Por Rogério Tadeu Romano*
Observo o que acentuou a Folha, em editorial, no dia 27.8.24:
“Vai-se mais de ano e meio do pleito de 2022 e da saída do presidente que desafiava instituições. Para o ministro Alexandre de Moraes e colegas do Supremo Tribunal Federal, no entanto, é como se o período anterior ainda vigorasse, a menos como pretexto para manter-se a concentração anômala de poder no magistrado e na corte.
Essa má impressão ficou reforçada pela abertura de um novo inquérito por Moraes —de ofício, isto é, sem ter sido provocado pelo Ministério Público, como reza o protocolo civilizatório e a Carta— em que ele figura como interessado, delegado, promotor e juiz.
Trata-se de uma resposta do ministro do STF à publicação, por esta Folha, de diálogos envolvendo assessores de seus gabinetes no Supremo e no Tribunal Superior Eleitoral indicando que, no mínimo, havia pouquíssima formalidade ao lidar com alvos de investigação que seriam sancionados por Moraes com medidas de força.”
Como noticiou o portal Zero Hora, em 21.8.24, “por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a Polícia Federal (PF) abriu um inquérito para investigar a fonte do vazamento das mensagens que indicam o trânsito direto entre auxiliares de seu gabinete e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no curso de investigações sobre bolsonaristas.”
Quando um magistrado ou o tribunal tem conhecimento de crimes sujeitos a ação penal pública deve enviar as peças necessárias ao Parquet, a teor do artigo 40 do CPP. Trata-se de ato de ofício.
Ademais, não cabe a ele abrir inquérito de ofício.
Estamos diante do sistema acusatório que homenageia o devido processo legal.
Tem-se o artigo 40 do CPP:
Art. 40. Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia.
Como expôs Guilherme de Souza Nucci ( Código de processo penal anotado, 10ª edição, pág. 150) havendo conhecimento do fato e da representação extrai o magistrado cópias dos autos e remete ao Ministério Público para as providências cabíveis. No caso de delitos de ação pública incondicionada, os juízes e tribunais adotarão tal conduta independente de contarem com a representação da vítima.
Ainda nos ensinou Nucci (obra citada, pág. 160) que não se pode considerar a remessa das peças, feita por juízes ou tribunais, ao Ministério Público, em cumprimento ao disposto no art. 40 do CPP, como ato abusivo, não configurando constrangimento ilegal, sanável por habeas corpus.
Foge o sistema acusatório, adotado pela Constituição-Cidadã de 1988, do sistema inquisitório, caracterizado pela inexistência de contraditório e de ampla defesa, com a concentração das funções de acusar, defender e julgar na figura única do juiz, e pelo procedimento escrito e sigiloso com o início da persecução, produção da prova e prolação da decisão pelo juiz.
Nos inquéritos policiais em geral, não cabe a juiz ou a Tribunal investigar, de ofício, o titular de prerrogativa de foro.
Cito precedentes: INQ no 149/DF, Rel. Min. Rafael Mayer, Pleno, DJ 27.10.1983; AgR 1.793/DF”INQ no 1.793/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, Pleno, maioria, DJ 14.6.2002; ED 1.104/DF” PET – AgR (AgR) – ED no 1.104/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno, DJ 23.5.2003; PET no 1.954/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, Pleno, maioria, DJ 1º.8.2003; PET (AgR) no 2.805/DF, Rel. Min. Nelson Jobim, Pleno, maioria, DJ 27.2.2004; PET no 3.248/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, decisão monocrática, DJ 23.11.2004; INQ no 2.285/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, decisão monocrática, DJ 13.3.2006 e PET (AgR) no 2.998/MG, 2ª Turma, unânime, DJ 6.11.2006.
Destaco que o STF ao julgar na ADi nº 5104/DF, um dispositivo de um ato baixado pelo TSE (Resolução nº 23. 396), que, em seu art. 8º, determinava que nenhum investigação, salvo flagrante, poderia ser iniciada sem a prévia determinação da justiça eleitoral, entendeu por sua inconstitucionalidade. Naquela decisão, o ministro Roberto Barroso disse que a Constituição de 1988 fez uma opção inequívoca pelo sistema penal acusatório. Disso decorre uma separação rígida entre, de um lado, as tarefas de investigar e acusar e, de outro, a função propriamente jurisdicional. Além de preservar a imparcialidade do Judiciário, essa separação promove a paridade de armas entre acusação e defesa, em harmonia com os princípios da isonomia e do devido processo legal.
Porém, no julgamento sobre a constitucionalidade dos atos contra o Poder Judiciário, o Plenário, por maioria, julgou improcedente pedido formulado em arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), em que se discutia a constitucionalidade da instauração de inquérito pelo Supremo Tribunal Federal (STF), realizada com o intuito de apurar a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e atos que podem configurar crimes contra a honra e atingir a honorabilidade e a segurança do STF, de seus membros e familiares. Por conseguinte, a Corte declarou a constitucionalidade da Portaria GP 69/2019, que instaurou o referido inquérito, e a constitucionalidade do art. 43 (1) do Regimento Interno do STF (RISTF), que lhe serviu de fundamento legal ( Informativo 981).
Nesse contexto, o colegiado afirmou que o art. 43 do RISTF pode dar ensejo à abertura de inquérito, contudo, não é e nem pode ser uma espécie de salvo conduto genérico, tornando-se necessário delimitar seu significado. Isso porque a referida regra regimental trata de hipótese de investigação, e deve ser lida sob o prisma do devido processo legal; da dignidade da pessoa humana; da prevalência dos direitos humanos; da submissão à lei; e da impossibilidade de existir juiz ou tribunal de exceção. Além disso, deve ser observado o princípio da separação de Poderes, uma vez que, via de regra, aquele que julga não deve investigar ou acusar. Ao fazê-lo, como permite a norma regimental, esse exercício excepcional submete-se a um elevado grau de justificação e a condições de possibilidade sem as quais não se sustenta.
Lembro que, na época, o ministro Marco Aurélio entendeu que a portaria foi editada com base no art. 43 do RISTF. Ocorre que a Constituição Federal de 1988, ao consagrar sistema acusatório, não recepcionou o referido artigo do RISTF. Pontuou que, em Direito, o meio justifica o fim, jamais o fim justifica o meio utilizado.
Nos julgamentos não se pode prescindir de imparcialidade do juiz.
Como acentuou Merval Pereira, em artigo para o Globo, em 15.8.24, “O poder corrompe”:
“O mesmo plenário do Supremo que se serviu de gravações ilegais de procuradores da Lava-Jato para condenar o então juiz Sergio Moro vê-se agora às voltas com outras mensagens que colocam o ministro Alexandre de Moraes no meio de uma crise política que pode desencadear um processo de impeachment contra ele no Senado, onde já há o número de assinaturas necessário para abertura.
O tamanho da reação do Supremo indica o tamanho da crise. Como sempre, há opiniões divergentes. Mas, se os dois assessores — juiz instrutor do gabinete do ministro, Airton Vieira, e Eduardo Tagliaferro, chefe do setor do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que investiga desinformação — revelam preocupação de ser descobertos, afirmando que a atitude deles estava muito “escancarada”, e chegam a sugerir inventar um e-mail para fingir que a denúncia veio de um anônimo, e não de Alexandre de Moraes, é claro que aí tem alguma coisa errada. Ninguém inventou esse questionamento, foram os próprios assessores do ministro que o criaram.”
Data vênia, e com o devido respeito, há nulidade no inquérito aberto de ofício acima noticiado, pois afronta o sistema acusatório e o devido processo legal.
Não cabe ao magistrado, ao mesmo tempo, em atos processuais, exercer o papel de juiz e de órgão investigador e ainda mais interessado, por absurdo.
*É procurador da República aposentado com atuação no RN.
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