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Voos no Aeroporto de Mossoró viram caso de Procon e tribunal

O que seria solução para muitas pessoas que escolhem viajar de avião com o conforto de sair e desembarcar na própria cidade onde mora virou um motivo mais para stress em Mossoró.

É caso para Procon, para ser benevolente nas palavras.

A Voepass que opera linhas que levam e trazem passageiros de Natal e Fortaleza para Mossoró, numa parceria com a Latam, decidiu fazer o seus clientes de palhaços.

Na sexta-feira, um grupo de passageiros foi surpreendido com a notícia que não embarcariam. Foram vendidas 68 passagens e na hora do voo estava disponível um avião com capacidade menor que o anunciado.

Eu dei “sorte” neste dia e viajei num avião com ar-condicionado defeituoso. As reclamações a respeito do calor foram do começo ao final do trajeto.

No sábado, aqui vai mais um testemunho pessoal, eu estava tentando fazer o check-in e não conseguia. Conferi o e-mail e não tinha qualquer mensagem da Voepass nem da Latam confirmando ou cancelando o voo.

Liguei para a Voepass e a informação foi a de que meu nome foi retirado da lista e que eu resolvesse com a Latam que me vendeu a passagem. A atendente não informou que o voo estava cancelado e jogou a responsabilidade do nome retirado na empresa parceira.

Entro em contato com a Latam e eles forçam para o assunto ser tratado no WhatsApp. Foram três atendimentos entre sábado e domingo. Um mais demorado que o outro e cheio de informações imprecisas. Para se ter ideia da confusão a atendente informou que o voo estava cancelado e em seguida me colocou no voo cancelado. Parecia que queria ganhar tempo.

Mas nada de conseguir fazer o check-in. Eu que tinha viajado a lazer passei boa parte do show em que estava tratando do meu retorno.

Só no domingo tive a certeza de que o voo estava cancelado e ofereceram como alternativa ir para Fortaleza e depois para Mossoró. A atendente fez o check-in do primeiro trecho e mentiu dizendo que só poderia fazer o do segundo presencialmente na capital do Ceará.

Estava clara a enrolação. Logo percebi que ao chegar em Fortaleza seria colocado em um carro para Mossoró. Já no Aeroporto de São Gonçalo uma funcionária da Latam me informou que o segundo voo estava cancelado e que teria que sair da área de embarque para fazer um novo procedimento para aquisição de passagem para Fortaleza e de lá pegar um uber para Mossoró.

Mais perda de tempo.

Tudo isso sem ser sequer formalmente informado via e-mail, uma tremenda falta de respeito. Em vez de chegar em casa às 11h25, cheguei por volta das 16h.

Enquanto isso no Aeroporto, a Azul Linhas Aéreas, que vinha operando sem problemas também aprontou cancelando o voo que estava lotado.

Entrei em contato com uma fonte que trabalha no Aeroporto de Mossoró. Segundo ela os cancelamentos não fazem sentido porque a demanda pela Voepass aumentou depois dos problemas na BR 304 e a linha com Fortaleza sempre esteve cheia. Já o voo da Azul para Recife estava lotado e não havia qualquer problema de tempo que justificasse colocar os passageiros num transporte terrestre para nove horas de estrada.

Resta a mim e os outros desrespeitosamente prejudicados buscar os direitos no judiciário.

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Os deputados que votaram para soltar mandante do assassinato de Marielle e a normalização do absurdo

A Câmara dos Deputados decidiu manter a prisão de Chiquinho Brazão (sem partido/RJ) por 277 x 129. A votação foi apertada porque se tem 21 votos a menos o suspeito de mandar matar a vereadora Marielle Franco em 2018 seria libertado.

Na bancada do Rio Grande do Norte três deputados foram a favor de soltar Brazão: Sargento Gonçalves (PL), General Girão (PL) e Paulinho Freire (União). Os dois primeiros a gente espera isso mesmo porque são bolsonaristas raiz. O terceiro é uma decepção não pelos gestos recentes, mas pelo conjunto de sua história política com status de moderado.

Paulinho decidiu radicalizar para ter o voto bolsonarista em Natal esquecendo-se que para vencer a eleição de prefeito de Natal precisa de 50% + 1 dos votos válidos e Natal rejeitou Jair Bolsonaro (PL) nas eleições presidenciais de 2022.

A dificuldade em manter a decisão do ministro Alexandre de Moraes dá uma ideia do quanto o absurdo foi normalizado no Brasil com a ascensão do bolsonarismo.

Desde o início o bolsonarismo demonstrou desprezo pela morte de Marielle. Afinal de contas é uma mulher negra, LGBT e que desceu o morro para fazer política no asfalto. Tudo que um reacionário mais detesta. Como não podem dizer isso abertamente, apelam para subterfúgios que não param em pé como a defesa da constituição, um contrassenso em se tratando de bolsonarismo, que tem no golpismo um de seus pilares.

O Brasil pós-bolsonarismo abraçou a normalização do absurdo em nome de uma suposta imparcialidade que no fundo pinta como concordância envergonhada. O problema é que o tempo vai passando e mais gente vai perdendo o constrangimento em se alinhar com o absurdo.

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A morte de Vladimir Herzog

Por Rogério Tadeu Romano*

Segundo o portal de notícias da CARTACAPITAL, em 3.4.24, a  Comissão de Anistia aprovou  o reconhecimento da condição de anistiada política de Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto pela Ditadura Militar brasileira.

A decisão do colegiado admite que o Estado perseguiu Clarice e sua família durante o regime militar em razão do movimento liderado por ela para esclarecer as circunstâncias da morte do marido.

A Comissão ainda assegura a Clarice o direito a uma reparação econômica, que deverá ser paga pela União, correspondente ao período de 25 de outubro, data da morte de Herzog, até 5 de outubro de 1988, não ultrapassando o limite de 100 mil reais, segundo ainda informou o portal de notícias da CARTA CAPITAL.

A execução do jornalista Vladimir Herzog por agentes que serviam a ditadura militar que se instaurou no Brasil, em 1964, foi um dos vários bárbaros acontecimentos ocorridos naquele triste período da vida brasileira.

O governo federal publicou no Diário Oficial da União a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), sediada em Washington (EUA), que condenou o Estado brasileiro pelo assassinato, sob tortura, do jornalista Vladimir Herzog por agentes do DOI-Codi em São Paulo, em 25 de outubro de 1975.

A portaria assinada pelo ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, foi divulgada cinco anos e meio depois da determinação do tribunal. Além da publicação e reconhecimento do governo brasileiro, a sentença determina que o Estado adote medidas para que “se reconheça, sem exceção, a imprescritibilidade das ações emergentes de crime contra a humanidade”. Há ainda a ordem de pagamento de US$ 180 mil à família de Herzog.

O juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª Vara dos Registros Públicos, em São Paulo, mandou retirar da certidão de óbito do jornalista Vladimir Herzog, que morreu, em 1975, a informação de que ele teria se suicidado. O documento passou a atribuir o falecimento a ¨lesões e maus-tratos no extinto DOI-CODI¨.

A retificação do Registro Civil das Pessoas Naturais é um processo destinado a restabelecer a verdade do conteúdo dos assentos inerentes aos atos do Estado Civil, desfazendo o erro de fato ou de direito, suprindo omissão, que seja produzida por declarações erradas ou deficientes.

Lembro o eminente Serpa Lopes para quem constitui um ponto de grande interesse social a identificação completa do registro dos atos do Estado Civil com os fatos que o motivarem. Isso porque as declarações exaradas no Registro Civil devem revestir-se de toda precisão e terem fidelidade com os fatos nele mencionados.

No caso de Vladimir Herzog tem-se que o motivo de sua morte não foi o suicídio, como antes se informava na sua certidão de óbito.

Entendeu-se que o laudo pericial que deu azo a conclusão anterior se revelou incorreto, reconhecendo-se que não se comprovou o suicídio, impondo-se a retificação do atestado de óbito.

A Justiça atendeu à solicitação da Comissão Nacional da Verdade, que tem a atribuição de esclarecer as violações de direitos humanos durante a ditadura militar, em investigação que foi instaurada a pedido da viúva Clarice Herzog.

Intimado a “prestar esclarecimentos”, o diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, Vladimir Herzog, apresentou-se no dia 25 de outubro de 1975 ao DOI-Codi (Destacamento de Operações e Informações-Centro de Operações e Defesa Interna) subordinado ao comando do II Exército, de São Paulo. Pouco depois, o órgão divulgava sua versão para a morte do jornalista, enforcado dentro de uma cela: suicídio. O caso abriu uma crise no Governo Ernesto Geisel, que planejava a abertura e a extinção da tortura e do assassinato de opositores do regime militar, que vigorava desde 1968.

A versão de suicídio foi, na verdade, uma mentira.

Vale salientar que o rabino Henry Sobel determinou que o corpo de Herzog fosse enterrado no centro do cemitério judaico, para marcar a posição contrária à tese do suicídio de Vlado. O fato mobilizou não apenas importantes setores da oposição, mas até o conservador empresariado paulista.

Em 1978, em um processo aberto pela família Herzog, uma sentença judicial condenou a União como responsável pela prisão, tortura e morte do jornalista, desfazendo a falsa versão de suicídio divulgada em 1975 no relatório do IPM do II Exército, comandado pelo general Ednardo D’Ávila Mello. Em junho de 2013, a Comissão da Verdade decidiu questionar a versão de suicídio e abrir novas investigações.

Discute-se no presente artigo a incidência da prescrição com relação aos pedidos de condenação da União Federal no pagamento de indenização dos danos morais suportados por decorrência de prisão, tortura e banimento ocorridos durante a ditadura militar.

Para alguns deve ser aplicado ao caso o artigo 1º do Decreto 20.910/32 que regula a prescrição a ser aplicada nas ações contra a Fazenda Pública., que é de cinco anos contados da data do ato ou do fato do qual se originem.

Já no julgamento do Recurso Especial 449.000/PE, Relator Ministro Franciulli Netto, DJ de 30 de junho de 2003, entendeu-se, da leitura da Lei 9.140, de 4 de dezembro de 1995, que o prazo de prescrição somente tem início quando há o reconhecimento, por parte do Estado, da morte de uma pessoa perseguida na época do regime de exceção constitucional, momento em que seus familiares terão tomado ciência definitiva e oficial de seu falecimento por culpa do Estado.

Bem acentuou o Ministro José Augusto Delgado ( Recurso Especial 379.414/PR, Relator Ministro José Augusto Delgado, DJ de 17 de fevereiro de 2003), que o dano, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e à dignidade humana. O crime de tortura é hediondo, sendo a imprescritibilidade a regra quando se busca indenização por danos morais consequentes de sua prática.

Na mesma linha de pensamento, tem-se decisão do mesmo Superior Tribunal de Justiça, guardião da lei federal, em que se concluiu ( REsp 816.209/RJ, Relator Ministro Luiz Fux, DJ de 3 de setembro de 2007) que não há que falar em prescrição da pretensão de se implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade.

Sendo assim, a violação aos direitos humanos ou direitos fundamentais da pessoa humana, como é a proteção de sua dignidade lesada pela tortura e prisão por delito de opinião durante o Regime Militar de exceção, enseja ação de reparação ex delicto imprescritível, que ostenta amparo constitucional no artigo 8º, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

A par disso, na linha do parágrafo sexto, artigo 37, da Constituição Federal, se tem que ¨as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadores de serviços públicos respondem pelos danos que seus agentes, nessa qualidade causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. O dispositivo constitucional repete, em seu histórico, o que já acentuava a partir da Constituição de 1946, no artigo 94.

Tem-se a responsabilidade civil do Estado pelos atos causados pelo regime de exceção, na ditadura militar, envolvendo prisões, torturas, desaparecimentos e mortes. Essa responsabilidade civil se preocupa em recompor a situação econômica da vítima ou de suas famílias vítimas de um ato danoso.

Ora, toda a ação estatal está adstrita a um dever de não produzir danos aos particulares. Toda vez que isso se der ocorre um encargo do Estado que consiste em recompor o prejuízo causado. Deve haver um dano e a imputação desta a um comportamento que poderá ser comissivo ou omissivo da Administração, dentro de um nexo de causalidade.

Responde o Estado pelos danos materiais e morais trazidos às vítimas da ditadura militar.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

 

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A mistura constitucional brasileira

Marcelo Alves Dias de Souza*

Uma das principais funções do Poder Judiciário mundo afora, e o Brasil não foge à regra, é realizar o controle (jurisdicional) da constitucionalidade das leis. À luz do direito comparado, existem dois modelos ou formas para realização desse mister: o difuso, conhecido como o modelo americano; e o concentrado, modelo desenvolvido na Europa continental.

As principais diferenças entre os dois modelos são as seguintes: o modelo americano é descentralizado porque o controle é confiado a todos os tribunais do país, concreto e por via de exceção, porque exercido por ocasião da aplicação da lei a um caso particular e a posteriori porque o controle recai sobre uma lei já promulgada; o modelo europeu, na sua feição clássica, é concentrado porque o controle é exercido por um tribunal único e especial, abstrato porque o juiz decide por via de ação contra a lei a despeito de qualquer outro litígio, podendo ser a priori (quando recai sobre uma lei ainda não promulgada) ou mesmo a posteriori (recaindo sobre uma lei já promulgada).

Todavia, embora bastante distintos na maneira de intervenção e poderes, eles podem coexistir em determinado ordenamento jurídico, como no caso exemplar do nosso país.

O controle difuso no Brasil tem caracteres bem próprios: (i) qualquer juiz ou tribunal pode apreciar a constitucionalidade de lei ou ato normativo; (ii) a apreciação pode ser requerida em qualquer processo, por qualquer das partes, por via de exceção na discussão do caso concreto; (iii) como efeito direto, há a não aplicação da norma tida por inconstitucional no caso concreto discutido em juízo, com eficácia, portanto, inter partes; (iv) de toda sorte, reserva-se ao STF a prerrogativa de atribuir repercussão geral ao julgamento de temas trazidos em recursos extraordinários que apresentem questões relevantes sob o aspecto econômico, político, social ou jurídico e que ultrapassem os interesses subjetivos da causa; (v) há, também, a competência do Senado para suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF (CF, art. 52, X); (vi) e há a possibilidade, ainda, em conformidade com o art. 103-A da CF, de o STF, no controle difuso de constitucionalidade, depois de reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar “súmula” com efeito vinculante.

Já o controle concentrado, entre nós, dá-se através de cinco ações diretas: (i) ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, estadual (CF, art. 102, I, “a”, primeira parte) ou municipal (CF, art. 125, § 2º), perante o STF (quando em confronto com a Constituição Federal) ou Tribunal de Justiça (quando em confronto com a Constituição Estadual); (ii) ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal (CF, art. 102, I, “a”, in fine), perante o STF; (iii) a arguição de descumprimento de preceito fundamental (CF, art. 102, § 1º), perante o STF, para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público ou quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição; (iv) ação direta de inconstitucionalidade por omissão, pela qual, declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional pelo STF, será dada ciência ao poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias (CF, art. 103, § 2º) ou em prazo razoável, excepcionalmente; (v) e ação direta de inconstitucionalidade interventiva, visando, em virtude da existência de ato local que viole princípio sensível da Constituição, à intervenção federal em Estado ou no Distrito Federal, por proposta do PGR e de competência do STF (CF, arts. 36, III, 34, VII, 102, I “a” e 129, IV), e à intervenção estadual em Município, por proposta do PGJ e de competência do respectivo Tribunal de Justiça (CF, arts. 35, IV e 129, IV).

Embora bastante distintos na maneira de intervenção e poderes, como visto, os dois modelos têm há décadas coexistido e interagido no Brasil, com a prevalência – pelo menos deveria ser assim –, até porque produtor de decisões com eficácia erga omnes e efeito vinculante para os demais órgãos do Poder Judiciário e para o Poder Executivo, do controle concentrado.

Mas essa mistura tem funcionado bem? Bom, isso é assunto para uma outra conversa.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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O fim da saída temporária

Por Rogério Tadeu Romano*

O Senado aprovou projeto de lei que restringe a “saidinha”, a saída temporária de presos em datas comemorativas, e veda a concessão em casos de crime hediondo ou cometido com violência ou grave ameaça. O texto voltará para a Câmara, que havia aprovado mudança mais drástica, com o fim integral. O benefício é dado hoje a quem cumpriu pelo menos um sexto da pena, no caso de primeira condenação, e um quarto, quando reincidente.

A Lei Anticrime sancionada em dezembro de 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro acabou com a saída temporária de presos que cometeram crimes hediondos com morte da vítima.

A medida, porém, só será aplicada a crimes cometidos após o texto entrar em vigor, a partir do dia 23 de janeiro de 2020.

Mas, sob o noticiado projeto de “endurecimento” da execução penal quanto ao benefício aqui discutido disse a Folha, naquele editorial:

“Embora não desprezível, a proporção de presos que não retornam da saída temporária é relativamente baixa. Em São Paulo, por exemplo, cerca de 95% dos favorecidos no Natal de 2020 voltaram à prisão. Condenados por crime hediondo com morte não têm direito ao benefício desde 2019.”

A Lei de Execução Penal, em seu artigo 122, prevê a possibilidade de concessão de saída temporária aos sentenciados que se encontrem a cumprir pena em regime semiaberto. Tal benefício tem por finalidades viabilizar a reintegração social do apenado, bem como desenvolver o senso de autodisciplina.

O benefício da saída temporária tem como objetivo a ressocialização do preso e é concedido ao apenado em regime mais gravoso – semiaberto –, não se justifica negar a benesse ao reeducando que somente se encontra em regime menos gravoso – aberto, na modalidade de prisão domiciliar –, por desídia do próprio Estado, que não dispõe de vagas em estabelecimento prisional compatível com o regime para o qual formalmente progrediu.

Há uma visão preconceituosa com relação à saída temporária, conhecida como “saidinha”.

Como salienta Suzane Jardim:

“O regime semiaberto e as saidinhas são medidas que tentam integrar o detento à sua comunidade de origem, garantindo assim que existam vínculos fora da prisão. Tal medida não é questão de benevolência com criminosos — é simplesmente um método para evitar que o ex-detento volte a cometer crimes quando retornar à sociedade”.

Certamente o projeto assim referenciado se apoia em pesquisas que apontam que cerca de 2,3mil presos não voltaram aos presídios após o recesso de fim de ano de 2015. Em SP, cerca de 50 mil presos não voltaram às celas dentro de um período de 10 anos.

Para os que querem eliminá-lo o argumento é de que “o benefício já se mostrou ineficaz para reintegrar o reeducando à sociedade. Os fatos assim demonstram. Não tem se prestando para ser uma espécie de pré-requisito para um futuro benefício de livramento condicional.”

Razões de cunho social ou até etiológica poderiam conduzir a demonstração da necessidade da extinção dele.

Carlos Eduardo Machado e Ignácio Machado (Fim da saída temporária ameaça ressocialização e pode aumentar insegurança, in Consultor Jurídico, em 18.24) afirmaram que o fim da saída temporária é um retrocesso na política de execução penal e afirmaram:

“Portanto, a supressão das saídas temporárias, sem o devido debate e análise, representa um retrocesso nas políticas de execução penal e uma ameaça aos princípios constitucionais que devem reger o sistema penitenciário.

A reintegração social dos apenados deve ser o objetivo central da execução penal, conforme estabelecido pela Lei de Execução Penal e pelos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Por conta de casos pontuais de mal uso do benefício, tentam generalizar e quebrar um instituto que tem uma história de êxito.

Pelos erros de dezenas querem punir milhares. Seria como proibir a circulação de veículos automotores nas ruas por conta do grande número de atropelamentos. Trata-se de uma resposta punitiva meramente simbólica e ineficaz.

Em síntese, é imperativo que haja um debate aberto e fundamentado sobre as implicações deste projeto, com a participação de todos os setores da sociedade, incluindo especialistas em direito penal, organizações de direitos humanos e os órgãos do sistema de justiça criminal.

A proposta de proibição das saídas temporárias subestima a importância deste benefício para a ressocialização dos apenados e para a segurança pública.

A manutenção e o aprimoramento deste mecanismo, com foco na fiscalização e no acompanhamento efetivo dos beneficiados, surgem como alternativas mais alinhadas aos princípios de justiça restaurativa e ao objetivo último da pena: a reintegração do indivíduo à sociedade.”

Ora, só o exame do caso concreto resolverá o caráter mais favorável ou mais severo da lei. Deve ser aplicada ao acusado a lei que lhe for mais favorável, no confronto das leis no tempo, renegando-se a solução que se faça no mero campo de critérios que venham a ser taxados de vacilantes.

Há na discussão da saída temporária uma forma de aplicar teorias que visam a tratar o apenado dentro de um etiquetamento social a vê-lo dentro dos limites da culpabilidade do caráter em uma linha que nos lembra Lombroso. Vale lembrar que “a teoria do etiquetamento criminal muda o foco de pesquisa do crime ou do criminoso e passa a analisar o problema da estigmatização, deslocando o problema criminológico do plano da ação para o plano da reação.”

Quanto à fiscalização do apenado beneficiado com a saída temporária, ressalta-se que, embora a lei a autorize sem necessidade de escolta, a LEP dispõe que o Juízo da execução penal, se entender necessário, poderá concedê-la aplicando monitoração eletrônica, possibilitando-se, assim, uma fiscalização indireta, nos termos dos art. 122, § 1º e 146-B, inc. II da LEP.

Para tanto, como ensinaram Júlio F. Mirabete e Renato N. Fabbrini (Execução Penal: comentários à Lei n. 7.210, de 11-7-1984. 12. ed. São Paulo: Atlas S.A., 2014, p. 544): “[…] constituem, assim, verdadeiro meio de prova que permite verificar se o condenado alcançou um grau de resistência que lhe permite vencer as tentações da vida livre e um sentido de responsabilidade suficiente para não faltar à confiança que lhe foi depositada ao lhe deferir o benefício”.

O benefício da saída temporária que pode ser objeto dos seguintes apontamentos: a saída temporária é destinada aos condenados que cumprem pena em regime semiaberto, sem vigilância direta nos seguintes casos: visita à família; frequência a curso supletivo profissionalizante bem como se segundo grau ou superior na Comarca do Juízo da Execução; participação em atividades que concorram para o convívio social.

Aqui podem ser utilizados equipamentos de monitoração eletrônica sem que haja interferência excessiva ao direito à intimidade do apenado, na justa medida da necessidade.

Tem direito o apenado a tal benefício na medida em que cumpre o regime semiaberto e que até a saída tenha cumprido 1/6 da pena total se for primário ou ¼ se for reincidente.

É a condição para adaptação ao livramento condicional.

De acordo com a proposta, se o Projeto for aprovado, a pessoa presa só poderá obter o benefício da saída temporária uma única vez ao ano, por prazo não superior a sete dias, tendo por condição ser considerado réu primário, ter comportamento adequado e ter cumprido mais de um sexto da pena.

Atualmente, conforme a Lei de Execução Penal, a saída temporária pode ser concedida até cinco vezes ao ano para que a pessoa visite a família, estude ou desenvolva alguma atividade que contribua para o retorno ao convívio social.

Em regra, as saídas temporárias ocorrem em datas comemorativas específicas (com caráter familiar) como Natal, Páscoa, Dia das Mães e Dia dos Pais, e não podem ultrapassar, ao longo do ano, o período de 35 dias. Os critérios para concessão desse benefício e as condições impostas, como o retorno ao estabelecimento prisional no dia e hora determinados, são disciplinados por portaria da vara de execuções penais.

A Lei de Execução Penal prevê a saída temporária para frequentar curso supletivo profissionalizante, segundo grau ou faculdade. O curso deve ser na comarca onde o sentenciado cumpre pena.

Nesse caso, o preso sairá todo dia somente o tempo necessário para assistir às aulas, até terminar o curso, condicionando ao bom aproveitamento, sob pena de revogação.

Por certo, não há lugar quando da efetivação da saída temporária para o apenado frequentar bares e boates ou locais semelhantes no referenciado período.

Em síntese, o art. 122, incs. I, II e III, da LEP determina que a autorização para saída temporária será concedida, sem vigilância direta, para as seguintes finalidades: i) visita à família; ii) frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução4; iii) participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.

Sobre ele dispôs o item 129 da Exposição de Motivos da LEP: “As saídas temporárias são restritas aos condenados que cumprem pena em regime semiaberto (colônias). Consistem na autorização para sair do estabelecimento para, sem vigilância direta, visitar a família, frequentar cursos na Comarca da execução e participar de atividades que concorram para o retorno ao convívio social (artigo 121 e incisos). A relação é exaustiva.”

No período em que estiver no benefício não poderá o apenado frequentar bares, boates ou outros lugares similares.

Estaríamos diante da falência do instituto para a execução penal? Estaria esse benefício sendo mal aplicado?

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

 

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Paulinho Freire abraça o bolsonarismo pensando no segundo turno, mas entrega eleitor de Lula de bandeja a Carlos Eduardo

Ao assinar o pedido de impeachment do presidente Lula (PT) por causa das críticas que ele fez ao massacre que o governo de Israel faz aos palestinos, o deputado federal Paulinho Freire (União) fez um aceno ao eleitor bolsonarista.

Em terceiro lugar na última pesquisa divulgada pelo Instituto AgoraSei, Paulinho quer atrair o eleitor bolsonarista para sonhar com um segundo turno.

Para o momento a estratégia faz sentido.

Mas lá na frente ele pode pagar um preço alto. É que esse posicionamento será lembrado pelo eleitor lulista e em um eventual embate com o líder folgado nas pesquisas Carlos Eduardo Alves (PSD) ele perderia o eleitor do presidente que venceu na capital potiguar nos dois turnos em 2022 e mantém bons índices de aprovação.

Paulinho agiu pensando no presente sem pensar no futuro.

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Mossoró pintada de povo e a cultura popular no carnaval

Por Plúvia Oliveira*

Mossoró, como município central da região Oeste, tem, historicamente, um papel de protagonismo na cultura popular. Desde o cordel, teatro, a carnaval de rua. Foi, por muito tempo, um arsenal de arte feita do povo, para o povo. Prova disso é a presença resistente, no imaginário popular, da boneca Maria Ispaia Brasa, os carnavais de bairros, como Carnabuco (Rua Joaquim Nabuco), Carnacocota, Zé da Porteira, Sapo da Lagoa (Lagoa do Mato) e Os Ursos, tradição inteiramente nossa, que denota, desde sempre, a espontânea vontade de pintar Mossoró com nossas cores.

De início, é importante resgatarmos como nossas histórias se encontram e como se deu o surgimento de alguns dos nossos símbolos carnavalescos, especialmente Maria Ispaia Brasa, que surge com um tom de justiça social, ao ocupar o carnaval da cidade com pessoas que sempre foram retiradas desses espaços. Idealizada em 2001, pela atriz Tony Silva e a socióloga Ivonete Soares, Maria Ispaia Brasa era uma tentativa de resgate das tradições dos bonecos gigantes no carnaval de Mossoró e da cultura negra. A boneca foi uma criação do Raízes – Movimento Negro de Mossoró e passou a ser cuidada pelo grupo Amigos da Boneca e do Centro de Estudos, Pesquisas e atividades Culturais “Negro e Lindo”. Um diferencial da boneca Maria Ispaia Brasa é que ela saia apenas às terças-feiras de carnaval, num trajeto que se iniciava na casa da atriz Tony Silva e em seu percurso visitava a casa de todos os foliões que fizeram história no carnaval de Mossoró.

Nesse remonte, Os Ursos aparecem como protagonistas. Tradição popular movimentada principalmente por jovens da periferia que rodam as ruas de seus bairros com uma roupa feita de retalhos e máscaras assustadoras que imitam um urso ou algum monstro. Os ursos dançam e pulam ao som de tambores e taróis para pedir dinheiro a quem estiver nas calçadas, para financiamento ou dos blocos ou do próprio carnaval do grupo de urso. O momento mágico para as crianças era quando acontecia um encontro entre ursos: dois ou mais grupos fechavam a rua em que estivessem e os ursos brincavam no meio de uma roda feita pelas bandas que os acompanhavam. Os ursos fazem parte da prévia de carnaval, começando a rodar já depois do 6 de janeiro e indo até os dias de Momo.

Para além disso, muito fortemente nas décadas de 1970 e 1980, o carnaval de rua em Mossoró era trajeto central, com os carnavais de clubes e associações como Clube Ypiranga e a Associação Cultural e Desportiva Potiguar (ACDP), além da AABB e BNB Clube que organizaram os primeiros “Blocos de Salão” nas sedes dessas agremiações. A diferença é que esse modelo reúne a elite mossoroense no carnaval até a década de 70, com o desfile dos blocos acontecendo na Coronel Gurgel, que promovia competições de fantasias.

Com um processo de abandono e esvaziamento do fomento à cultura popular, a partir do poder executivo da cidade, o carnaval de Mossoró ficou sem possibilidade de ir às ruas ou de se movimentar por conta própria, sem investimentos. Isso denota o interesse político de silenciar, de maneira direta, a periferia da cidade que não consegue acessar os espaços elitizados, que escolhem quem pode ou não viver a cidade (em fevereiro e durante todo o ano). O desfile de bonecos, as saídas das escolas de samba e os carnavais de bairros foram, aos poucos, sendo extintos. Mossoró, antes pintada de povo, se acinzentou.

No entanto, a cultura popular, não podendo ser diferente, resiste. Prova disso é a tentativa contínua de resgatar as expressões do povo nas ruas. Em 2024, o Bloco Alô Frida completa 10 anos de sua criação. Surgindo como alternativa feminista, auto-organizada por mulheres e possibilidade da população mossoroense ocupar a cidade, dizendo não a todas as opressões e gritando qual o mundo, a sociedade e o carnaval dos nossos sonhos, este ano, na quinta-feira que antecede os festejos carnavalescos, o bloco trouxe de volta às ruas, com apoio do Governo do Estado, o desfile dos bonecos e outras tradições que construíram, por muito tempo, a nossa identidade. Fazer de Mossoró, novamente, uma cidade pintada de povo, é resistir ao projeto político de marginalização dos nossos corpos e vidas.

*É gestora ambiental.

Este texto não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema. Envie para o bruno.269@gmail.com.

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Houve crime contra a ordem democrática?

 Por Rogério Tadeu Romano*

Divulgado pelo Supremo Tribunal Federal, o vídeo de uma reunião de julho de 2022, com a presença do então presidente da República e ministros de Estado, gerou forte debate. O que ali se presencia é a execução da tentativa de um golpe de Estado ou seriam “apenas” atos preparatórios desse crime? Como indagou Nicolau da Rocha Cavalcanti (Bolsonaro cometeu crime de tentar um golpe?, in Estadão, em 14.2.24).

Ainda expôs, naquele artigo, Nicolau da Rocha Cavalcanti, que a tipificação do “tentar depor” foi precisamente o modo encontrado pelo legislador de assegurar que o Estado tenha meios de defender a democracia antes do golpe.

Ali disse Nicolau da Rocha Cavalcanti, naquela manifestação:

“Afirmar que todas as ações prévias ao golpe de Estado propriamente dito (a deposição do governo) seriam meros atos preparatórios é minar a eficácia protetiva do art. 359M, além de representar um olhar simplista sobre o que é um golpe – sempre um processo complexo de ações, e não um único ato numa hora determinada. Tem-se aqui mais um motivo para a não divulgação seletiva de elementos probatórios: é preciso compreender o todo.

O legislador foi prudente. Para não instituir um tipo penal muito amplo, violando o princípio da legalidade, determinou que, para haver crime, a tentativa de deposição deve se dar “por meio de violência ou grave ameaça”. Entendo que um presidente da República, reunido com seus ministros de Estado, atuando para que o resultado da eleição não fosse respeitado constitui, sim, uma grave ameaça. Isso é muito diferente do que alguém escrever, num grupo de WhatsApp, “não podemos deixar o Lula assumir”.

O Código Penal prevê não apenas os crimes e as respectivas penas. Na sua Parte Geral, estabelece como esses crimes devem ser aplicados – e essa aplicação normativa é o que distingue, entre outras coisas, a sentença judicial da mera opinião. Por hipótese, em muitos casos do 8 de Janeiro talvez não haja o preenchimento da tipicidade subjetiva, em especial acerca da compreensão de “governo legitimamente constituído”. Como se sabe, “o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo” (art. 20 do Código Penal). De toda forma, a situação é outra, por exemplo, quando se refere a alguém que, para assumir o cargo, jurou cumprir a Constituição e, mais tarde, sancionou a própria Lei n.º 14.197/2021.”

A tipificação do ‘tentar depor’ foi o modo de assegurar que o Estado tenha meios de defender a democracia antes do golpe. Para o caso, houve, em verdade, uma tentativa de autogolpe.

Um autogolpe é uma forma de golpe de Estado que ocorre quando o líder de um país, que chegou ao poder através de meios legais, dissolve ou torna impotente o poder legislativo nacional e assume poderes extraordinários não concedidos em circunstâncias normais.

Outras medidas tomadas podem incluir a anulação da constituição da nação e a suspensão de tribunais civis. Na maioria dos casos ao chefe de Estado é concedido poderes ditatoriais.

Lembrem-se que Hitler assumiu o poder, em 1933, de forma democrática, pelo voto popular e depois se transformou num ditador na Alemanha que tinha um passado cultural invejável.

O Estado Totalitário traz uma falsa consciência de direito. Um universo antitético.

O que há é a necessidade premente de manter, num país que tem uma constituição-cidadã de índole democrática como a do Brasil, o Estado Democrático de Direito.

Comentando o mesmo princípio da Constituição da República portuguesa, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira oferecem aos estudiosos, uma resposta: “Esse conceito – que é seguramente um dos conceitos-chave da CRP – é bastante complexo, e as suas duas componentes – ou seja, a componente do Estado de direito e a componente do Estado democrático – não podem ser separadas uma da outra. O Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito. O Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é democrático”.

Observemos os tipos penais inseridos nos artigos 359 – L e 359 – M.

Sobre o tema disse Fernando Augusto Fernandes (O terrorismo por omissão e o artigo 359 – L do Código Penal, in Consultor Jurídico, em 29.12.2002):

“O crime mais adequado, contudo, é o do artigo 359-L, incluído no Código Penal pela Lei nº 14.197/21, que descreve a conduta de “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, com pena é de 4 a 8 anos, “além da pena correspondente à violência”. Apesar do artigo sobre violência política (artigo 359-P, do CP) ter também deixado de fora o fim político da conduta delituosa e optado por ” razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional “, o crime de abolição violenta do Estado de Direito já traz a tentativa no próprio crime, sem limitação da atuação que naturalmente é política.

Trata-se de crime formal, que exige o dolo como elemento do tipo. A ação pode vir por violência ou ameaça, que há de ser séria, objetivando, inclusive, restringir o exercício de um dos poderes da República, para o caso o Judiciário.

A ameaça deve ser realizável, verossímil, não fantástica ou impossível. O mal prometido, segundo forte corrente, entende que o mal deve ser futuro, mas até iminente, e não atual. Só a ameaça séria e idônea configura esse crime.

O crime é de perigo presumido.

Fatalmente, tendo a Lei de Defesa do Estado Democrático substituído a Lei de Segurança Nacional, não pode ser esquecido que delitos perpetrados com motivação política — e, portanto, crimes políticos — devem ser julgados pela Justiça Federal, conforme disposição constitucional quanto à competência dos crimes federais. Valendo ressaltar que o trâmite reservado a tais procedimentos é de denúncia em primeira instância a juízo federal e, uma vez sentenciado, eventual inconformismo deve ser levado diretamente ao Supremo Tribunal Federal via recurso ordinário constitucional, conforme versa o artigo 102, inciso II, alínea b, da Constituição Federal.”

Outro crime, por sua vez, ainda contra a democracia foi o crime de tentativa de golpe de Estado.

Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021) (Vigência)

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência. (Incluído pela Lei nº 14.197, de 2021)

O delito de tentativa golpe de Estado está localizado no Capítulo II da nova lei, chamado de dos Crimes contra as Instituições Democráticas. E o bem jurídico penal é o próprio Estado Democrático de Direito, o qual consta no preâmbulo da CF e nos artigos 1, caput, sendo o modelo, a forma institucional do Brasil.

Ademais, as normas constitucionais definem o sistema republicano, democrático e representativo no qual o voto é o meio pelo qual se ascende ao cargo político-eleitoral, não se admitindo a tomada violenta do poder.

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, caracterizando o crime comum. O sujeito passivo é a sociedade e o Estado.

Quanto à tipicidade objetiva, trata-se de delito de forma livre de mera conduta. Incrimina-se a conduta de tentar depor governo legitimamente constituído, o que significa governo eleito democraticamente, conforme as regras constitucionais, e devidamente diplomado.

O delito somente ocorre se a tentativa de deposição utilizar violência ou grave ameaça, não se podendo confundir este delito com a renúncia ou impeachment daquele que foi eleito ou mesmo com cassação parcial ou total da chapa.

Nota-se que a violência deve ser empregada na tentativa de deposição para que o delito se caracterize.

A grave ameaça deve ser à pessoa (havendo interpretação de que pode ser contra as instituições), o que pode ocorrer por palavra, por escrito, gestos ou outro meio simbólico de causar mal grave e injusto.

O governo constituído que pode sofrer o golpe de Estado é municipal, estadual, distrital ou federal.

Consoante tipicidade subjetiva, incrimina-se a prática dolosa de usar violência ou grave ameaça para tentar depor um governo legitimamente constituído.

Este crime não admite forma tentada e se consuma com a tentativa de depor o governo legítimo mesmo que o governo se mantenha.

A pena, 4 a 12 anos e mais as penas das violências cometidas, como lesões corporais e outras práticas contra a pessoa, comporta regime fechado a depender o caso concreto. Admite-se prisão preventiva se houver requisitos e fundamentos do artigo 312 (CPP) já que a hipótese no artigo 313, inciso I do CPP está presente. Não é cabível prisão temporária.

Não se admite a incidência de instrumentos de barganha como transação penal, suspensão condicional do processo ou acordo de não percepção penal. E a ação penal pública incondicionada, tramitando pelo rito ordinário.

O caso é gravíssimo.

Trata-se de um crime contra a democracia.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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Fuga em presídio federal coloca Mossoró em evidência nacional e se torna pretexto para bolsonaismo desviar foco sobre revelações de trama golpista

Para quem vive em Mossoró a ressaca do carnaval, que marca a quarta-feira de cinzas, veio com o gosto amargo do medo de encontrar dois dos criminosos mais perigosos do país escondido em sua casa ou de se deparar com um perseguição cinematográfica na volta para casa, após a notícia de que dois detentos fugiram do presídio federal localizado em Mossoró.

O assunto ganhou forte repercussão nacional pelo ineditismo. Agora se especula a possibilidade de falha humana enquanto agentes de segurança se mobilizam para capturar Rogério da Silva Mendonça, 36, conhecido como Tatu, e Deibson Cabral Nascimento, 34, chamado de Deisinho. A dupla integra o Comando Vermelho.

Além desse ponto, o incidente ganhou contornos políticos com o bolsonarismo explorando o tema a exaustão, visando desviar o foco da crise de imagem na extrema direita provocada pelas revelações da trama golpista revelada na semana passada expondo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) como um dos “cabeças” das articulações.

Virou um verdadeiro troféu para a turma do ex-presidente que passou a acusar o PT de ajudar bandidos, mesmo que não exista qualquer evidência disso e sendo o partido do presidente Lula o responsável pela criação do sistema penitenciário federal até ontem considerado infalível.

O bolsonarismo não precisa de fatos para se impor e tentar ganhar o debate público no grito. Basta um pretexto e a fuga que colocou Mossoró no centro das atenções nacionais é o caso para criar a narrativa (palavra que eles adoram) que o PT é tolerante com a bandidagem.

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Direito, séries e seriados: os recursos

Por Marcelo Alves Dias de Souza*

Como outrora dito, a dramaticidade que nos envolve e a emoção que nos toca no cinema e perante a TV estão fortemente relacionadas aos recursos técnicos pertinentes a tais artes visuais, como a pluriperspectiva, a capacidade de manipular tempos e espaços, o corte cinematográfico, os efeitos especiais etc., que superpontencializam, para o espectador, os dados sensoriais da vida real.

A “pluriperspectiva”, por exemplo, é, nas palavras de Júlio Cabrera (em “O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes”, Editora Rocco, 2006), “a capacidade que tem o cinema [e a TV, ajunto] de saltar permanentemente da primeira pessoa (o que vê ou sente o personagem) para a terceira (o que vê a câmera) e também para outras pessoas ou semipessoas que o cinema é capaz de construir, chegando ao fundo de uma subjetividade. (…) A pluriperspectiva pode ser considerada uma espécie de qualidade ‘divina’ (ou demoníaca!) do cinema, no sentido da Onisciência e da Onipotência. Evidentemente, a montagem, a estratégia dos cortes, os movimentos de câmera etc. podem intensificar esta característica fundamental do cinema, que contribui grandemente para a eficácia do choque emocional”.

E aqui cito o seriado “Cold Case” (2003-2009), que tem como “cenário” a cidade de Filadélfia (EUA) e como personagem principal a detetive Lilly Rush (interpretada por Kathryn Morris). A missão da equipe de polícia é investigar casos antigos, de décadas atrás e já arquivados, com crimes até então nunca desvendados. “Cold Case” contém características que são comuns à maioria dos seriados policiais: investigando um crime por episódio, os detetives, a partir de uma introdução aos acontecimentos (geralmente em forma de flashback), colhem as evidências, ouvem testemunhas e suspeitos, fazem uso das novas tecnologias da criminalística etc., juntando as peças necessárias para desvendar o caso. Mas esse seriado faz uso de uma pluralidade de vozes toda especial: os testemunhos/versões dos acontecimentos são acompanhados por cenas em flashback da época do crime, que dramatizam sobremaneira a coisa. As cenas em flashback fazem com que tenhamos pluriperspectivas até nos depoimentos de uma mesma personagem, com cada testemunha/investigado enxergando os acontecimentos duplamente, tanto sob o “olhar” do passado (contemporâneo ao crime) como do presente (quando da investigação em curso). Esses flashbacks apresentam questões relacionadas à mentalidade do século 20, que influenciaram o cometimento do crime, tais como racismo, sexismo, aborto, homofobia, transfobia e violência policial, fazendo mais um interessante paralelismo, ao mostrar as diferentes perspectivas, com os dias atuais. Ao fim de cada episódio, desvendado o crime, é mostrada a prisão do assassino, geralmente em cena de flashback e testemunhada, essa prisão, pela própria vítima. Tem-se, então, até a perspectiva/olhar da própria vítima.

“Cold Case” é assim também um perfeito exemplo daquilo que Julio Cabrera registra como “a quase infinita capacidade do cinema [e da TV] de manipular tempos e espaços, de avançar e retroceder, de impor novos tipos de espacialidade e temporalidade como só o sonho consegue fazer”. Em grande medida, a TV consegue isso fazendo uso do chamado “corte cinematográfico”, recurso que, nas mãos de uma direção de TV talentosa e com recursos técnicos para tanto, pode fazer milagres. E isso pode ser levado a um grau elevadíssimo com os cortes/capítulos/episódios nas séries/seriados de TV.

Mas aqui podemos ir ainda mais longe sobre a adequação da TV para retratar fatos e temas relacionados ao direito, sobretudo naqueles chamados seriados de tribunal. Afinal, o que é um processo, e sobretudo um criminal, se não a análise retrospectiva de uma conduta juridicamente/penalmente relevante? A TV, manipulando tempos e espaços, avançando e retrocedendo, quase ao vivo, reconstrói os fatos, nos apresenta e questiona as testemunhas, reanalisa as evidências, debate os argumentos das partes, faz tudo de novo se necessário ou conveniente à trama/processo/julgamento, e por aí vai.

De fato, ao conseguir intensificar de forma colossal a “impressão da realidade”, a TV nos dá, com grande eficácia, quase a plenitude da desejada “experiência vivida”. Pelo menos assim eu acredito.

*É Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL, Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL.

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