestante, mãe ou responsável por crianças ou adultos com deficiência, na hipótese de decretação de prisão preventiva da mulher indígena. A comunidade indígena tem destacado papel, portanto, na aplicação da sanção penal. Até mesmo o acompanhamento da execução das mulheres indígenas beneficiadas pela progressão de regime será realizado em conjunto com a comunidade.

Além dessas medidas, a resolução garante que o tratamento previsto será dado a qualquer pessoa que se autodeclare como indígena, em qualquer fase do processo criminal ou na audiência de custódia. Além disso, em caso de autodeclaração como indígena, a autoridade judicial deverá indagar acerca da etnia, da língua falada e do grau de conhecimento da língua portuguesa, e as cópias dos autos do processo deverão ser encaminhadas à regional da Fundação Nacional do Índio – Funai mais próxima em até 48 (quarenta e oito) horas. Ainda, a identificação da pessoa como indígena, bem como informações acerca de sua etnia e língua por ela falada, deverão constar no registro de todos os atos processuais. Inclusive, em caso de necessidade, é garantida a presença de intérprete, preferencialmente membro da própria comunidade indígena.

Outra medida de equidade e respeito à cultura, às crenças, aos costumes e às tradições indígenas está na possibilidade de realização de perícia antropológica, que fornecerá subsídios para o estabelecimento da responsabilidade do indígena. Nela, se informará a qualificação, a etnia e a língua falada pela pessoa acusada, as suas circunstâncias pessoais, culturais, sociais e econômicas, a descrição dos usos, dos costumes e das tradições da comunidade indígena a qual ela se vincula e o entendimento da comunidade indígena em relação à conduta típica imputada, bem como os mecanismos próprios de julgamento e punição adotados para seus membros. Assim, o laudo antropológico deve conter a correspondência entre a conduta praticada e os costumes, crenças e tradições da comunidade indígena, de tal forma que a responsabilização de pessoas indígenas deverá considerar os mecanismos próprios da comunidade indígena a que pertença a pessoa acusada, mediante consulta prévia.

A Resolução CNJ 287/2019, portanto, reconheceu a importância de um tratamento diferenciado para os indígenas, em razão de suas especificidades culturais, com vistas a garantir igualdade dos povos indígenas no acesso à Justiça, bem como, teve o cuidado de dar o devido destaque ao papel das mulheres indígenas em suas comunidades para a continuidade e sobrevivência de seus povos.

diretora da Escola Superior de Gestão Pública, Política, Jurídica e Segurança do Centro Universitário Internacional Uninter.

 

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A mentira e o direito

 

Resultado de imagem para perjurio

Por Daniel Victor Ferreira

Sempre disse que há dois profissionais aos quais não se pode mentir de maneira alguma, o médico e o advogado, pois estão em jogo a sua saúde e a sua liberdade.

Uma sociedade baseada na mentira nunca será civilizada. O crime de perjúrio ilustra bem essa afirmação. Perjurar significar mentir sob juramento, ou seja, alguém que perante uma autoridade se compromete em dizer a verdade e acaba por mentir. A diferença existe entre os países nos quais o crime existe ou não em relação a parte de um processo judicial.

Enquanto no Brasil o réu pode mentir em juízo, nos Estados Unidos, por exemplo, o depoimento da parte é tomado como o de qualquer outra testemunha, inclusive com a obrigação de dizer a verdade. O caso mais comentado é o de Bill Clinton, que sob juízo negou ter mantido qualquer relacionamento com sua estagiária Monica Lewinski, o que depois comprovou-se mentiroso quando analisada cientificamente uma roupa de sua amante. O ex-presidente foi alvo de um processo de impeachment, sendo posteriormente absolvido.

No Brasil, entretanto, existe o crime de falso testemunho, disposto no art. 342 do Código Penal, aplicável àqueles que prestam compromisso de falar a verdade perante o juiz (testemunhas) e não o fazem. Ora, qualquer acusado em nosso sistema judicial (como em todos os outros derivados da Bill of Rights) já tem o direito de ficar calado, porque ainda assim teriam o direito de mentir?

Acredito que o Brasil apenas poderá crescer como país ao adotar o crime de perjúrio também para as partes. Quem não tem o compromisso de dizer a verdade numa audiência judicial dificilmente o fará fora dos fóruns judiciais. Essa ausência no direito local advém ainda do processo inquisitorial, do qual não deveríamos deter qualquer resquício.

Entretanto, tal qual como na história do “ovo ou da galinha”, não há como saber se uma sociedade cuja mentira é usual será aperfeiçoada com o crime de perjúrio ou apenas nas sociedades nas quais a verdade é preservada, como a americana, essa infração penal poderia ser utilizada. Afinal, não é incomum um advogado observar uma testemunha mentindo ao juiz, mesmo advertida por esse e diante de estar cometendo um crime. Porque a parte, que tem interesse direto na causa, não mentiria?

O fato é que dizer a verdade ou se esforçar para dizer a verdade faz parte da verdadeira revolução que esse país precisa para avançar rumo ao desenvolvimento: a ética.

*É advogado e ex-conselheiro federal da OAB.

 

 

 

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Estado de exceção permanente

Por Francisco Fonseca*

Desde a criação da Operação Lava Jato, e particularmente desde o golpe de 2016, em larga medida resultado do lavajatismo, o “jogo da política” – entendido como sistema partidário, alianças e disputas eleitorais, como busca, mesmo que historicamente problemática, da representação popular, entre outros aspectos –, em meio à relativa independência das instituições, vem sendo corroído a olhos nus.

Tal corrosão se expressa no fato insofismável de que a “política”, tal como a conhecíamos – no sentido acima – vem sendo substituída por grupos políticos que tomaram de assalto as instituições, a ponto de uma delas, o Poder Judiciário, tornar-se uma espécie de partido político, subdivido em outros em vista de suas ramificações. Isto é, cumpre “funções” de representação ou mesmo partidárias, entendidas aqui no sentido gramsciano de representação política de determinados grupos, porém efetivada por “agrupamentos não formais”.

Trata-se da “partidarização da Justiça”, que suplanta em muito a conhecida “judicialização da política”, uma vez que setores do Poder Judiciário (por exemplo, a referida Operação Lava Jato, a 13ª terceira vara de Curitiba, o TRF-4, o STF, além de setores do Ministério Público, entre outros) pautam sua atuação com fins eminentemente de poder, representando interesses econômicos, de grupos e frações de classes, partidários e internacionais, o que implica interceder no voto (isto é, na vontade) e na percepção popular, e sobretudo na representação política sem o escrutínio do voto, caso das instituições acima.

Instituições que formal e constitucionalmente deveriam garantir o funcionamento do Estado, sem se envolver no jogo da representação e das disputas políticas, campo a cargo do “sistema político”. Deve-se deixar claro não se tratar de visão idílica da política e das instituições, na medida em que essas últimas são também políticas e o Estado jamais foi/é “neutro”, a começar pelo fato de se tratar do Estado no capitalismo.

Trata-se de compreender que na chamada democracia liberal as instituições regulam as “regras do jogo”, com maior ou menor independência, mas minimamente permitem – dentro dos limites do capitalismo e das relações entre as classes e mesmo do contexto internacional – a expressão das correntes políticas que disputam, por plataformas distintas, o voto popular. Em resumo, mesmo com insuficiências estruturais, a vida política tem suas próprias regras, lógicas e relativa independência, naquilo que tem sido chamado de Estado de Direito Democrático no interior das democracias liberais.

Mas o jogo clássico da política tem tido crescentemente a concorrência das “instituições”, que deveriam, reitere-se – à luz dos princípios que regem o referido Estado de Direito –, estar acima dos interesses em disputa, uma vez que esses são historicamente representados pelos partidos políticos, que por sua vez se conectam, direta e indiretamente, com movimentos sociais, representações corporativas, segmentos da mídia, organizações não governamentais, e outras tantas formas de representação de interesses mais ou menos explícitos. Isso significa que as instituições formalmente estatais efetivamente “estão fazendo” política, de forma sorrateira, ilegal e ilegítima, usurpando completamente suas atribuições, como se sabe cabalmente sobre a Operação Lava Jato, expressão e símbolo da seletividade, da perseguição, da imoralidade pública, do patrimonialismo e do protofascismo.

Em outras palavras, o país vivencia, sobretudo desde 2016, o Estado de Exceção permanente, tendo como ponto de culminância a “eleição”, resultante da maior fraude política da história brasileira, de Bolsonaro. Tal excepcionalidade se evidencia desde a macropolítica até os “burocratas do nível de rua”, estimulados e encorajados a praticarem toda sorte de arbitrariedades a partir de interesses “particulares” e “grupais”, fundamentalmente antirrepublicanos.

A excepcionalidade vem se tornando “regra”, tal como na República de Weimar, a ponto de um país importante como o Brasil ter formalmente na presidência da República um chefe de milícia, com seus filhos e agregados atuando como chefetes de máfias do baixo clero. O caso Flávio Bolsonaro, apenas para citar um, é a expressão sintética desse perfil e modus operandi miliciano que está no poder no Brasil.

O conjunto de destruições e desestruturações perpetradas às instituições, aos trabalhadores e aos direitos humanos como um todo, o que inclui os de cidadania, desde 2016 e particularmente desde a ascensão do protofascismo bolsonarista, não tem obtido resposta suficiente das instituições. A própria figura de Bolsonaro, cujo mandato parlamentar infringiu por quase três décadas a regra mais elementar da democracia expressa na máxima “a democracia não tolera a intolerância”, não tendo sido impedida, expõe a fragilidade histórica de nossas instituições. Fragilidade essa levada ao paroxismo desde 2016, embora suas marcas sejam históricas: 1889, 1930, 1946, 1964, e de 2016, reitere-se, aos dias de hoje. Portanto, embora a “lógica da política” continue a operar, outra lógica – essencialmente distópica – opera paralelamente.

Em outras palavras, na lógica da política os partidos políticos continuam fazendo política (isto é, disputando o poder) à luz da representação e da dinâmica político/institucional/eleitoral; as eleições permanecem e se desenvolvem com seus rituais; a institucionalidade do regime democrático se mantém em funcionamento: notadamente o Parlamento como “lugar de debate” e o Poder Judiciário como instância recursal; os conflitos entre os grupos que representam visões de mundo e interesses distintos se mantém ativos; entre outros exemplos.

Contudo, essa institucionalidade formalmente democrática, isto é, voltada às garantias das regras do jogo, opera cada vez mais de modo meramente formal – embora haja espaços contraditórios para a “defesa da política” enquanto campo de disputa –, uma vez que partes significativas do Estado e de seus aparelhos atuam no plano da excepcionalidade, da instrumentalização política de órgãos do Estado (casos de setores da Polícia Federal, do Ministério Público, do STF e outros), retomando as características mais perversas da “República Velha”.

Nesse sentido, o Estado de Exceção age de maneira essencialmente política, produz fatos políticos em nome da “justiça” e da “lei”, derrogando direitos constitucionais (políticos, sociais e trabalhistas), desconsiderando os preceitos referentes aos direitos humanos, atuando em desacordo ao Estado laico e altera “resultados eleitorais”. Por vezes, os três poderes e as instituições deles derivadas confluem, levando ao paroxismo a “farsa democrática”, o que faz que as decisões tomadas escapem cada vez mais dos propósitos clássicos da política, isto é, o agir pautado pelas macrodiretrizes advindas da Constituição. Quando há disputas entre as instituições, por vezes, a defesa de princípios constitucionais ressurge – o que implica o tênue equilíbrio entre a derrogação do Estado de Direito Democrático ou sua defesa por interesses corporativos, ou políticos específicos, ou ainda por cálculo político.

Em outras palavras, o plano das regras do jogo político crescentemente está condicionado à posição situacional dos agentes institucionais perante os atores sociais. Exemplo maior é a prisão e soltura do ex-presidente Lula, uma vez que ambos os atos tiveram como móveis movimentos contraditórios, mas exógenos ao jogo democrático: no caso da prisão, o caráter persecutório ao PT e a Lula, não apenas para tirá-lo da disputa eleitoral, mas para estigmatizar as esquerdas e pavimentar o caminho para as direitas (Temer e depois Bolsonaro, como se viu) com suas pautas ultraliberais e antissociais que jamais seriam vitoriosas em disputas eleitorais cujas regras fossem as típicas do jogo eleitoral/democrático.

Claramente, como se sabe, os Estados Unidos estiveram/estão operando por meio de seus representantes no Brasil (Dalagnol, Moro, Temer, Bolsonaro e muitos outros). Mesmo no caso da libertação de Lula, as razões para tanto foram a tentativa de atenuar o lavajatismo/bolsonarismo (irmãos siameses) do que propriamente manter os princípios constitucionais. Afinal, o modus operandi da Lava Jato (“métodos inquisitoriais”) não apenas eram sobejamente conhecidos como, sobretudo, foram permitidos/acobertados pelo STF. Os exemplos são abundantes.

Em resumo, a vida política brasileira caminha na corda bamba entre a manutenção de mínimas regras democráticas e o Estado de Exceção, com clara preponderância para este. A partidarização (em sentido lato) dos aparelhos do Estado, cujas ações – com contradições, reitere-se –, ao intercederem no terreno da política, expressam a convivência esdrúxula entre democracia e autoritarismo, regras e exceção, política e arbítrio.

Logo, o jogo político/institucional/eleitoral se vê imiscuído à partidarização dos aparelhos de Estado (polícia, Ministério Público e Poder Judiciário), que por seu turno se ramificam em setores do Parlamento (partidos de direita, com PSL à frente) e inteiramente ao Executivo, tomado por uma estranha combinação entre milicianos, fundamentalistas religiosos, ultraliberais rentistas, grandes corporações nacionais e estrangeiras, militarismo selvagem e toda sorte de “elite de rapina”.

Essas duas lógicas, ou planos, convivem num hibridismo inédito que necessita ser compreendido para se repensar (e refazer) o próprio vocabulário político. Afinal, o que significam conceitos como democracia, representação, direitos humanos/sociais/trabalhistas, Estado laico, presidencialismo de coalizão, entre tantos outros?

A possibilidade de comunicação direta com milhões de usuários de redes sociais de forma inteiramente desonesta, cooptando grupos sociais vulneráreis, sem que haja qualquer meio fiscalizatório/punitivo eficaz, é mais um ingrediente importante dessa excepcionalidade em meio às regras democráticas cada vez mais apenas formais.

Mas a complexidade distópica implica considerar que há uma terceira lógica, referente ao papel da cleptocracia ultraliberal, rentista, miliciana, fundamentalista, militar e antipopular, uma vez que atua (esse consórcio) em meio a determinados processos econômicos que vinham se desenvolvendo (casos da desindustrialização e do rentismo), mas que confluem com outros que passaram a se desenvolver de forma aguda (casos da desestatização, da desnacionalização e da desconstitucionalização dos direitos sociais).

Tal cenário é levado ao limite pelas “cleptoelites” que estão no poder, pois seu projeto depredatório implica a liquidação da soberania econômica/política nacional e popular, a revogação da ciência e tecnologia nacionais, a destruição das instituições democráticas e a derrogação dos direitos sociais e trabalhistas. Esse projeto é uma das exigências fundamentais do capitalismo contemporâneo, representado economicamente pela quarta revolução industrial, politicamente pelas direitas em perspectiva internacional e ideologicamente pela manipulação ostensiva das “mentes e dos corações” de grupos sociais por meio das redes sociais e do universo digital (tal como demonstrado por E. Snowden e F. Assange e, em oposição, S. Bannon).

Os Projetos de Emenda Constitucional, as Medidas Provisórias e os Projetos de Lei provindos do bolsonarismo são, em verdade, elaborados por grandes interesses empresariais e rentistas sintetizados pela figura taciturna e cínica, em termos ético/políticos, de Paulo Guedes (por seu turno ligado a think tanks internacionais e nacionais ultraliberais). Nesse sentido, Bolsonaro e seu entorno tosco, como o próprio, são apenas os instrumentos bizarros das elites internacionais, notadamente sediadas nos EUA, mas com grandes conexões nacionais, e profundamente articuladas ao aparelho de Estado do imperialismo contemporâneo.

Tornar estruturalmente débil, em vários sentidos, um país importante como o Brasil, levando ao limite os processos de desnacionalização/desestatização/desconstitucionalização/desindustrialização/financeirização/pauperização parece ser o objetivo dessas elites predatórias tão bem retratadas por Ladislau Dowbor em A era do capital improdutivo (Ed. Outras Palavras, 2017). Pretende-se fazer com que a mão de obra brasileira seja essencialmente competidora com outros países, como Paquistão, Índia, Colômbia, México e tantos outros espalhados por quase todos os continentes, em termos de baixa qualificação, baixos salários e ausência de direitos.

Em outras palavras, um “mundo uberizado” à grande massa dos pobres, e a vida no exterior às elites, também enclausuradas em condomínios de altíssimo luxo no Brasil. Do ponto de vista do capital, a destruição do que havia de nacional (infraestrutura ligada à construção civil e ao petróleo) pela Lava Jato representou o início de um processo levado adiante por Temer e agora por Bolsonaro.

Tais processos acima narrados compõem a lógica trágica do capitalismo neoimperialista contemporâneo (também chamado de “necropolítica”), completamente desinteressado na democracia política e social, que as vê como óbices. Os governos petistas, por mais moderados que tenham sido, representaram óbices ao canibalismo ultraliberal, e por isso foram afastados, tal como, de forma violenta, Evo Morales na Bolívia.

No caso brasileiro, nada disso seria possível sem a participação ativa (atuando e/ou omitindo) das instituições que “roubaram/roubam” o voto dos brasileiros, notadamente os mais pobres, incutindo-lhes a crença de que o “problema do Brasil era a corrupção do PT”. É claro que partidos políticos, como o direitista PSDB, e a grande mídia, contribuíram fortemente para tanto, mas num cálculo suicida, como se pode observar.

Portanto, pensar e fazer política no Brasil contemporâneo implica exame profundo do Estado de Exceção (tal como apontado por G. Agamben), de sua relação contraditória com o que resta das instituições democráticas, e do papel do capitalismo internacional no Brasil.

A tarefa é árdua e exige a capacidade de repensar nossa própria forma de pensar a política, assim como sua relação com o capitalismo. Sem isso estaremos fadados a sermos pautados pela direita, tal como vem ocorrendo no Brasil, com resultados trágicos para o presente e para o futuro da maioria esmagadora dos brasileiros e do Brasil como Nação!

Por fim, tal movimento implica compreender a subversão conceitual que tais processos distópicos representam para, dessa forma e à luz de Maquiavel, “entender a realidade para mudá-la”.

*É professor de ciência política na FGV/Eaesp e na PUC/SP.

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Inteligência Artificial e o Direito: o que está por vir

Por Ulisses Augusto Bittencourt Dalcól*

O Direito, como conhecemos hoje, é uma pequena evolução daquele sistema que já vinha de um bom tempo. O papel, o processo e os procedimentos foram utilizados até recentemente, tornando a Justiça lenta, abarrotada e ineficaz.

O peticionamento era burocrático, complexo, ineficiente e demorado, pois havia o deslocamento do advogado até o juízo onde deveria protocolar sua petição e aguardar sua distribuição.

Os processos eram, então, remetidos aos cartórios que os distribuíam em prateleiras e cada um tinha um sistema de identificação de notas, petições e processos aguardando conclusão.

Buscando dar celeridade é que foi introduzida a primeira mudança tecnológica no sistema legal brasileiro, em 2006, com o advento da Lei n.º 11.419, que dispõe sobre a informatização do processo judicial. Essa informatização foi debatida e introduzida com o único propósito de acelerar os processos, algo que não deu muito certo, pois vale lembrar que os procedimentos ainda são os mesmos.

Foi uma boa ideia, mas que deixou muitos colegas para trás, com tribunais adotando critérios e métodos diferentes de acesso, sistemas complexos e com muitos erros, sendo esse início um marco para separar os advogados que abraçaram a tecnologia, daqueles que perdiam espaço nessa nova realidade. Aqui está a verdadeira função da capacitação, que é preparar não para o agora, mas para o futuro.

O que vem se falando muito é da Inteligência Artificial e como ela pode ser útil ao Direito. Mas ninguém aponta um caminho ou aprofunda o tema, muito pelo desconhecimento, muito por interesse próprio.

Claro que a IA pode substituir, hoje, tarefas simples; já existem outras, um pouco mais complexas que podem substituir um advogado, por exemplo. Veja o sistema criado pela empresa de Israel, LawGeex. Ele é um sistema de revisão de contratos, sem qualquer interação humana ele determina se um contrato está de acordo com as diretrizes de sua empresa. Reduz custo e tempo para um escritório. Esse é um excelente exemplo de IA em simbiose com o Direito.

Mas, e pensando mais a frente, se houver um sistema como esse que possa oferecer argumentos, interagir com juízos, oferecer cenários ilimitados a premissas? É possível? Sim. Evidente que tudo tem um certo risco em ser adotado, em especial com a tecnologia de adulteração de fotos e vídeos aumentando e chegando a perfeição em alguns anos.

Tudo isso é relacionado ao Direito, podemos estar à frente de provas lícitas e ilícitas que poderão ser analisadas por um software que oferece argumentos para um júri ou juiz. Como determinar a idoneidade desses fatos? Tudo isso traz novos desafios à IA e sua adoção no Direito.

Há um projeto da IBM o “Project Debater”, nele o computador ouve um argumento humano e procura, através de milhares de ciclos e cálculos, rebater esse argumento com a geração de um novo. Sim, algo parecido como nós advogados, procuradores, promotores e juízes, ou qualquer pessoa faz durante um debate, análise ou conversa.

Não é preciso esperar o futuro para ver a Inteligência Artificial em uso em cortes pelos Estados Unidos. Em alguns estados as audiências que tratam de fiança, o juiz recebe o resultado de uma pontuação baseada no risco de fuga do condenado, o perigo oferecido à sociedade se o mesmo estiver nas ruas, além de outros fatores, podendo fundamentar sua decisão entre determinar um valor para a medida ou mesmo sobre a possibilidade do deferimento dela.

A Inteligência Artificial é apenas uma das mais variadas tecnologias a dispor do Direito e estar preparado para elas é uma necessidade para aqueles que querem se destacar e ter uma carreira de sucesso no Direito, seja no Brasil, seja pelo mundo.

*É Advogado

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Tá lá um corpo estendido no chão! É a filigrana! É a Constituição!

Por Lenio Luiz Streck*

Tomando café da manhã no domingo, detalhava a Rosane, minha esposa, os últimos diálogos publicados pela Folha e Intercept. Lia, da tela do celular, o diálogo de Deltan com seu colega Andrey, que lhe alertara acerca da ilegalidade dos grampos telefônicos e da ilegalidade da divulgação da conversa entre Lula e Dilma, naquele fatídico dia 16 de março de 2016. Deltan diz, então:

“Andrey, no mundo jurídico concordo com você, é relevante. Mas a questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é a política”.

Respondeu-me Rosane, sorvendo um gole da rubiácea que fumegava: Deltan agiu como o médico que abusa dos pacientes; ele abusou do o Estado de Direito. Perfeita a análise da bela Rosane. Um agente político do Estado, detentor das garantias máximas da magistratura, comporta-se como um militante político. Um militante político apaixonado pela causa. Disposto a tudo.

Para ele, a Constituição, que jurou defender quando assumiu o nobre cargo de Procurador da República, é filigrana. Aliás, Dallagnol só conseguiu permanecer como Procurador com decisão judicial, porque prestou concurso fora dos pressupostos legais – ou seja, já começou mal, sendo salvo por uma tese que hoje é rejeitada no STF, o “fato consumado”.

Filigrana: coisa sem importância, pormenor, minúcia. Esse é conceito que Deltan tem da Lei Maior. É isso que Deltan pensa do Direito brasileiro. Mais não precisa ser dito. Estou escrevendo um dicionário de direito constitucional e terei que colocar esse novo conceito, que já fora usado por Zélia Cardoso, quando lhe perguntaram sobre o congelamento da poupança, em 1989: a Constituição? Ah, isso é filigrana.

Aliás, filigrana é palavra comum nos diálogos. Nas conversas reveladas no dia 8.9.2019, os procuradores Januário e Carlos Fernando também consideram o Direito apenas filigrana. Pensemos então: como acreditar na Lava Jato se os acusadores consideram o Direito uma filigrana?

Pior é que, mesmo com tantas evidências, os procuradores e Moro continuam justificando tudo o que fizeram. Sem autocritica. Sem nenhuma vergonha.

Um agente político do Estado que desdenha da morte de familiares do réu e que chama o réu de “9”, fazendo chacota (rs, na mensagem) da falta de um dedo do ex-Presidente, o que dizer disso? Será que isso não é “parcialidade chapada”?

Pergunto: O que mais precisa vir à tona para colocar luz – e justiça – nessa conspiração (os diálogos mostram exatamente isso: uma conspiração) que envolveu o afastamento do ex-Presidente do cargo de Chefe da Casa Civil (os diálogos mostram que a Força Tarefa e Moro esconderam diálogos), da condução coercitiva e das ações penais?

Nossas autoridades vão dizer que tudo é normal? Que vergonha que sinto. Quase trinta anos de Ministério Público e tenho de ver alguns membros fazerem isso com a Instituição que a Constituição encarregou de garantir o Estado democrático, os direitos de todas as pessoas, inclusive os réus.

Participei dos preparativos para a Constituinte. Estava ingressando no Ministério Público, então. Os constituintes fizeram um ótimo trabalho. Colocaram o Ministério Público como algo à parte, como que a homenagear aquele que considero patrono da instituição, Alfredo Valadão (quem escreveu sobre isso na década de 50 do século passado), cujo mantra recitei na minha prova de tribuna, verbis:

o MP é instituição que, para além dos Poderes tradicionais, deve defender a sociedade, denunciando abusos, vindos deles de onde vierem, inclusive do próprio Estado (leia-se, o próprio MP e o Poder Judiciário).

Pois é. E hoje descobrimos que o MP agiu como militante político. Confessadamente conspirador. Quem diz que o Direito não importa conspira contra a democracia e contra o rule of law. E não venham dizer que não reconhecem os diálogos. Uma Procuradora, envergonhada, já pediu desculpas por ter ofendido a honra dos familiares mortos do ex-Presidente.

Há algo mais a dizer? O que diriam os médicos do Conselho de Medicina, depois de verem vídeos em que médicos abusaram de pacientes? Na alegoria, pergunto: o que dirão os juristas e as autoridades judiciárias e do MP diante das imagens de abuso do Estado de Direito reveladas (mais uma vez) pela Folha de São Paulo-Intercept?

Tá lá um corpo estendido no chão… (é de uma música famosa e eternizada no bordão do narrador Januário de Oliveira, quem a repetia quando um jogador estava deitado, esperando a maca – quem olhar o vídeo, verá a narração de Januário – Deltan é o zagueiro quem faz a falta!).

É a filigrana…quer dizer, a Constituição…que está lá estendida no chão.

Deltan conseguiu provar, em uma frase, que há dois mundos: o do direito e o da política. Para ele, vale mesmo é o da política. Vale tudo. Tudo vale. Os fins justificam os piores meios.

*É jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados

 

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Herval Sampaio se torna colaborador da Academia Cearense de Direito

Herval Sampaio

O juiz Herval Sampaio Junior se tornará foi indicado para ser sócio-correspondente da Academia Cearense de Direito entidade que será instalada no próximo dia 15 em Fortaleza.

O magistrado integra um rol de 16 sócios-correspondentes de várias partes do mundo. “A escolha foi efetuada com base na produção intelectual dos profissionais, que assim, se distinguiram no mundo acadêmico”, diz a carta-convite enviada estava semana.

Nota do Blog: mais do que merecido esse reconhecimento. É inegável o esforço feito por Herval para popularizar o direito.